sexta-feira, 30 de julho de 2010

A caixa de bombons




Olhou ao longo do bar numa forma até certo ponto desafiadora. Foi um olhar que pretendia ser intimidatório mas acabou por ser um pouco ridículo, pois naquela imensidão de corpos a retorcerem-se ao som de uma banda da moda ninguém parecia interessada em olhares que pretendiam ser tesos.

Ficou um pouco frustrado, pois andou ensaiando esse ar de duro durante toda a semana para fazer uma entrada triunfal e poder impressionar a Leonor.
Pensava, ele, que a rapariga podia ficar seduzida por um olhar de macho latino, um olhar que pretendia varar o coração da doce mulher que o mantinha perdidamente apaixonado.

Já tinha tentado, mais do que uma vez, uma aproximação subtil mas a rapariga parecia não notar as tentativas de acerco de Faísca. Bom, Faísca não era o seu verdadeiro nome mas apenas uma alcunha herdade do seu pai, que por sua vez a tinha herdado do avô.

Tinha pensado ir ao bar, pois ali ao som da música e no frenesim da dança as coisas podiam ser mais fáceis.
Nunca tinha ida a um bar, mas nos filmes via entrar o artista com um ar electrizante, dar um murro no balcão, sorver uma bebida forte e passado um nada estar a beijar sofregamente a rapariga.

Se nos filmes era assim e, como dizem que os filmes são o espelho da realidade, Faísca pensou, vou fazer o mesmo e no fim a Leonor deixa o balcão onde enche copos e anicha-se nos braços do seu herói.

Mas coisas não saíram como planeara, pois ninguém o levou a sério, não conseguiu chegar ao balcão para a tal bebida e a rapariga nem sequer a viu.

Não aguentou a pressão e saiu desiludido. Voltaria outro dia com a lição melhor estudada e, certo de, finalmente conseguir conquistar esse coração que tão arisco se estava a tornar.

Se calhar foi um pouco brusco nessa investida de rompante e, quem sabe, a Leonor tão doce não gostava das coisas dessa maneira.

Ia pedir ajuda ao seu amigo Inácio, tipo sabido e prático nessas coisas de mulheres.
Diziam que nenhuma lhe escapava.

O Inácio aconselhou-o a enviar um ramo de flores, mas não tinha jeito para essas coisas que lhe pareciam tão amaricadas. Onde se viu um homem, macho, com um raminho de flores na mão a caminho do bar? Não, essa de flores não pega, flores é coisa de tipos abichanados e o Faísca não era dessas coisas.

A Leonor era um primor, rapariga alinhada que não dava confiança a qualquer um. Na rua andava sempre aprumada, olhando em frente e sem perder tempo a falar ou cumprimentar os vizinhos. Mostrava ser uma cachopa ocupada e responsável.

As pessoas não sabiam bem qual era a sua vida mas, diziam, devia ganhar bem, pois andava sempre muito bem vestida e tinha um belo carro. Tinham dito que era empregada de balcão num bar famoso, se calhar gerente ou quem sabe até dona.

Por fortuna tinha descoberto onde trabalhava , pois ela não o dizia a ninguém, mas o Adérito um dia tinha topada a tipa a entrar para o bar e o porteiro confirmou-lhe que trabalhava ali, foi uma sorte do caraças.

Faísca estava preocupado, pois estava interessado em conquistar aquele difícil coração. A primeira tentativa não tinha corrido lá muito bem, pois saiu confundido daquele barulhento bar sem sequer ter visto a mulher que levava no pensamento. Não a enxergou ao balcão, se calhar como era gerente devia estar num gabinete coberto de espelhos, tal como se via nas fitas.

Voltou a falar com o Inácio, experiente em mulheres, e ele tenha aconselhado uma visita especial, bem preparada e que deixaria logo a garota impressionada.

Ia aparecer bem vestido e perfumado, se calhar até tomava um banho, embora isso não se visse, mas sempre refrescava o corpo.

Já tinha encomendado na pastelaria do Tinoco uma caixa de bombos com um embrulho bem caprichado.

Ela não ia resistir e, não tardava, andariam a passear à beira mar de mãos bem entrelaçadas.

Andava nervoso, já tinha namorado algumas garinas, mas sem interesse, gajas básicas que nem sabiam andar de saltos altos como a Leonor, que se bamboleava naquelas andas como se isso fosse a coisa mais natural deste mundo. Era lindo de se ver em suaves requebros, que levavam a cabeça de um homem embalada em pensamentos lascivos e sensuais.

Estava preparado para sábado à noite, até comprou na loja do chinês uma gravata, pois a que tinha estava mais sebosa que a bata do Zé do talho.

Não ia tomar aqueles ares radicais como da última vez, porque afinal ninguém lhe ligou e só fez uma figura um pouco parva.

Estava um pouco sem jeito, com o embrulho dos bombos na mão, mas o Inácio dizia que era importante e o gajo percebia de engates.

O bar estava a abarrotar, a musica entrava nos ouvidos e deixava um tipo atordoado.

O pessoal abanava-se uns frente aos outros numa espécie de dança parva, pois em vez de estarem agarrados apenas se abanavam sem se perceber quem dançava com quem.
Mas para o Faísca pouco interessava, ele queria mesmo era descortinar naquela multidão a sua eleita.

Andou perdido nos encontrões, olhou todos os cantos do balcão, espreitou todas as portas a ver se alguma se abria e fazia surgir a sua paixão.

De repente descobriu na mesa do canto a Leonor, sentada no colo de um velho gordo, sendo apalpada por umas mãos papudas e em risadas vendidas ia beijando a testa suada do javardo que a tinha alapada.

Não quis ver mais nada, saiu disparado daquela confusão, respirou o ar fresco da noite e sentou-se num degrau a comer os bombos da desilusão.

Afinal a Leonor não era dona, nem gerente mas apenas uma prostituta no bar.


sábado, 24 de julho de 2010

A recusa







Pousou os cotovelos no encardido balcão mirou a empregada nos olhos e pediu um café.

Estava nervoso e isso via-se na forma como se agitava, no entrelaçar das mãos e num ligeiro tique nos olhos.

Olhou, mais uma vez, a empregada que de soslaio também o ia observando enquanto maquinalmente ia tirando o café.

-O senhor parece preocupado, atirou ela.

Olhou-a de forma displicente e sorriu.

-Estou um pouco chateado. Sabe? É a vida.

Ela acenou a cabeça em sinal de compreensão, sabia como a vida era difícil.

O homem continuava no canto do balcão, sorvendo o café em pequenos goles e olhando abstracto para um vazio que só ele via.

Era agora ela que parecia agitada, limpando a louça de forma um pouco descoordenada e olhando, de forma um pouco descarada, o cliente que continuava absorto contemplando uma chávena vazia.

Era um homem interessante, pensava Beatriz, enquanto paulatinamente ia arrumando as chávenas que ia retirando da máquina de lavar.

-Vou fechar, disse ela com um sorriso enlevado.

-Quer ir jantar comigo? Atirou ele, com um esgar a fingir um sorriso que não chegou a nascer

Beatriz corou, um intenso rubor tomou conta do seu rosto. Ficou sem saber que dizer, não queria parecer fácil, a vontade dizia-lhe que sim mas a prudência dizia-lhe que não.

Fingiu não ter ouvido o convite na esperança que ele o repetisse.

-Dá-me uma garrafa de água fresca, pediu o homem.

-Aqui está, agora desculpe, mas tenho que fechar o café disse Beatriz.

Ele, com o mesmo trejeito, repetiu o convite:

-Mas não quer vir jantar comigo?

-Mas eu não o conheço! Disse Beatriz com um ar tão cândido que, quase, parecia verdade.

Mirou-a com um franzir de sobrolho, rutilou os olhos num fogacho sem brilho. Atirou umas moedas para cima do balcão e saiu para o escuro da noite que ia caindo.

Beatriz ainda lhe apeteceu fazer a vontade ao que a desejo lhe pedia, quis aceitar esse jantar que o destino lhe colocou no balcão encardido do pequeno café, onde as ilusões morriam diluídas nos cheiros acres dos bagaços que as gargantas ressequidas tragavam em sorvos ligeiros.

*********

Apagou as luzes, fechou a porta e embrenhou-se no breu que a tragou na esquina da rua.

Foi então que uns braços fortes lhe envolveram o pescoço, mal podia respirar e apenas o hálito quente do homem lhe aquecia a nuca e a voz áspera lhe agredia os ouvidos:

-Ouve, minha puta, convidei-te para jantar e apenas o silencio me respondeu. Não aceito negas. Se tivesses vindo talvez te comesse e te deixasse ir à tua vida, mas quisestes ser pudica e agora vais pagar.

*********

Encontraram-na de madrugada, ainda tinha sinais de vida que lentamente se ia esvaindo pelo corte profundo que a havia degolado



quinta-feira, 15 de julho de 2010

O convite





Talvez fossem os olhos que me fascinaram.
Fundos e de uma negrura que me deixaram perturbado.

Não é que eu me atarante com facilidade, mas aqueles olhos mexiam comigo.
Eram intensos e frios, pareciam dois gumes de aço prontos a cortar.

E era pena, pois o sorriso era radioso como o nascer do Sol.

Mas os olhos, esses tinham algo de soturno e, ao mesmo tempo de misterioso, que me deixava desconfortável.

Quando se sentou na cadeira, à frente da minha secretária, não cruzou as pernas deixando-me um pouco desiludido pois, nos filmes, é normal cruzarem as pernas num enorme mostrar de calcinha.

Mas tive azar, apenas juntou os joelhos e puxou a saia numa forma natural. Gesto casual mas de uma elegância que denotava ser pessoa de requinte.

Olhou-me com um sorriso de dentes que cintilavam em suaves reflexos de pérolas, os olhos rebolaram de uma forma tão lânguida que senti um formigueiro a tomar conta de mim.

Tentei fingir não me deixar impressionar e aguçando a voz perguntei:
-A que devo a sua simpática visita?

Olhou-me, mais uma vez, daquela maneira que arrepia, pousou as mãos na minha secretária, aproximou a boca do meu ouvido e segredou:
-Quero pagar-lhe para matar o meu marido! Quanto leva?

Fiquei siderado, primeiro pela visão que um farto decote proporcionava, depois pelo insólito da desconcertante pergunta.

-Matar o seu marido? Quando levo? Mas a senhora endoideceu?

Olhou-me do fundo daqueles lagos frios e, com um calma desconcertante atirou:

-Não seja tonto eu sei que é detective e que se encarrega de casos difíceis.

-Minha senhora, balbuciei, eu trato de casos difíceis mas não sou assassino.

Sorriu, mostrou mais um pouco do que o decote tinha para desvendar. Semicerrou os olhos que ficaram como dois traços cintilantes e, com um rilhar de dentes sibilou:

-Não se faça difícil seu sacana!

Deitou-me as mãos ao pescoço e começou violentamente a sacudir-me.

Estava totalmente transtornada, colérica.

Tentei defender-me, gesticulei em vão. Era mais forte do que pensava e começava a sentir dificuldade em respirar, arrisquei lutar e ripostei com força. Levantei os braços e as pernas numa tentativa de me libertar.

Ia caindo da cama.

Maldito pesadelo.


segunda-feira, 12 de julho de 2010

A agonia do Belchior




Não me importo que seja tarde.

Eu sei, tenho plena consciente que os factos deveriam ter sido na altura própria. Tudo na vida tem a sua ocasião, as coisas estão feitas de forma a encaixar no momento, Depois parece que se cria um hiato, um vazio como se uma peça do puzzle ficasse por ajustar.

Mas por vezes, muitas vezes, deixamos o tempo passar e as realidades ficam fora de controlo, sem jeito, imprecisas.

Naquele Inverno as coisas precipitaram-se duma forma difícil de prever, parecia tudo normal, mas não, havia algo de diferente. Talvez fosse o cheiro da chuva, pois a chuva tem um cheiro muito especial, nem todos o notam, mas tem esse cheiro.

Depois, sim, depois as confusões que nos assaltam quando a nossa fragilidade é mais acentuada, fazem que a nossa visão fique mais reduzida e apenas conseguimos ver aquilo, apenas aquilo, que queremos ver.

Não sei explicar muito bem, pois há situações que me ultrapassam e, quando dou conta, já as coisas se enredaram de tal maneira que se quiser fazer algo apenas irei atrapalhar.

Mas, ando em redor do assunto sem coragem. Absorto como se nada tivesse acontecido. Talvez seja a minha inadaptação a assuntos melindrosos.

Mas um dia tenho que deitar fora a angustia que me persegue, tenho que contar para que o nó que me oprime se solte e as minhas noites passem a ser mais tranquilas.

Foi há três anos, mas as coisas estão tão presentes que pareço topa-las a cada momento.

Quando a GNR levou o professor Belchior a notícia ribombou na povoação como se uma bomba tivesse deflagrado.

Não era que motivasse muito espanto, pois o professor sempre foi um tipo esquisito, meloso e um pouco melífluo. Os homens normalmente diziam que o gajo era maricas, com aquele ar untuoso e saracoteado, mas nunca esperaram que as coisas tivessem este fim tão traumatizante para este povo habituado a uma vida linear e sem escândalos a assombrar a quietude do dia-a-dia.

Agora com a detenção por abuso, ou tentativa, de uma menor de seis anos era demasiado chocante para este povo. Ninguém pensava noutra coisa, era um nojo e indignação que se sentia, era como que um envergonhar colectivo, como se o pecado fosse geral, como se todos tivessem culpa, como se qualquer se sentisse responsável.

Mas, bradem aos céus, quando o povo soube que o maldito foi mandado em paz como se nada se tivesse passado então, a indignação tomou conta de todos como se uma peste se tivesse espalhado, o juiz, quem sabe se não pedófilo, mandou o professor Belchior em paz para a sua vida e para as suas pobres crianças, pois não reconheceu nada de mal no comportamento.

-Quem sabe, disse ele, se não foi a menina que se lembrou de manchar o bom nome deste pobre mestre?

Foi então que as coisas começaram a tomar este rumo, que me trouxe toda a angustia que carrego.

Foi o Chico da Murteira, tio da pequena abusada, quem teve a ideia. Naquele seu jeito um pouco enigmático, disse:

-Se fossemos, os oito, falar com esse tal de professor e tirar a limpo o que se passou?

Olhamos uns para os outros, baralhados e confusos, pensando se seria uma boa ideia.

Mas, na calada da noite, fomos todos, Chico Murteira, Zé Pedro, António Faria, Albano Pocinhas, Manuel Almeida, João Augusto, Armando Coitado e eu, Fred, como qualquer me conhece.

Quando batemos à porta do professos houve como que uma comunhão de pensamentos, ou melhor, houve como que um esvaziar de entendimentos, pois todos nos olhamos confusos e sem saber bem ao que íamos.

O professor, grotesco num roupão, olhou incrédulo o aço frio de 16 olhos que o alvejavam em interrogações.

Mas, balbuciou:

-Em que posso ser útil?

Dezasseis mãos se ergueram mas só uma segurava o aceiro que seis vezes o perfurou.

Gritou como um porco no estertor da morte e, quase com graciosidade, deslizou por umas pernas que ficaram inertes e inúteis para sempre.

Foi-se, com um esgar de interrogação. Perdeu a vida nos golfes de sangue que iam purificando o espírito pérfido que aquele corpo albergava.

Nunca descobriram como morreu o professor.

Agora estou mais aliviado.

Já posso dormir mais tranquilo.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

O Regresso






Um vento frio brincou com os olhos estremunhados de Arnaldo.

Acordou confuso, numa posição grotesca, na pedra da porta de uma velha casa.

A cabeça parecia estourar num turbilhão de ideias confusas e totalmente descoordenadas.

Tinha a boca seca e um sabor a esponja suja dava-lhe uma enorme agonia.

Não sabia como tinha vindo aqui parar, ao fim da vila, mesmo no cruzamento da estrada onde dizem que as bruxas se juntam nas noites de lua cheia.

Ergueu o corpo dorido, com muito esforço pois tinha todas as articulações dormentes.~

Olhou em redor no desejo de ver aparecer alguém que o pudesse ajudar, alguma pessoa que o levasse a descobrir como veio aqui parar.

Tinha ideia de ter saído da Taberna do Zé da Corneta onde se tinha perdido nos odores dos petiscos e no suave sabor da pinga.

Depois, bem depois, há um escuro que lhe tolda o pensamento e não o deixa descobrir porque acordou no cruzamento das aparições.

* * * *
Eram três e apareceram do nada. Arnaldo só se apercebeu quando se viu agarrado por umas mãos fortes que o sufocavam contra a parede e por uma voz que gritava;

-O telemóvel, o relógio e o dinheiro. Vá rápido.

Não tinha o relógio, não usava telemóvel e o dinheiro fora gasto na taberna.

Sentiu a primeira pancada na cabeça, tentou manter o equilíbrio mas o murro no estômago obrigou-o a dobrar-se e caiu sobre um joelho que lhe deixou na boca um sabor doce a sangue, depois foi um negrume que o invadiu e o deixou dobrado numa posição grotesca, ouvia ao longe, muito ao longe, vozes que gritavam.

-O dinheiro pá.

Outra pancada e depois foi o silêncio e o escuro.

* * * *

Era a segunda vez que acordava hoje mas as dores, agora, eram mais agudas.

Estava deitado entre ligaduras e tubos que o amarravam a uma vida que parecia querer fugir.

Olhou à volta, mas apenas uns vultos difusos no enevoado dos seus olhos se perfilavam ao seu redor. As palavras estavam no seu pensamento mas a boca não as sabia balbuciar.

Fechou de novo os olhos e dormiu profundamente, sem dores e sem sonhos.

Quando acordou, muitos dias se tinham passado. Quantos não sabia.

Abriu os olhos a medo, tinha receio de descobrir em que mundo se encontrava.

A seu lado, estátua de dor e sofrimento, estava Zulmira que o olhava de forma tão terna que Arnaldo tentou esboçar um sorriso, em vão, apenas um esgar de dor assomou aos seus lábios.

-Não fales estás muito fraco, disse Zulmira numa voz que lhe pareceu vir de muito longe.Foste assaltado e quase te matavam, meu amor.
Eu esperava por ti e pensei as piores coisas e, afinal estavas a sofrer às mãos de meliantes, espero que me saibas perdoar.

Arnaldo conseguiu sorrir.

* * * *
Saiu passados quinze dias.

A desgraça mudou a vida de Zulmira e Arnaldo, a harmonia voltou à Casa Amarela.

Agora têm uma filha que os preenche e que os tornou muito mais felizes.

Zulmira não podia ter filhos, mas nada a impedia de ser mãe.

Adoptaram a Inês.