quinta-feira, 13 de maio de 2010

Pobre cão




O cão não tinha culpa mas levou um pontapé e ganiu de dor.

Foi-se anichar debaixo de uma mesa com um olhar tão triste que metia dó.

Era sempre assim, irascível com os mais fracos e na sua covarde frustração batia nos que não se podiam defender.

Hoje foi humilhado, enxovalhado na presença de todos. Corou, resmungou entre dentes, boca cheia de impropérios que ninguém percebeu. Meteu o rabo entre as pernas e saiu espumando a raiva em frases surdas.

Foi jurando vingança que começou no pobre animal que sem saber porque, sentiu no lombo o bico da bota. Se não fosse o dono as coisas seriam diferentes, pois não era bicho para se ficar.

A segunda vítima foi uma cadeira que voou contra a parede e se quedou estática de pernas para o ar.

Depois largou tudo e, no refúgio do lar, chorou todo o seu desapontamento em soluços, convulsivos, fundos de ódio e de vinganças anunciadas.

Quando acalmou fez uma festa no pobre bicho que se tinha enroscado aos seus pés, com um olhar tão triste que metia dó.

-Desculpa tu não tens culpa, mas enquanto não descobrir e matar o sacana do padre que me desgraçou perco as estribeiras e não dou conta de mim.

O Lorde parece que percebeu, abanou a cauda e lambeu a bota que, há pouco, tão mal o tratara.

-Ouve cão, eu vou descobrir esse malvado, vou-lhe furar os olhos, arrancar-lhe a língua e cortar-lhe algo que os padres não deviam usar.

O animal ficou assustado, toda essa raiva estava a meter-lhe medo e ele não sabia que parte lhe podia estar reservada. Mas o dono, desta vez, percebeu o receio e tranquilizou:

-Não te assustes, quando matar o filho da puta que me violou, há quinze anos na catequese, o meu pesadelo termina e vou ser o melhor dono do mundo.

O cão latiu, abanou o rabo e voltou a enroscar-se aos pés do dono.

domingo, 9 de maio de 2010

Último olhar




As imagens são longínquas e encontram-se muito esbatidas no álbum da memória.

Fogachos iluminam, a curto espaço, a dormência de um cérebro confuso num emaranhado de emoções que morrem logo que tentam nascer.

Por vezes, parece querer sorrir e a boca desdentada faz um ligeiro esgar numa procura de articulação, que teima em não responder ao fraco estímulo de um cérebro já meio parado.

O olhar, difuso, vagueia como chama a bruxulear num sopro, numa aparente tentativa de encontrar algo que já não sabe bem o que é.

Os olhos piscos, deixam antever fogachos de uns recônditos flashes de memória que logo se esbatem em ténuas imagens pardacentas.

Esteve, até ontem, num pardieiro a que chamavam lar. Depósito de velhos que estiolam no recôndito de lembranças, olhos parados no tempo. Abandonados em recordações que os povoam e na tristeza em não descobrir o motivo. Largados, quase esquecidos. A filha, doutora, é a recompensa duma vida de lutas e sacrifícios.

O coração cansou e deu o primeiro alerta.

Hoje na cama o hospital espera, não sabe bem o que, mas espera.

Sabe que o fim não tarda já soam, ao longe, as trombetas que ribombam, já vislumbra o anjo negro que se aproxima.

Ainda olhou num olhar desbotado mas a filha não apareceu.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Na esquina.




Julgo que se chamava Joana, não me lembro bem e isso pouco importa.

O que mantenho bem presente são os olhos melancólicos, seráficos e de uma languidez perturbadora.

Quando sorria, um raio de luz invadia os nossos sentidos e um rodopio de prazer tomava conta do nosso ser.

Ficávamos num misto de êxtase e enlevo.

Um dia deixou de aparecer.

Tudo ficou diferente, a luz deixou de nos iluminar da mesma forma, estava mais turva.

Bebíamos, na mesma, a nossa bebida mas parecia que o sabor também tinha desaparecido.

As horas enrolaram-se em dias, os dias viraram meses, os meses foram tragados na voragem dos anos.

Um dia, sentada na esquina suja de uma triste viela vi uns olhos. A luz desaparecera mas a languidez era a mesma.

Olhei-a na esperança de um lampejo de conhecimento, mas apenas vi umas orbitas que me olhavam mas já não me viam.

Pareciam observar mas a vida tinha fugido e apagado a luz que iluminava a nossas tardes no café.

A última dose foi demais.