quarta-feira, 28 de abril de 2010

Inquietudes





Há coisas que já não sei descrever. Não porque me falte o engenho, mas a memória perde-se nos meandros de outras histórias, que se deixam entrelaçar e acabam confundidas no emaranhado de recordações que habitam nas conexões sinápticas do meu cansado cérebro.

Tenho a ideia, um pouco baralhada, dos rostos que povoam o meu pensamento mas os nomes, esses, já os vou misturando.

As cenas andam presentes nos episódios que guardo na ânsia de um dia os expor nestas linhas, alinhadas num ordenado carreiro de lembranças, são momentos que me marcaram e que se me colaram à pele, como tatuagens que nem o tempo consegue apagar.

Os sítios são, sempre, aqueles onde os meus pés calcorrearam a desinquietude própria de quem tem pressa de crescer para encontrar o espaço a que julgava ter direito.

Quando me lembro há sempre umas lágrimas a adornar um sulco na saudade. Não da magia dos tempos maus e difíceis, mas da nostalgia duns pés que caminhavam sem cansaço e de um corpo escorreito e incólume ao frio e ao calor. É uma melancolia da vida.

Depois, deixo-me embrenhar nestas cogitações e acabo por olvidar o que tinha para contar.

Confesso que me esqueci e garanto que era importante.

Pode ser que outro dia me lembre.

Se voltar á memória eu conto.

Juro.


sábado, 24 de abril de 2010

Aqueles olhos





Deixaram a sua aldeia com a mágoa estampada no rosto e um nó no peito, que os deixava como se estivessem desenraizados na grande cidade.

Em duas malas os parcos haveres de uma vida que iam agora começar.

Ele ia trabalhar numa obra junto ao seu padrinho Arnaldo, que os mandou vir e lhe arranjou o emprego.

Ela ia servir na casa de uma senhora, parece que era doutora, ou outra coisa assim.

Á noite juntavam-se no quarto que alugaram naquele terceiro andar da Rua da Esperança.

Falavam das coisas do dia. Ele da sua arte em misturar a areia e o cimento, dando a consistência para os pedreiros construírem as casas, como a que um dia ainda iriam ter.

Ela falava, vaidosa, de uma patroa que era doutora e do filho que tinha uns olhos lindos, grandes e verdes como nunca antes tinha visto alguns.

Dizia embevecida;

-Sabes Abílio, que quando tiver um filho gostava que tivesse uns olhos como aqueles.

Vou pedir a Deus.

-Valha-te Santa Eulália mulher! Como pode ser se os teus são escuros e os meus também e assim a modos que meio remelosos? Como podia um cachopo ter os olhos como dizes?

-Que falta de fé homem. Deus pode fazer tudo assim nós saibamos pedir,

Os tempos passaram, na monotonia das horas de dias vividos, no amassar do barro ou do lavar da roupa que outros sujaram.

Um dia, na quietude do fim de um dia de trabalho, Arménia olhou censoriamente para o seu homem:

-Sabes Abílio, eu sempre te disse para teres cuidado mas tu não me ouves e agora parece que estou prenha. Amanhã, a minha senhora disse que me levava uma coisa para fazer a análise. Não sei que vai ser de nós?

-Mulher tudo se há-de arranjar.

O tempo deu tempo ao tempo e a semente deu origem ao fruto.

Arménia e Abílio foram pais de um lindo bebé de olhos grandes e verdes como a esperança.

-Ai Abílio parece que Deus ouviu as minhas preces.



quarta-feira, 21 de abril de 2010

A carta




Querida Joana

Devia estar zangado contigo mas não, a minha grande capacidade de perdoar fez-me esquecer esta tua falta, muito grave, e para a qual merecias castigo. Mas sabes como gosto de ti e por isso, por vezes, vais abusando.

No Domingo, dia das visitas aqui na prisão, estive na maior inquietação esperando a tua chegada em vão, não aparecestes. Fiquei admirado, mas ao mesmo tempo pensei que se calhar foi com receio que estivesse zangado contigo. Não estou, mas devia estar, pois o teu comportamento foi muito mau.

Eu sei que se calhar fui um pouco mais duro do que devia, mas sabes que o meu grande amor por ti é que me leva a ter, por vezes, estas atitudes um pouco mais enérgicas.

Quando o polícia chegou, chamado por algum vizinho, eu praticamente mal te tinha tocado e as marcas da tua cara foram por que tivestes o azar de cair mal.

De vez em quando sou obrigado a castigar-te, tenho que corrigir essa tua mania de independência, essas coisas malucas que aprendes na televisão, essas baboseiras de mulheres frustradas e que não tem um marido, como tu, que as eduque e lhes ensine qual o lugar da mulher.

Eu sei que te tenho batido algumas vezes, mas tu também sabes que o faço por amor, pois se te não amasse não me preocuparia contigo. E tu não queres isso pois não?

A primeira vez, como me lembro, foi porque tu querias por baton nos lábios, como se uma boca tão bonita necessita-se dessas porcarias.

Depois houve mais vezes mas sempre, e sabes bem, com razão. Tens que aprender as regras para seres uma boa esposa e um dia, quem sabe, uma boa mãe.

As pessoas não percebem que como é preciso castigar os miúdos, as mulheres também precisam de aprender as normas da obediência para depois poderem ensinar às filhas.

Tens alguma dificuldade em perceber isto mas tens que te habituar.

Quando te lamentas e dizes que eu não era assim estás enganada, pois sempre fui pelo respeito e pelas regras mas, pensava que os teus pais te tivessem explicado como te devias comportar com o teu marido.

Houve um dia, confesso que fui um pouco violento, e te fracturei o braço sem querer, pois, como podia adivinhar que ias cair numa posição tão pouco vantajosa?

Mas tudo passou e eu vou perdoando as tuas reacções e, sempre te vou buscar a casa dos teus pais quando foges.

Agora, quando sair daqui, as coisas vão ser diferentes, vou tentar não te castigar com violência mas... tu tens que ajudar.

No Domingo, quando vieres, trás comida porque aqui o que nos dão é uma merda e, sabes como eu sou com o comer.

Já te castiguei uma vez por causa disso, lembrastes?

Mas aprendestes!

Como vês não é assim tão difícil.

Espero que te portes bem e que eu não tenha necessidade de te por na ordem quando formos para casa.

Com muitas saudades do teu

Libanio


quinta-feira, 15 de abril de 2010

A Gazeta



Dia 15 de Setembro de 1970

Notícia da primeira página do Jornal “A Gazeta do Dia”:

A Doutora Maria Odete Ramalho, a nossa estimada médica, foi encontrada hoje de manhã, morta na sua residência.
Segundo o que nos foi dado a conhecer suspeita-se que tenha posto termo à própria vida.
Os familiares e amigos estão consternados e não vem que motivos a poderão ter levado a este trágico acto.
Só a autópsia poderá esclarecer convenientemente o que se terá passado.
À família enlutada apresentamos as nossas sentidas condolências.


Dia 1 de Outubro de 1970

Notícia da terceira página do Jornal “A Gazeta do Dia”

Um comunicado publicado pela Policia Judiciária revela que, pelas análises e pesquisas feitas, se chegou à conclusão que a causa da morte da Doutora Maria Odete Ramalho foi o suicídio, pela ingestão de um potente veneno que se suspeita ser Estricina.
Estricina é um poderoso veneno para o qual não se conhecem antídotos.
Posta de parte a hipótese de crime a P.J. vai continuar na averiguação dos motivos, que podem ter dado origem a este nefasto acontecimento.

Dia 14 de Setembro de 2000

Página 246 do Diário da Doutora Sofia Pinto Lacerda

Meu querido diário, vão passados 30 anos de insónias, pesadelos e angústias. Pensava que com o desaparecimento da Maria Odete o descanso voltaria à minha vida, mas puro engano.
Durante o dia, com a azáfama da clínica e o carinho dos meus pacientes, suporto mais facilmente mas as noites são grandes e dolorosas.
São os hipnóticos a única solução que encontro para o descanso que me permita levar a minha vida de trabalho. O facto de ser médica tem ajudado mas as habituações são constantes e a minha saúde sinto-a minada e cada vez mais frágil.
Naquela maldito dia 14, há trinta anos, pensei que tinha encontrado a solução e que fazendo desaparecer a causadora da minha infelicidade a vida podia voltar-me a sorrir.
Mas não, o Ricardo não voltou. O Ricardo foi, continua a ser, o grande amor da minha vida. Tínhamos projectado o nosso futuro na base desse amor que fomos alicerçando desde o tempo da Faculdade onde os três cursamos.
Éramos dois mas sentíamos a vida como se apenas fossemos um.
Um dia, ela, roubou-me o amor da minha vida, levou-me a razão do meu viver. Um dia, ela, arrancou-me a outra parte do meu eu, fiquei truncada da maior porção de mim.
Perdi a amiga e perdi o homem que me preenchia. Ganhei dentro de mim o ódio, o rancor e o desejo de vingança.
O entusiasmo deles durou apenas dois anos, pois o Ricardo não aguentou mais, deixou tudo e fugiu para África. Fugiu dela, pensei, quem sabe se um dia não poderá voltar para mim?
Naquele dia 14 fui fazer-lhe uma visita. Nem sequer ficou surpreendida, recebeu-me como se a minha ida fosse, ainda, habitual.
Falamos de nada na confrangedora situação da ambiguidade. Falou do Ricardo, como se houvesse alguma coisa a falar
-Sabes, O Ricardo fez-me a mim o mesmo que te fez a ti. Usou, abusou e quando estava farto desapareceu.
Apeteceu-me perder a calma, mas não.
Ela roubou-mo e sabe que fugiu porque não aguentou as leviandades e as frivolidades a que o sujeitava.
Perguntou, quase cerimoniosamente:
-Queres um chá?
Não queria outra coisa, não pelo chá, mas pela ocasião.
Colocou duas chávenas na mesa e foi buscar os biscoitos. Era a hora para verter o produto na xícara.
Estava nervosa. Bebeu enquanto ia mordiscando o biscoito. Depois foram os espasmos, as convulsões a asfixia. Olhou-me como que a pedir ajuda. Sorri. Lavei e arrumei a minha chávena. Fui embora, Nunca lá tinha estado.
Agora, meu diário, estou a dar-te a conhecer, pela primeira vez, ao fim de trinta anos.
Não estou arrependida, mas estou infeliz porque não valeu a pena e o preço que tenho pago é demasiado alto.

Dia 13 de Dezembro de 1970

Notícia da primeira página do Jornal “A Gazeta do Dia”

Vítima de doença prolongada morreu, esta madrugada, no Hospital Central a Doutora Sofia Pinto Lacerda.
Tinha acabado de completar 56 anos esta eminente cirurgiã a quem, a nossa sociedade, muito fica a dever.
O funeral realiza-se amanhã, pelas 12 horas, para o Cemitério local.
À família enlutada apresentamos as nossas sentidas condolências.


domingo, 11 de abril de 2010

O Avejão



Esta história parece mais uma estória mas não, aconteceu mesmo numa pequena aldeia alentejana.


Foi há muitos anos mas as coisas continuam presentes como se tivesse sido ontem.

O tempo passa e muitas recordações vão-se esvaindo no percurso de um esquecimento que a pouco e pouco nos vai tomando, mas outras ficam enraizadas e passam a fazer parte de nós, como um sinal que nos marca e não nos deixa nunca mais.

Quando tento que as recordações que me perseguem, se esfumem no entorpecimento natural dum cérebro que envelhece, fico surpreendido porque elas persistem com um brilho que as torna cada vez mais firmes.

Às vezes, são tantas vezes, quero esquecer e deixo os meus pensamentos entrarem por outros meandros, ziguezagueando em quiméricos pensamentos e, as ideias, ficam perdidas como se nunca tivesses existido.

Mas essa quietude rapidamente se desvanece e as recordações voltam e ficam exigindo que as não deixe esquecer.

O Outono corria célere e as tardes eram curtas, pois o escuro bem cedo tomava conta do dia, e obrigava a que todos tivessem pressa de se aconchegar junto às lareiras que aqueciam as frias noites. Os mais afoitos, por vezes, acalentavam a alma e o corpo num copo antes de se recolherem ao seguro das portas, bem trancadas, das suas casas.

Depois das nove não se via vivalma na aldeia, pois o medo estava instalado e mesmo os mais afoitos, ou que se diziam como tal, fumavam o ultimo cigarro para a janela do quintal, pois para a rua a coragem não os deixava.

Era por essa hora que as coisas estranhas e demoníacas, como pensavam, se tornavam mais intensas e os barulhos de correntes que se arrastavam penosamente só podiam ser de almas que tinham que carregar todos os pecados que as acompanharam.

Ninguém se atrevia a espreitar pois, diziam os mais entendidos, que quem as avistasse podia ficar possuído para todo o sempre, pela penosa incumbência de trazer amarrada ao corpo a desdita de um arrastar de tantos males.

Um dia, houve quem se arriscasse a espreitar por uma fisga da velha porta e pareceu-lhe lobrigar, entre o escuro da noite, um vulto negro onde pequenos reflexos de fogo queriam iluminar, fugazmente, um rosto perdido no breu.

O medo estava instalado, as mulheres já tinham receio de sair mesmo de dia. Os homens, esses, diziam-se valentes mas andavam silenciosos e cabisbaixos.

Era preciso tomar uma solução e as autoridades da aldeia tinham-se escusado a tratar de coisas não terrenas pois, diziam eles, a sua incumbência era resguardar da ordem e respeito público.

Foi então que José da Boina, Chico da Aurora e Policarpo do Café Central resolveram fazer uma espera a esses penados medos que os atormentavam e dar descanso a quem lhos estava a tirar.

Muniram-se das coisas necessárias para estas incumbências, um crucifixo benzido pelo Padre Miguel, um frasco com água benta para aspergir alguma alma mais afoita e uns dentes de alho para refrear algum instinto mais vampiresco e lá foram ficar de tocaia na esquina da Travessa Nova, que era o sítio onde mais se notavam os fenómenos.

Pouco passava das 10 da noite e os corpos dos três foram percorridos por frémito de medo pois o barulho que se aproximava era aquele que ali os tinha levado.

Chico da Aurora, tal como lhe ensinaram, saltou com o crucifixo ao alto saiu gritando:

-Vá de retro Satanás

O pobre espírito ainda quis fugir mas as pernas enredaram-se nas correntes e estatelou-se no empedrado da rua, para tranquilidade dos três valentes que lhe fizeram frente.

As almas penadas, perdão a alma penada, era o Professor Simões que arranjou esta artimanha para poder ir ter com a sua amante sem arriscar ser visto por alguém que, um dia, pudesse contar ao ausente marido os devaneios da esposa solitária.

Afinal o medo que a todos apoquentava era só um artifício que o amor arranjou.

Acho que o deviam perdoar.

sábado, 3 de abril de 2010

O milagre



Há muito que o pensamento não o deixava tranquilo.

Queria mas não era fácil.

Muitas noites acordava com uma voz que lhe gritava aos ouvidos:
-Vai, tens que o fazer!

No decorrer do dia ia deixando que os pensamentos negros se esfumassem nos problemas do quotidiano.

Havia uma monotonia de factos, uma onda de vazios que enchiam o eco que o acompanhavam.

Não eram propriamente insónias que lhe perturbavam e confundiam o sono, mas sobretudo um choque de pesadelos fantasmagóricos que povoavam a sua conturbada mente.

Por vezes, tantas vezes, acordava alagado no suor da perturbação de pensamentos que o conduziam a uma falsa libertação.

Ouvia gritos, gritos que queriam ser libertadores mas apenas tinham o condão de o deixarem mais, e mais, agarrado a essa louca necessidade de acabar com o sofrimento de um vazio que o enchia de medos e frustrações, que se alapavam no seu conturbado pensamento.

Não queria mas parecia ser a única solução, a única forma de o libertar dessa amálgama de medos que o sufocavam e angustiavam.

Nada lhe saía bem. A mulher, sem olhar para trás, partiu com um funâmbulo do circo que visitou a aldeia. Deixou num pequeno papel razões para essa fuga ao ócio num panorama limitado. Queria mais, precisava de espaço.

Inácio quis chorar, quis gritar toda a frustração do abandona mas as lágrimas tinham secado e a garganta calou os sons.

Queria desistir, o fim podia ser o princípio do descanso que a vida lhe tinha tirado.
Tinha um baraço forte, de sisal entrançado, que servia para segurar o baloiço onde ELA se deixava embalar, ao fim do dia, no remanso de uma canção do Júlio Iglésias.

Ia fazer um laço à volta do pescoço e tal como o outro, o da Bíblia, escolheria uma oliveira, árvore que dá vida e que pode levar a existência de quem da vida mais nada espera.

Manhã cedo, na timidez de um Sol que despertava para o dia, foi à procura da árvore da vida.

Era uma oliveira imponente, nodosa e onde os reflexos dum Sol que despertava inundavam o olhar de verde de oiro.

Subiu na força do braço onde repousava inerte o baraço que o ia libertar de todo o cansaço.

Prendeu-o no tronco mais forte capaz de o segurar quando se libertasse na procura do espaço que nunca encontrou.

Olhou em redor numa despedida, quiçá, já com saudades desta vida.

Ali, mesmo ao lado, num ninho tosco e desajeitado pipilavam duas aves implumes, bicos abertos num desespero de olhos fechados, quase monstros na agonioza procura de uma mãe que não apareceu quando se libertaram daqueles cascas em que metamorfosearam durante doze dias.

Deu-se o milagre Inácio encontrou, finalmente, uma razão.

Tirou a corda, pegou no ninho e correu para casa.

Queria viver para cuidar das duas rolas que o destino lhe colocou no caminho.

Agora tinha um motivo

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