segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A gravidez da Joana





Joana tinha acabado de fazer treze anos, era muito infantil e ainda gostava de brincar com o seu boneco “Nenuco”, mas tinha que o fazer às escondidas
porque o seu irmão, Jorge de 18 anos, gozava com ela.

Os pais eram, como ela dizia, porreiros mas andavam sempre a discutir.

Hoje, entrou na cozinha e com o ar mais natural deste mundo gritou:

-Pessoal acho que estou grávida!

A mãe abriu a boca de espanto e ficou muda com um olhar esgazeado. O pai não se conteve e encontrou logo ali o bode expiatório, a mulher:

-A culpa é toda tua, se a tens educado como se educa uma rapariga nada disto
teria acontecido, mas não, vocês mulheres são todas a mesma coisa.

A mulher olhou-o de través e, chispando, como um toiro enraivecido atirou:

-Mas quem és tu para falar, inútil que nunca se importou nada com os filhos,
que nunca os acompanhou. Carregas tudo para cima de mim. És um zero que
sempre tens descartado os problemas e pões o cu de fora quando os há para resolver.

O filho mais velho olhava os coroas sem perceber aonde queria chegar com esta discussão. Se a Joana estava grávida havia que saber quem era o gajo e dar-lhe um enxerto de porrada e o assunto ficava resolvido. Mas não, os cotas discutiam sem saber resolver um assunto tão simples.

A Joana, coitada, estava meia confundida com o impacto que a sua exclamação tinha provocado. Mas afinal o que é que ela tinha feito assim de tão mal?

-Oh mãe porque é toda essa zaragata?

A mãe olhou-a, quase irada, e com um embargo na voz soltou:

-Joana não sabes o que dizes se calhar nem te apercebes que podes ter
estragado a tua e até a nossa vida!

A rapariga olhava a mãe, o pai e o irmão sem perceber onde estava o drama. O que tinha acontecido de tão grave para todos a olharem desta forma tão colérica. Desatou a chorar num pranto tão sentido que a mãe não resistiu e correu a abraçar a filha.

-Querida, grávida na tua idade! Isso nunca nos passou pela cabeça. Mas afinal quem é o culpado dessa desgraça?

Joana olhou a mãe cada vez muito confusa.

-Culpado? Acho que foi o feijão!

O pai esbugalhou os olhos.

O irmão esfregou a cabeça num gesto de quem não está a perceber nada do que
se está a passar e gritou;

-Quem é esse feijão que eu parto-o todo.

O pai mais comedido:

-Vamos resolver isto de uma forma civilizada.

A mãe, olhos brilhando de lágrimas:

-Querida quem é esse feijão?

Joana com os soluços a embargarem a voz exclamou.

-Mãe... foi o teu feijão. Comi o feijão guisado que deixas-te para o almoço e, não sei porque, comecei a ficar com a barriga inchada. Doía e fui ver à Internet o que fazer para me tratar. Procurei e dizia lá que barriga inchada podia ser sinal de gravidez.

Desatou num choro convulsivo, soluços que metiam dó:

-Pensei que o feijão me tinha deixado grávida. Eu não sabia que isso era mau.

Desculpem!




domingo, 17 de outubro de 2010

O desabafo da Dona Rosalina




Foi um raio de Sol que rompeu pela minha janela e que brincando com os meus olhos me trouxe para a realidade do dia.

Esfreguei os olhos tentando, por mais uns minutos, gozar da doçura da cama.

Levantei-me com algum esforço, os ossos já não são como antigamente e todas as articulações se vão queixando à medida que se têm que mover.

O dia estava lindo, e o chilreado dos pássaro era o pronuncio de um dia de calor.

Olhei pela janela e a azáfama diária já se ia instalando nas ruas. O homem do quiosque pendurava os jornais diários na expectativa que os títulos mais gritantes trouxessem os possíveis clientes.

Dona Rosalina saiu esbaforida do prédio e gritava de uma forma tão histérica que as pessoas tinham dificuldade em perceber o que ela dizia.

Estava totalmente transtornada, com um espanador na mão e os olhos esbugalhados ia apregoando:

-Está morto, mataram o Senhor Isidro! Chamem a polícia!


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Dona Rosalina fazia a limpeza no escritório que ficava no rés-do-chão do prédio em frente do meu.

Como em todos os outros dias, chegou cedo para poder estar despachada antes da entrada do pessoal mas, hoje, estranhou a luz acesa no gabinete do patrão, o Senhor Isidro.

Parecia estar a dormir, cabeça na secretária, olhos abertos mirando o vago.

-Que susto que o senhor me pregou! Exclamou Dona Rosalina.

Aproximou-se a medo e só então reparou que a poça de sangue que se espalhava no soalho escorria da cabeça do pobre homem.

Correu para a rua em gritos doidos e desesperados.


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A polícia estava totalmente confundida com as características deste crime.

Pelas análises periciais chegaram conclusão que a morte se terá verificado entre as 9 horas e as 23 horas da noite anterior e tinha sido agredido na zona anterior do crânio com um objecto contundente.


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O Senhor Isidro era o dono de uma empresa de artes gráficas, tinha a oficina nos arredores da cidade e o escritório neste prédio onde sucedeu o nefasto acontecimento, onde além do próprio, trabalhavam também o Senhor Onofre como responsável pela contabilidade, a menina Gracinda que se encarregava do secretariado e o senhor Pires encarregado do sector comercial.

Todos foram interrogados e conferidos os seus álibis. Não encontraram nada que os pudesse colocar no local do crime.

A menina Gracinda saiu, como todos os dias, por volta da 18, 30 h e foi directamente para casa onde ficou juntamente com o marido e a filha.

Os outros saíram, os dois, cerca das 19 horas, beberam uma cerveja no café ao lado do escritório e seguiram para as residências.

O senhor Onofre vivia com uma filha e o genro que puderam confirmar que chegou por volta das oito e meia e só voltou a sair de manhã para ir trabalhar.

O senhor Pires, que ainda vive com os pais, chegou por volta das oito horas, jantou e adormeceu frente ao televisor até a mãe o acordar para ir para a cama.

Os três garantiram que o patrão ficou no seu gabinete, que disseram até à manhã mas, como de costume, ele não respondeu.

O senhor Isidro tinha um feitio muito irascível, implicativo e sempre pronto a encontrar defeitos em tudo que os outros faziam. Para ele, só os clientes contavam, tudo o mais, era secundário.

Era, como dizia o senhor Pires, um indivíduo em que era difícil contar os inimigos e muito, mas mesmo muito, fácil contar os amigos.


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Passaram oito meses sem nunca terem descoberto quem possa ter dado cabo do canastro ao pobre senhor e, segundo parece, ninguém se mostrou muito preocupado com isso.

A Empresa voltou à rotina normal, o cargo da gerência foi ocupado por um irmão do morto, que fez com que a harmonia voltasse aquele escritório.

A polícia arquivou, parece que por inconclusivo, o processo.


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Hoje levantei-me mais cedo do que habitual e, por puro acaso, encontrei a Dona Rosalina que me sorriu:

-Olá senhor Doutor há muito que não o via, onde tem andado?

-Oh Dona Gracinda, o trabalho sabe como é! E a senhora que tem feito? Já não a via desde o dia em que o encontrou, sabe, no dia em que descobriu aquilo.

Com sorriso respondeu:

-Ah quando encontrei o gajo morto? Já foi para ai há nove meses.

Estranhei a calma da resposta mas:

-Pois foi! E nunca descobriram nada? Pobre homem!

Fez uma cara de desagrado e quase gritou:

-Pobre homem? Teve o que merecia, para não se meter com quem não devia. Sabe que ando doida por desabafar mas tenho medo.

-Mas fale comigo, sou um tumulo.

-Tenho receio, não vá o senhor doutor lixar-me.

-Mulher fale à vontade que eu juro, haja o que houver, diga o que disser
que nunca a minha boca se irá abrir.

-Então antes que rebente aqui vai, fui eu que estoirou os cornos daquele gajo!

Nesse dia fui à noite fazer a limpeza e o tipo ainda lá estava.
Começou com graças pensando que eu era uma qualquer. Mandei vir com ele e até pareceu que se acalmou até que entrei no seu gabinete o aspirar. Vai dai o sacana apalpou-me o rabo com a maior desfaçatez. Fiquei furiosa e dei-lhe com o tubo do aspirador nos cornos. Não se mexeu mais.

Juro senhor doutor que não queria fazer aquilo, só me defendi mas se calhar foi com força demais. Pirei-me logo para casa e voltei no outro dia de manhã como se não fosse nada comigo.

Fiz toda aquela fita e nunca ninguém me perguntou nada.

É para ver a polícia que temos!

Fiquei siderado, fui-me raspando enquanto lhe ia respondendo:

-Nunca me contou nada, juro que nunca falei consigo.
Passe bem Dona Rosalina.



quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Até que a morte nos separe





Tinham uma idade indefinida.

Ela, Dona Emília, tem uns olhos azuis encovados, orlados por um rendilhado de rugas, que mal deixam perceber aquelas duas pequenas safiras que miram o mundo de uma forma muito especial.

É tão velha que ela própria já perdeu a conta aos anos, fala em coisas de um passado longínquo, lembra acontecimentos de há muitos anos como se tivessem passado ainda ontem.

Ele, Senhor Sebastião, é tão velho como ela, mas os olhos já deixaram de brilhar. O tempo apagou a luz que o guiava, as pernas já deixaram de obedecer e o tino, muitas vezes, atraiçoa o pensamento. Já não consegue andar sozinho e é o braço fraco da Dona Emília que o ampara até ao banco onde, à porta, adormece perante os raios de Sol.

Vivem os dois naquele rés-do-chão do pátio das violetas. Os vizinhos são o seu amparo e a assistência social o seu modo de vida.

As queridas meninas, como diz a Dona Emília, todos os dias lhe levam a marmita com o alimento que os mantém.

No resto a Dona Emília consegue manter a casa, pensa ela, como sempre a tem mantido.

Tiveram uma filha que um dia abalou com um estrangeiro. Nunca mais deu notícias.

Trata do marido com um carinho e de forma tão protectora que, por vezes,
faz esquecer que já dobrou há muito a idade dourada.

Ela fala muito com ele, não sabemos se a escuta, pois em regra a sua mente anda longe, muito longe, tão distante quê se perde no tempo e se encaixa nos seus anos de juventude.

-Sabes Sebastião, hoje as meninas trouxeram a sopa que tu gostas. É de cenoura e tem massinhas. Não tarda vou tratar do teu almocinho, mas vais engolir tudo e não ficas com a comida a brincar na boca. As vezes és mesmo como um miúdo!

Ele não escutava nada, parecia olhar aquela voz que lhe era familiar, mas os olhos tinham perdido a luz e os ouvidos apenas lhe levavam um zunido que o embalava num emaranhado de recordações perdidas no tempo.

Era enternecedor ver a Dona Emília, alquebrada, sem forças a arrastar com tanto carinho o seu marido para o aconchego do lar, logo que o Sol se escondia. Punha um braço pela cintura e com o outro segurava a bengala e lá o ia arrastando docemente, com um sorriso nos olhos e um esgar de dor nos lábios.

Há dias que não via o Senhor Sebastião e isso preocupou-me, pelo que me atrevi a perguntar:

-Ti Emília que é feito do nosso homem?

Olhou-me da profundeza do azul apagado dos seus olhos e quase num soluço respondeu:

-Sabe que há dois dias que o não consigo arrastar do cadeirão, nem para aqui
nem para a cama. Está teimoso, nem a sopinha lhe consigo dar, lá lhe meto
umas colheradas pela boca abaixo mas é mais a que vai por cima do cobertor.
Não sei que fazer, tenho que arranjar maneira de o levar ao médico.

Fiquei muito mais preocupado e descansei-a:

-Deixe estar que eu vou aos bombeiros e eles tratam de levar o seu marido ao hospital.

Vislumbrei umas lágrimas nos olhos cansados.

-Obrigado menino e que Deus o ajude.

Os bombeiros chegaram tarde, o pobre homem há três dias que estava morto. Deitado num cadeirão de verga, tapado com um cobertor cheio de sopa. Já começava a exalar um cheiro desagradável.

Trataram de todas as formalidades e levaram o pobre coitado.

Alguém iria tratar do funeral.

Dona Emília não acreditou na morte do seu homem. Pensou, foi para o hospital mas vai voltar.

Passava os dias, sentada no seu banco, perscrutando ao longo da rua na esperança de o ver aparecer.

Os dias iam correndo e o seu amor tardava, o esmorecimento ia minando a esperança, a solidão era a única coisa que lhe restava.

Não podia esperar mais, ele não vinha, ela ia ter com ele.

Fechou os olhos e partiu.


quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Não acreditam?







Eu sei que não vão acreditar. É difícil mas juro que aconteceu comigo. Há muito tempo mas aconteceu



Estava uma daquelas noites que metiam medo.

A chuva e o vento buliam com as minhas janelas de forma assustadora, mas havia um bater que me perturbava um pouco.

Era constante, como que um roçar.

Acendi a luz e espreitei pelo ralo porque não me atrevia a abrir a porta, morava no campo, estava só e, confesso, tinha medo.

Não conseguia ver nada além da chuva e do faiscar constante a romper o breu da noite.

Não deve ser nada, vou esquecer! Impossível o ruído continuava.

A solução era subir ao outro piso e espreitar pela varanda, ia apanhar uma molha mas sossegava.

Vi então, era uma pequena corça, que com muita insistência esfregava as ancas na porta numa tentativa de chamar atenção.

Coisa estranha! Uma corça, um animal que fugia dos humanos estava à minha porta encharcada e em pânico. Que seria que estava a acontecer?

Ganhei coragem, desci e escancarei a porta suavemente para não a assustar mais do que já devia estar.

Mal a abri entrou tremendo, enregelada, com um ar de súplica nos olhos. Deixou-me, totalmente, sem jeito, sem saber o que fazer.

Foi-se encostar ao calor da lareira, olhando-me com uns olhos tão ternos, quase que a rogar que a deixasse ficar.

Devia ter fome, mas confesso, não sabia que lhe dar de comer.

Calculei que fosse vegetariana, mas só isso.

Arrisquei. Parti umas maças, juntei um pacote de milho das pipocas, deitei numa tigela e coloquei na frente do animal.

Comeu sofregamente.

Alimentou-se, deu dois passos na minha direcção e carinhosamente aproximou o focinho
da minha cara na tentava de um afago.

Não resisti e dei um beijo no focinho do animal.

Puuuummmm……um feixe de fumo coloriu o espaço e deu-se o impensável.

A corça transformou-se numa mulher de sonho. Linda, corpo esculpido por uma artista divino. Curvas perfeitas, peito empinado com dois botões rosados a encimar duas belas cordilheiras. No umbigo um rubi provocava iridescentes reflexos. Apenas um diáfano véu, rosado, a cobrir esta maravilha que a natureza me tinha colocado na frente.

Olhou-me com olhos de mel e contorceu-se num bailado sensual que me ia deixando próximo da loucura.

Rodopiava, fazendo o véu mostrar, de forma artística, o corpo maravilhoso, coleante em sensuais requebros que me levavam embalado em pensamentos libidinosos.

Depois parou em posição semi-deitada com um joelho em terra e estendeu a mão, ornada de anéis, e com a voz mais quente que algum dia me foi dado ouvir, disse:

-Libertastes-me do encanto, és o meu amo. Os teus desejos, para mim, serão ordens, estou aqui para te servir meu senhor!

Voltou a dançar, só para mim.

Encheu a sala de magia e encanto, bamboleando a arte em voluptuosas voltas que me sussurravam aos ouvidos, me enchia os olhos e me aqueciam a alma.

Uma música, não sabia donde vinha, dava encanto àquela magia que me tinha, agora, a mim enfeitiçado.

Lá fora a chuva parou e o vento amainou.

Em suave deslizar foi-se aproximando, lábios escorrendo sensualidade, corpo coleante em suaves requebros.

Anichou-se ao meu lado em arroubos de ternura.

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Trrrrrriiiiiiiimmmmm.

O despertado quebrou o encanto.

Maldita sorte a minha!