domingo, 19 de dezembro de 2010
Uma bica curta - Conclusão
Não gosto nada destes dias chuvosos, o trânsito fica mais complicado e tudo o que necessito fazer acaba por ficar prejudicado, mas tinha previsto uma visita aos pais da Dona Marta e ia esperar até que o tempo me deixasse meter ao caminho.
Tenho que por as ideias em ordem, este caso tem sido mais complicado e estranho do que alguma vez poderia pensar.
Duas mortes num acidente que não deixa pistas, alguém que aparece de forma inexplicável e se faz passar por uma das vítimas. Um padre que deve saber muito mais do que parece, disse não saber a morada dos pais da Dona Marta, que teria que consultar a agenda mas não o fez, escreveu sem sequer pensar.
Uma Dona Inocência que não tem aspecto de poder ser confidente de ninguém e aparece como sendo de confiança. Não me soa bem.
Uma suposta vitima de acidente aparece a requisitar os meus serviços e todos me dizem que morreu no desastre. Se isso aconteceu como aparece e até paga um serviço?
Terão simulado um desastre? Mas sendo assim porque iriam chamar a atenção para o assunto? Convinha que ninguém mexesse no caso. Estranho!
Começo a ter algumas ideias, mas preciso de as tornar consistentes e a visita aos pais da Dona Marta poderá acrescentar algo, ou pelo contrário, baralhar ainda mais a confusão que baila na minha cabeça.
A chuva começa a desaparecer, o melhor é preparar o GPS e rumar para mais uma visita.
A estrada está um pouco perigosa e algumas poças de água obrigam a alguma prudência.
De quando em vez a chuva volta com alguma intensidade.
Quando o GPS anunciou o chegou ao seu destino, o tempo parece que se solidarizou e uma nesga de Sol alegrou o dia.
É uma casa térrea a precisar de algumas obras e muito especialmente de pintura, paredes com uma cor já indefinida e onde algumas fissuras e remendos dão um sinal de abandono.
Tinha que inventar uma desculpa, pois não me devia apresentar como investigador, causa sempre algum desconforto.
Bati à porta com a velha albrada que em tempos deve ter sido decorativa e que agora não passa de um pedaço de ferro ferrugento pendurado numa porta em tão mau estado como o resto da casa.
Atendeu uma senhora pequenina, toda de preto e com a cabeça coberta por um lenço que lhe dava um ar muito austero.
Sorri o melhor que me foi possível:
-Bom dia, sou agente da Companhia de Seguros e preciso acabar o processo do acidente da sua filha. Posso roubar-lhe um bocadinho do seu tempo?
Deu-me um sorriso tão triste que até me parece que a nesga de Sol, que ia despontar, se escondeu outra vez.
-Vou chamar o meu marido porque eu não percebo muito dessas coisas, mas entre por favor e não repare na desarrumação e no desleixo mas a nossa vida parou desde que a nossa filha partiu.
O marido era um homem magro como um galgo, ossudo e com a cara coberta por uma barba branca que o deixavam com uma idade indefinida.
Estendeu-me uma mão firme e afectuosa.
-Em que podemos ajudar o senhor?
Sorri, mais uma vez, antes de dizer:
-Como já disse, à sua esposa, sou da companhia de seguro e venho para terminar o processo do acidente.
Olhou-me com doçura, cofiou a espessa barba e mandou-me sentar.
-Senhor, como é a sua graça?
-Gilberto, apressei-me a responder.
-Bem senhor Gilberto, o que lhe posso dizer?
-Gostava que me falasse da sua filha e do seu genro.
-A minha filha era um anjo e o meu genro o melhor que se pode desejar. Deus não quis e de três filhos apenas nos resta um, o Pedro, infelizmente com muitos problemas de saúde, vive agarrado a uma cadeira de rodas.
Quando eu e a minha mulher faltarmos não se sabe o vai ser dele. Se a irmã não tem tido a desdita do acidente, tenho a certeza que o iria amparar para sempre mas assim não sei o que o destino lhe reserva.
O meu filho, que era padre na paróquia da Marta, faleceu dois meses depois da irmã com uma doença má nos pulmões, ficamos nós dois velhos e um pobre inválido que depende dos pais. Estou a tentar, com o que recebemos da herança, que foi maior do que pensávamos, garantir o futuro ao Pedro, mas mesmo assim vai ser doloroso.
Ao canto, numa cadeira de rodas, estava um pobre coitado com as pernas embrulhadas numa manta.
-Não sabia do seu filho padre!
Olhou-me com uma tristeza nos olhos que fazia doer.
-O nosso filho era o Padre José Robalo, muito estimado por todas os paroquianos, homem bom, justo e o melhor filho que se pode desejar.
Despedi-me, meti-me no carro, precisava passar pela Igreja pois fazia-me impressão o padre nunca me ter falado no irmão da Dona Marta.
As coisas estavam cada vez mais confusas e parecia que as pessoas tinham algo a esconder.
Na igreja, meia dúzia de pessoas estavam recolhidas na oração. Atravessei no sentido da sacristia, onde um padre muito jovem, que não tinha visto antes, me mandou entrar e fez a pergunta que eu já esperava:
-Boa tarde meu filho em que lhe posso ser prestável?
Fiquei sem saber como começar, pois não esperava um padre diferente:
-Queria falar com o outro padre.
-O outro padre? Sou o único desta paróquia há 10 meses, o anterior foi chamado pelo nosso pai do céu.
-Mas na semana passada falei, duas vezes, com um seu colega aqui neste mesmo sitio.
Como pode dizer que é o único?
-Está a fazer confusão, não pode ter falado com outro sacerdote aqui, sou o único.
-Mas, argumentei eu, era alto e magro, cabelo branco ondulado. Usava uns óculos com aros de metal amarelo e, notei isso, um sinal azulado por cima do lábio.
-Credo! Esse era o nosso irmão José Robalo mas, como já lhe disse, o Senhor já o chamou no ano passado à sua divina presença. Ou está a fazer confusão ou já passou por aqui há muito tempo.
Nem me despedi, sai espavorido a caminho do café da Dona Inocência, que esperava que fosse verdade e que existisse antes de eu dar em maluco.
Existia e lá estava na esquina da travessa e ela, desta vez, vai contar tudo o que sabe. Podem crer que vai mesmo!
Hoje estava mais barulhento do que o costume, um grupo de homens conversavam alegremente sobre as peripécias dos jogos de futebol. Ao balcão uma jovem ia, com um pano, limpando o balcão. Quando me viu ficou à espera do meu pedido.
-Boa tarde, disse eu, queria falar com a Dona Inocência.
Fez com a boca um trejeito engraçado antes de responder
-Disse bem, queria, mas não quer porque não se pode falar com quem morreu já há alguns meses. Este café é meu, sou dona há oito meses, ela morreu com um AVC. Morreu por isso não pode falar com ela. Percebeu?
Não respondi, sai disparado e meti-me no carro sem saber o que pensar.
Parece que todos querem dar comigo em doidos.
****************
Tentei abrir, a muito custo, os olhos. Primeiro um e depois o outro, muito devagar.
Ao longe, dois vultos, estavam a olhar-me.
Pareceu-me estar numa cama, ligado por tubos. Tinha um no nariz para respirar. As dores eram muitas e não sabia por que estava aqui, nem o que estava a fazer.
Os vultos mexeram-se, era estranho. Porque estariam a olhar para mim?
Uma voz desconhecida falou:
-Finalmente, querido, acordou!
Que esquisito. Finalmente porque? Isto é irreal, não pode estar a acontecer.
A voz insistiu:
-Amor, vou chamar o médico.
E foi, pois desapareceu e só ficou um dos vultos. Parecia uma menina.
Voltou com um homem vestido de branco, talvez o tal médico.
Mas médico para que e porque?
O homem falou-me como se me conhecesse:
-Finalmente, Sr. Arnaldo, acordou de 18 dias de coma.
-Mas eu não sou Arnaldo sou Gilberto, tentei gritar mas apenas me saiu um lamento!
-Está confuso, é normal esteve 18 dias em coma profundo. Teve um desastre muito grande mas vai recuperar, vá lá descanse. A sua mulher e a sua filha estão aqui
e tem sido uma grande ajuda e de enorme coragem nesta longa espera.
-Mas eu, tentei gritar outra vez, não sou casado eu não tenho filha!
-Vá sossegue essa amnésia vai passar. É normal. Se tiver dores chame a enfermeira.
Amanhã já vai começar a raciocinar melhor.
Acordou, isso é o principal o resto vai devagar.
Dê graças a Deus.
Vá, agora, tente descansar!
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10 comentários:
♥ Olá, amigo!♫
♫♥ Sinceramente... muito criativo.
♫♫ Ah!... Que decepção!... eu esperava mais do mundo dos mortos!...
Beijinhos. ♥♫
♫♥ Brasil
♫♫♫♥
Manuel,
Adorei o desfecho! Fiquei surpresa com o final fora do lugar comum ao qual conduziu teu conto.
Parabéns!
Beijo, beijo e ótimas festas pra ti também!
ℓυηα
Meu querido Manuel
Hoje passando apenas para desejar um Natal Feliz, cheio de amor e paz, junto de todos que ama e agradecer as palavras de carinho de sempre.
Beijinhos com carinho
Sonhadora
♥♫ Querido amigo,
"Que o Natal não seja apenas uma data... mas um estado de espírito a orientar nossas vidas... e que o amor se renove a cada ano da nossa convivência."
♫♫♫ Feliz Natal!!!
♥ Beijinhos.
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Amigo Manuel, hoje vim desejar-lhe um santo e feliz Natal.
Beijinhos
Fantástica reviravolta!
Sempre com vontade de nos fazer cair de cú com a surpresa... e conseguiu!
BOAS FESTAS e que 2011 traga muita inspiração para mais escritas fantásticas!
Que 2011 venha recheado de chocolate, enfeitado com estrelas e num prato dourado como o sol.
Beijo
ave Manuel, parace Matrix....
afinal, onde está a realidade?
Amigo, meu rei, vim aqui nào para te ler, mas não resisti. Quero agradecer pela amizade, carinho, pensamentos, paciência e atenção que vc me dedicou neste ano.
Ano que vem, vamos seguir, firmes e fortes.
Um grande beijo
Muita mestria amigo Manuel.
Encantado com o desfecho.
Sabe que tenho andado com pouco tempo e tive de reler para me situar. Valeu, ler os capítulos de uma assentada.
Venho agradecer a amabilidade de me fazer companhia e de ter o privilégio de ler seus contos.
O ano que agora finda foi um pouco melhor com o seu incentivo e amizade.
Desejo para si e para os seus um 2011, tranquilo e com muitas alegrias.
Até já...
Kandandos.
Muito bom Manuel.
Fez-nos acreditar em poderes sobrenaturais, mas afinal tudo não passava de um sonho.
Uma coisa tão normal, mas mesmo assim estivemos até ao fim a acreditar que algo muito estranho e bizarro estava a acontecer.
Gosto assim, finais inesperados :)
Aproveito para lhe desejar um óptimo 2011, repleto de felicidade e sucesso profissional e pessoal.
E claro, espero que 2011 seja também um ano de boas postagens, tal como 2010 :)
Beijinhos,
Menina do Cantinho
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