segunda-feira, 31 de março de 2008

quarta-feira, 26 de março de 2008

Indecisão.......

Até que a rapariga não cantava mal. Era uma daquelas músicas brasileiras a que a voz doce da cantora emprestava uma sensação de cócegas.
As pessoas mais preocupadas com o conteúdo dos pratos, pouca ou nenhuma atenção lhe votavam. Ela persistia na balada, onde o amor ainda havia de voltar.
Um pouco tímido cruzou os olhos com os da artista e mais timidamente ainda os deixou cair. A voz dela parecia mais doce e a letra da canção era como se fosse só para ele. Falava de tristezas passadas e de muitas promessas de um amor que iria acontecer.
Havia lamentos e todas as venturas de um dia que estava tão próximo. Falava de beijos quentes, de promessas que pareciam reais.
Ficou enlevado e procurou-lhe os olhos que num largo sorriso o deixou confuso. Desviou o olhar e o rubor tomou conta do seu rosto, como de um rapazinho envergonhado.
No seu cérebro mil projectos se começaram a desenhar. A que horas sairia? Iria só, ou alguém e a iria esperar? E o sorriso? Meu Deus, aquele sorriso!
Ficou desajeitado como sempre, sem saber tomar uma decisão.
Pediu mais uma bebida, era a terceira e decerto não lhe iria cair muito bem. Não estava habituado mas a ocasião a isso o obrigava.
Em pequenos goles ia ficando inebriado com a letra que decerto lhe era dedicada.
Os acordes entravam nos ouvidos e as palavras daquele amor esquecido aqueciam uma existência tão vazia.

Será hoje meu Deus, será hoje
Que o amor vai surgir, assim, de repente
Trazendo tudo o que quero e
Aquecendo de forma tão boa a alma da gente


Estava enlevado na letra, inebriado na música.

Quando sua boca me chama
Eu corro apressada
Rebolo consigo na cama
Não preciso mais nada

O pensamento levantou voo, os olhos fecharam-se num doce torpor.
Andou nas nuvens de mãos dadas, vogou ao sabor do vento, rodopiou agarrado
aquela delicada cintura.
Beijou aqueles cabelos negros que lhe roçavam o rosto e que o deixavam louco.
Estava próximo daqueles lábios carnudos que em promessas se abriam para ele.
Já sentia o sabor de um beijo quente que se aproximava.

......................

O corpo tremia de prazer.
O sobressalto foi enorme.
Aquela cara feia tão próxima da sua não era a da cantora, acordou sobressaltado com alguém que lhe berrava aos ouvidos:
-Então amigo, acorde que vamos fechar. O espectáculo acabou há muito!

Só frio da rua o trouxe à realidade.

sábado, 15 de março de 2008

O Fim.......

Estugou o passo. A pressa de chegar a casa e acabar de vez com essa situação deu-lhe forças. As pernas nem sempre correspondiam ao ritmo que tentava impor, mas a vontade era tanta que esquecia aquela dor que, há meses, não o deixava.
O calor começava a apertar e na testa começavam a aparecer gotículas de suor.
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No outro dia sentiu um peso no peito. Era uma sensação estranha. Parecia que estava oco, e uma dor aguda penetrava deixando uma sensação de desconforto. Respirou fundo
tentando meter no peito o ar que lhe parecia faltar. Tudo era estranho, a sua volta parecia que uma névoa se ia desprendendo. Sentia a cabeça a andar a volta.
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Era uma forma esquisita, era como uma agonia. A dor não era muito forte mas o desconforto era enorme. O peito parecia que transportava toda a angústia do mundo.
Queria respirar mas o ar entrava com dificuldade. A cabeça zumbia como se de repente estivesse cercada de abelhas.
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Olhou em volta e desfilou as más recordações da infância que não teve. Via-se enfiado num calções coçados e presos por um suspensório de pano que lhe cruzada o abaulado peito, coberto com uma bonita camisa feita com o pano velho de outra. A sacola era de serapilheira parda e os livros que transportava eram as sobras de um menino que um dia os vendeu no alfarrabista. A pedra onde fazia as contas, e que bem as sabia fazer, era a angústia constante. Por tudo e por nada se partia e iria sentir no corpo e nas faces o desabar do mundo.
Não podia olhar os próprios olhos, mas diziam, que apesar de tudo deixavam transparecer
ladinice, esperteza e uma vontade enorme de enfrentar a vida.
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Os anos passavam tão rápidos que nem deu porque estava a crescer. A vida estava marcada em todos os poros do corpo franzino. O trabalho era monótono, sem emoções, sem realização. Era… enfim, então Sr. Dr., como estão os meninos. Meninos, dois abortos feios como o pai, convencidos como toda a família e inúteis como todos os que os rodeavam e enchiam de mimos e prazer.
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Manhã cedo com o frio a entrar pela escassa roupa, era esperar pelo eléctrico operário, sempre era mais barato. As senhoras, algumas, abafavam o frio nos belos e felpudos casacos e alguns homens aconchegavam o gordo pescoço no sobretudo de lã de camelo.
Um dia, talvez, ainda tivesse um. Mas seria difícil porque nos familiares não havia nenhum que um dia pudesse ser transformado.
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Houve um tempo em que parece que o tempo tinha parado. Foram umas férias feitas de emoções. Era como que o alvo de todas as atenções. Passaram tão rápidas que ainda hoje sente na boca a doçura de tão bons momentos. Os dias eram longos e preenchidos de todas as brincadeiras. De repente era o herói de uma qualquer banda desenhada.
Corria pelos campos e sentia no rosto a brisa da liberdade. À noite entre as pernas do avô, aconchegava a cabeça nos carinhos desconhecidos.
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Um dia numa enorme fila quis ver como a morte leva os poderosos. A pouco e pouco avançava. Muito devagar, tão devagar que perecia que a própria fila não tinha principio.
Mas, depois de horas, lá consegui ver aquela fraca figura estendida num esquife. O ar mais sereno que um morto pode ter. As pessoas passavam devagar. Algumas inventavam umas lágrimas e como carpideiras faziam a sua boa acção para que todos pensassem que era um desgosto sentido. Ele passou sereno, deslumbrado com tudo o
que via. Pensava, porque conseguem chorar, quando todos sabiam que era apenas o medo que os levava aquela espectáculo. Mas, o presidente estava ali estendido, e outro já se perfilava para continuar tudo aquilo que aquele não tinha feito. Iria de certo cortar muitas fitas, inaugurar o que os outros fizessem e receber os aplausos pelos discursos gastos e sem nada de novo.
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Lá fora a vida continuava naquele ritmo a que já nos habituamos. Na jardim da Estrela as criadas passeavam nos trajes domingueiros sempre na mira de um militar garboso que afoitamente desse um piropo.
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A dor continuava mas não queria dizer nada. Pensando que de certo já ia passar. O relógio que lhe trabalhava nos ouvidos deixava um enorme desconforto.
O chilrear dos pássaros entrava pelas janelas e agudizavam os padecimentos. A cabeça não tardava e de certo iria estoirar.
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Estendeu o corpo magro no sofá. Fechou os olhos e esperou que o sono lhe desse algum alivio, que o libertasse de todo o mau estar e angustia que há muito se apoderara dele.
Ficou tão leve que se sentiu a pairar, a dor passou e o mau estar foi como se nunca tivesse existido.
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Tão estranho ver a sala de cima, a mesa com os restos de uma refeição inacabada, as cadeiras dispostas de forma simétrica, a televisão onde o pó brilhava no escuro do ecrã, o sofá com um corpo enroscado numa posição desconfortável.
Parecia, mesmo, ser ele que ali estava estendido.
O mesmo rosto amarelento e encovado, as mãos engelhadas juntas como numa última prece.
Tudo tão irreal e tão confuso.
Ao longe a musica e a luz intensa pareciam estar a chamar, a dor desaparecera, os ouvidos já não chiavam no cérebro. Nunca se sentira tão bem.

Foi entrando devagar, bem devagar………