domingo, 17 de outubro de 2010

O desabafo da Dona Rosalina




Foi um raio de Sol que rompeu pela minha janela e que brincando com os meus olhos me trouxe para a realidade do dia.

Esfreguei os olhos tentando, por mais uns minutos, gozar da doçura da cama.

Levantei-me com algum esforço, os ossos já não são como antigamente e todas as articulações se vão queixando à medida que se têm que mover.

O dia estava lindo, e o chilreado dos pássaro era o pronuncio de um dia de calor.

Olhei pela janela e a azáfama diária já se ia instalando nas ruas. O homem do quiosque pendurava os jornais diários na expectativa que os títulos mais gritantes trouxessem os possíveis clientes.

Dona Rosalina saiu esbaforida do prédio e gritava de uma forma tão histérica que as pessoas tinham dificuldade em perceber o que ela dizia.

Estava totalmente transtornada, com um espanador na mão e os olhos esbugalhados ia apregoando:

-Está morto, mataram o Senhor Isidro! Chamem a polícia!


********

Dona Rosalina fazia a limpeza no escritório que ficava no rés-do-chão do prédio em frente do meu.

Como em todos os outros dias, chegou cedo para poder estar despachada antes da entrada do pessoal mas, hoje, estranhou a luz acesa no gabinete do patrão, o Senhor Isidro.

Parecia estar a dormir, cabeça na secretária, olhos abertos mirando o vago.

-Que susto que o senhor me pregou! Exclamou Dona Rosalina.

Aproximou-se a medo e só então reparou que a poça de sangue que se espalhava no soalho escorria da cabeça do pobre homem.

Correu para a rua em gritos doidos e desesperados.


******


A polícia estava totalmente confundida com as características deste crime.

Pelas análises periciais chegaram conclusão que a morte se terá verificado entre as 9 horas e as 23 horas da noite anterior e tinha sido agredido na zona anterior do crânio com um objecto contundente.


*******


O Senhor Isidro era o dono de uma empresa de artes gráficas, tinha a oficina nos arredores da cidade e o escritório neste prédio onde sucedeu o nefasto acontecimento, onde além do próprio, trabalhavam também o Senhor Onofre como responsável pela contabilidade, a menina Gracinda que se encarregava do secretariado e o senhor Pires encarregado do sector comercial.

Todos foram interrogados e conferidos os seus álibis. Não encontraram nada que os pudesse colocar no local do crime.

A menina Gracinda saiu, como todos os dias, por volta da 18, 30 h e foi directamente para casa onde ficou juntamente com o marido e a filha.

Os outros saíram, os dois, cerca das 19 horas, beberam uma cerveja no café ao lado do escritório e seguiram para as residências.

O senhor Onofre vivia com uma filha e o genro que puderam confirmar que chegou por volta das oito e meia e só voltou a sair de manhã para ir trabalhar.

O senhor Pires, que ainda vive com os pais, chegou por volta das oito horas, jantou e adormeceu frente ao televisor até a mãe o acordar para ir para a cama.

Os três garantiram que o patrão ficou no seu gabinete, que disseram até à manhã mas, como de costume, ele não respondeu.

O senhor Isidro tinha um feitio muito irascível, implicativo e sempre pronto a encontrar defeitos em tudo que os outros faziam. Para ele, só os clientes contavam, tudo o mais, era secundário.

Era, como dizia o senhor Pires, um indivíduo em que era difícil contar os inimigos e muito, mas mesmo muito, fácil contar os amigos.


******


Passaram oito meses sem nunca terem descoberto quem possa ter dado cabo do canastro ao pobre senhor e, segundo parece, ninguém se mostrou muito preocupado com isso.

A Empresa voltou à rotina normal, o cargo da gerência foi ocupado por um irmão do morto, que fez com que a harmonia voltasse aquele escritório.

A polícia arquivou, parece que por inconclusivo, o processo.


**********


Hoje levantei-me mais cedo do que habitual e, por puro acaso, encontrei a Dona Rosalina que me sorriu:

-Olá senhor Doutor há muito que não o via, onde tem andado?

-Oh Dona Gracinda, o trabalho sabe como é! E a senhora que tem feito? Já não a via desde o dia em que o encontrou, sabe, no dia em que descobriu aquilo.

Com sorriso respondeu:

-Ah quando encontrei o gajo morto? Já foi para ai há nove meses.

Estranhei a calma da resposta mas:

-Pois foi! E nunca descobriram nada? Pobre homem!

Fez uma cara de desagrado e quase gritou:

-Pobre homem? Teve o que merecia, para não se meter com quem não devia. Sabe que ando doida por desabafar mas tenho medo.

-Mas fale comigo, sou um tumulo.

-Tenho receio, não vá o senhor doutor lixar-me.

-Mulher fale à vontade que eu juro, haja o que houver, diga o que disser
que nunca a minha boca se irá abrir.

-Então antes que rebente aqui vai, fui eu que estoirou os cornos daquele gajo!

Nesse dia fui à noite fazer a limpeza e o tipo ainda lá estava.
Começou com graças pensando que eu era uma qualquer. Mandei vir com ele e até pareceu que se acalmou até que entrei no seu gabinete o aspirar. Vai dai o sacana apalpou-me o rabo com a maior desfaçatez. Fiquei furiosa e dei-lhe com o tubo do aspirador nos cornos. Não se mexeu mais.

Juro senhor doutor que não queria fazer aquilo, só me defendi mas se calhar foi com força demais. Pirei-me logo para casa e voltei no outro dia de manhã como se não fosse nada comigo.

Fiz toda aquela fita e nunca ninguém me perguntou nada.

É para ver a polícia que temos!

Fiquei siderado, fui-me raspando enquanto lhe ia respondendo:

-Nunca me contou nada, juro que nunca falei consigo.
Passe bem Dona Rosalina.



10 comentários:

Luna Sanchez disse...

Eu desconfiei dela desde o começo...rs

Beijo, Manuel.

Menina do cantinho disse...

E mais um caso arquivado. Existem muitas Rosalinas à solta. É certo que muitas em legítima defesa, outras por pura vingança.

Gostei muito.

Beijinhos

AFRICA EM POESIA disse...

Manuel
Obrigada pela visita e por sentir que tenho um amigo


Gostei da Dª Rosalna...
Um beijo

AFRICA EM POESIA disse...

Manuel
Obrigada pela visita e por sentir que tenho um amigo


Gostei da Dª Rosalna...
Um beijo

Laços e Rendas de Nós disse...

Um conto policial.

Como gosto do género, calculei logo quem era a autora do crime.

Beijo

Sónia da Veiga disse...

HIHIHI!!!

Que ninguém se meta com a Dona Rosalina, que ela tem o tubo do aspirador pesado!!! :D

Adorei!!!

Só acho piada que os assassinos aí do canto acabam todos por confessar, especialmente as mulheres... porque é que será?!?

Ludmila Ferreira disse...

Uau... "Magnifico", fiquei muito feliz além de ter adorado o texto..

beeeijOdalua!

Sandra Gonçalves disse...

Amigo algumas Rosalinas ferem de outra forma e até matam.
Bjos achocoaltados

Magia da Inês disse...

Olá!
Manuel, Manuel... até a Rosalina te procurou para contar o segredo dela!...
Cuidado, amigo!!!
rsrsrs...
Boa semana!
Beijos.
Brasil

Guma disse...

Olá Manuel estimado amigo.

Bom conto policial. Vislumbrei quem, mas não tirou o interesse da narrativa até ao fim.
O Manuel foi rico no pormenor, e também não é novidade que aprecio a sua escrita.

Deixo na minha visita um forte kandando e votos de continuada inspiração.