segunda-feira, 30 de junho de 2008

Lino o pastor....


Nada mais havia a acrescentar. Tudo o que havia a dizer já fora dito. O ódio fazia parte do seu dia a dia. Desde muito cedo que o vinha acumulando. Cada dia que passava, mais e mais se enraizava aquele mal-estar que lhe azedava o espírito.
Veio para a cidade ainda menino. Quando o meteram na camioneta olhou com saudades tudo o que deixava para trás, o Miranda seu companheiro de aventuras, a Manca assim se chamava a velha burra em cujo dorso era o herói que cavalgava por montes e vales.
Já sentia saudades das sortidas á horta do Senhor Miguelito onde saciava a fome que a malga de feijões e o pedaço de broa lhe deixavam.
O barulho do motor da camioneta misturado com todas as conversas chegavam ao seu cérebro de forma difusa e mais aumentavam a confusão que lhe ia na cabeça. Apenas sabia que o Senhor padre lhe tinha arranjado um emprego na cidade, onde diziam que iria trabalhar para vir a ser um grande homem. Só não compreendia porque precisava de ir tão longe e o não deixavam ser homem mesmo ali na sua terra. O Chico Ventura era o homem que todas as moças queriam conquistar, diziam que o maior e mais valente de todos e nunca precisou de sair da terra para ser homem.
Finalmente a camioneta começou a sua marcha cansada a caminho da grande cidade.
Olhou, pela primeira vez, os restantes companheiros de viagem.
Ao longe ainda conseguiu ver a torre da Igreja que lhe parecia acenar num adeus que o deixou com uma lágrima que disfarçou com o punho da blusa.
Durante muito tempo foi vendo os campos que pareciam fugir. Quando paravam havia um mar de pessoas á espera de quem chegava ou as despedidas de quem partia.
Depois novamente a estrada, as vacas que pachorrentamente olhavam a camioneta enquanto mastigavam a tenra erva.
Finalmente o sono tomou conta do corpo franzino, de tal forma que nem se lembrou de comer o farnel que a tia Alzira lhe tinha preparado.
Ia fazer um ano que deixara a terra. Como se lembrava, ainda, da viagem e do dia em chegara a Lisboa. O Miguel, o seu colega, estava a sua espera, e com o saco dos poucos haveres tomaram um eléctrico que deslizava por entre o meio da confusão de carros e de pessoas que passavam apressadas e indiferentes a tudo os que as rodeavam.
A taberna era enorme, com um grande balcão coberto por uma pedra preta onde os homens pousavam os copos. Algumas mesas dispostas de forma irregular onde o dominó dominava a atenção. Grandes pipas encostadas as paredes completavam o resto do cenário.
Entrou amedrontado e tremeu quando o seu patrão, o Senhor Ernesto, com o sobrolho franzido avaliou a fraca figura que o padre lhe tinha enviado.
-Então o que sabes fazer meu rapaz?
-Senhor, sou o melhor a levar as cabras para o pasto. Gargalhada geral.
-Pode crer que é verdade! Nem o meu pai consegue melhor que eu.
Quem passava á porta parou para ver o motivo de tanta galhofa. Os homens largaram os copos e punham a mão na barriga para se conter.
Não percebia o motivo de tal risota, ou seria que todos aqueles pensavam que era fácil levar e recolher as cabras, carregar com os cabritos recém nascidos?
Nessa noite sentiu todas as saudades do Mundo. Pensou na tia Alzira que lhe mitigava a fome com uma fatia de bolo com mel, no Miranda que agora tinha a Sofia toda para ele, na Manca que o tornava rei das pradarias, da mãe que um dia fechou os olhos e abalou. Até o pai, sempre tão severo, lhe veio ao pensamento.
Nunca teve tanta vergonha.
Adormeceu engolindo o desejo de chorar.
Viveu, assim, dois anos de maus-tratos, de fome, de injúrias.
A resistência estava cada vez mais abalada, o ódio fazia parte do seu ser.
Um dia a taberna não abriu. Foi necessário arrombar a porta.
O proprietário Senhor Ernesto, estava morto, figura macabra. Um fio de sangue escorria num canto da boca.
O Lino não apareceu, a tarimba estava vazia.
Nunca mais o encontraram, ninguém sabe dizer o que aconteceu.

Na terra dizem que nas noites estreladas um jovem pastor, apascenta o mais bonito rebanho de brancas ovelhas e tal como Pã, corre pelos bosques deixando as mais lindas melodias.

Dizem que é verdade, mas ninguém tem a certeza.......


quarta-feira, 25 de junho de 2008

A Missão






Ao meu cunhado Zé, protagonista desta história que aconteceu e que,
tal como eu, acredita na natureza.
(Manuel)



Era uma quarta-feira de Verão intenso. O Sol em todo o seu esplendor envolvia tudo e todos em ondas de calor. As aves estavam escondidas nas folhagens e apenas os insectos se atreviam, maçadoramente, a importunar as pessoas.
Zé, passou o pulso pela testa na tentativa de suster o suor que teimosamente lhe escorria para os olhos, enquanto com a pequena enxada ajeitava a terra junto aos caules das árvores ressequidas pelo calor.
De repente a quietude da tarde foi quebrada pelo ruído de um voo de ave que teimosamente enfrentava a canícula e que em pequenos círculos parecia pedir a benção de um gole de água que lhe desse as forças que lhe iam faltando.
Enlevado no encanto do voo e percebendo o drama, Zé, procurou a mangueira e mostrou o jorro de água na tentativa de despertar a atenção do pobre pombo.
A medo foi-se aproximando, escondendo todo o receio no desejo de saciar a sedo que há tanto o atormentava.
Era o drama do desejo e a impotência de mostrar que apenas a queria ajudar. Dum lado o perceber que a resistência do animal estava esgotada do outro o medo do homem que sempre a perseguia. A vontade suplantou tudo e o pombo desceu, avidamente bebeu a seiva que lentamente sentia fugir. Sorveu a água de forma intensa e sentiu, novamente, a vida a percorrer-lhe o corpo. Os grãos de arroz, que entretanto, o nosso amigo lhe atirou serviram para recompor o cansaço
que a invadia.
Voou para um ramo de um pinheiro, fechou os olhos e num sono reparador recarregou toda a energia que o ultimo voo lhe tinha roubado.
Quem sabe, até, se não sonhou!
Acordou, estendeu a asa num espreguiçar de prazer. Olhou em volta, contemplou o seu salvador com a certeza que nem todos os homens eram iguais.
Levantou voo, tinha que ir, mas também tinha vontade de ficar. Andou as voltas como se tivesse duvidas; como se estivesse em luta entre o dever e o desejo.
Era um pombo-correio, tinha uma missão.
Num risco de asa acenou um adeus, num arrulhar deixou um:
-Obrigado amigo.
Subiu e desapareceu no horizonte.


segunda-feira, 23 de junho de 2008

Angelina

Era tão pequeno que dificilmente lhe davam a idade que tinha. Tão magro que as costelas vincavam a camisa e lhe davam aquela ar desajeitado que o tornava tão diferente.
Olhos fundos de um azul tão claro que mais pareciam de água.
A boca era apenas um pequeno traço que parecia suportar um nariz fino e delicado.
Andava pelos 15 anos mas ninguém lhe dava mais de 12. Tinha um sorriso tímido mas cativante.
Sonhava ser artista e cantar nos palcos de todo o Mundo.
Sabia de cor as músicas do Elton Jones, do Cat Stevens e do James Brown, que cantava sem sotaque e sem saber uma palavra de Inglês.
As letras entravam na sua cabeça e ai ficavam como se fizessem parte do seu corpo,
letras, que não sabia o que queriam dizer, mas estavam de tal maneiras coladas à sua memória, que saíam como se fizessem parte da sua existência.
As músicas embalavam-lhe a vida e o ritmo batia ao mesmo compasso do coração.

Começava o dia pensando ser um Cat Stevens:

Oh, I’m bein followed by a moons hadow.............And are you gonna stay the misht?
Moonshadw…………..

E terminava o dia como se fosse um James Brown:

Whoooau! I feel good; I knew what I would now!
I feel good…………………………So good, so good, I got you

Pouco tempo depois de fazer doze anos a mãe chamou-o ao seu leito de enferma e pediu:

-filho canta aquela cantiga de que a mãe tanto gosta. Quero ficar com ela nos ouvidos para sempre.

-Mas mãe, gostas de tantas.

-Filho aquela especial que tu cantas muitas vezes para mim, aquela que tem o meu
nome.



O som encheu o quarto, do quarto passou para a rua, da rua invadiu a cidade, da cidade
encheu o mundo e parece que todos acompanharam a melodia.




Foi um momento de êxtase. Mágico.

A mãe continuava de olhos fechados e com um sorriso que nunca antes lhe tinham visto.

Acabara de partir, mas com tanta felicidade que o Sol brilhou mais, as aves chilrearam como nunca o tinham feito.

No Mundo, por momentos, não houve maldades, não nasceram crianças deficientes, as guerras pararam como por encanto, a fome foi mitigada na boca de todos os que a sofrem.
A dor desapareceu, não houve cheias, vulcões, maremotos, tufões.
Os maus esqueceram que o eram e sorriram.
Nenhum filho partiu antes dos pais.
Os ditadores proclamaram a democracia.
Os pedófilos amaram como se devem amar as crianças.
Não houve corrupção no futebol.
Nesse dia, dizem, que até o Sócrates falou verdade.

Ele não mais foi o mesmo, nunca mais ninguém o ouviu cantar.