terça-feira, 23 de novembro de 2010

756




É uma aldeia perdida na encosta da serra.

Nas pastagens cobertas de neve as ovelhas procuram as ervas escondidas nas pedras que enxameiam as alcantiladas encostas.

A pacatez da aldeia foi quebrada, de repente, com o grito de Romana Chilrito, a filha Cláudia tinha desaparecido.

Cláudia é uma linda menina de seis anos, ladina e cheia de imaginação, passa os dias brincando com as bonecas de trapo que a avó Germana faz para ela.

Hoje a menina desapareceu, não está em nenhum dos locais de brincadeira.

-Vais ver que anda para aí!

Dizem as vizinhas, enquanto vasculham as redondezas, espreitam o poço e vão olhando os currais das ovelhas e o chiqueiro onde os porcos pachorrentamente chafurdam na lama.

Nada da Cláudia, a menina sumiu de tal forma que parece que a terra a engoliu.

Os bombeiros e a Guarda já vasculharam tudo o que é sítio, todos os poços e buracos foram vistoriados e a todos foi procurado se tinham visto, ou, escutado a criança.

Nada, desapareceu como se houvesse eclipsado, como se nunca tivesse existido.

A GNR começou a investigar a hipótese de rapto, a menina era linda, mas não havia indícios de estranhos na aldeia. Nos últimos tempos, ninguém tinha violado a pacatez do lugar.

Foi numa quinta-feira, iam passados três dias do desaparecimento, quando o pastor José Inácio descobre entre as pedras duma lura um corpo de uma criança, rosto agrumulado pelo rigor do tempo que na serra é muito severo.

Então o choro tomou conta da povoação, as mulheres carpiram a dor em prantos que entoaram para além do local, os homens cabisbaixos andavam enrolados em capotes que os protegiam do gélido e os mantinham isolados da dor e da dúvida.

Foi a Judiciária que lançou a suspeita, o professor Almerindo há pouco na terra, foi chamado para um interrogatório que deixou a população em alerta. O professor tinha sido colocado este ano na escola e o seu relacionamento muito meloso, com as crianças, não agradava a todos, mas era só isso porque no resto parecia ser um bom mestre.

Nada se apurou e, embora a angustia fosse notória, a vida retomou o seu curso na dureza da terra, na solidão do pastoreio ou nas vicissitudes de uma existência feita de nada.

A morte da Cláudia estava presente, sentia-se no ar, nos rostos tisnados pelo frio, nos olhares enviesados, na desconfiança e na profunda tristeza que passou a fazer parte o quotidiano desta gente.

As primeiras flores anunciavam a Primavera e a neve ia deixando a faldas mais escapadas da serra, as urzes iam perfumando o ar puro.

Hoje a aldeia estava num reboliço tremendo e as suspeitas entraram novamente na vida de todos, o Professor Almerindo foi encontrado a caminho de casa com a pequena Susana pela mão e embora a sua garantia de que apenas ir recolher um livro esquecido o povo, desde logo, fez ali o seu veredicto:

-CULPADO

Na reunião de emergência com as autoridades, o Presidente da junta e direcção escolar foi de, forma unânime, decidido que no dia seguinte o professor deixaria a Escola e a Aldeia.

Para o povo não era suficiente, a evidência era demasiado para ficar, assim, impune a morte da pequena Cláudia e todo o desconforto que tinha transformado a pacatez daquela gente.

****

Quando o encontraram parecia um porco acabado de matar, numa nudez que chocava, peito empapado de uma massa viscosa que ia secando em redor da faca que lhe atravessava o peito, no sítio, onde ficava o coração.

Uma hora depois apresentaram-se, no posto da guarda, os 378 anos habitantes, adultos, da aldeia e todos eles se vinham declarar como culpados pela execução do professor.

****

Vão passados dois anos, o esquecimento vai libertando as mentes daquela gente que retomaram a plácida rotina de outros tempos.

A justiça arquivou o processo por falta de provas, havia uma única facada e apresentaram-se 756 mãos a reivindicar esse privilégio.

Impossível.



segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Uma bica curta





Estava na minha frente.

Tinha umas mãos longas e de uma beleza que faziam inveja, brancas e com umas unhas bem cuidadas, cortadas numa linha recta, cobertas com um verniz rosado e decoradas com pequenas flores vermelhas.

Se os artistas tivessem mãos diferentes de todos os outros, eu diria que tinha mãos de artista, mas conheço artistas com mãos nodosas.

Olhei-a não querendo parecer muito impressionado.

Era, quase, uma escultura renascentista onde a beleza dos traços se confundiam com a delicadeza das formas nas proporções certas, nos locais exactos.

-A que devo o prazer da sua visita?

Sentada numa posição quase “cleópatrica”, pernas unidas numa postura estudada e que servia para realçar algo que passa a fronteira do imaginável, pois são perfeitas até nos joelhos onde, em regra, quase todas falham. Mas estas, meu Deus, até nisso eram correctas. Lindas, longas, torneadas e com uns contornos onde os ossos não estragavam o conjunto.

O rosto, meu Senhor o rosto, tinha a doçura de um Anjo, a candura de um bebé e a beleza de uma Afrodite. Era quase irreal.

Olhou-me do alto de uns olhos azuis, penetrantes e com um sorriso foi dizendo:

-Andei-me informando e todos são unânimes em dizer que o senhor é o melhor,
até me dizem que será o Mourinho dos detectives. Preciso dos seus serviços,
preciso muito.

Sorriu e pareceu-me que o Sol tinha nascido no meu escritório.

Rolei entre os dedos um lápis, gesto mecânico que me ficou quando deixei de fumar. Olhei-a tentando descobrir o que se escondia debaixo daquele ar de anjo.

-Minha senhora, não sei se sou o melhor e isso pouco me interessa, cumpro bem para aquilo que me pagam. Se lhe puder ser prestável, desde que dentro da legalidade, estou pronto a ouvir o que tem para me dizer.

Fez como que um beicinho e fiquei sem saber o que fazer, se fugir desta tentação ou se correr para ela e aconchega-la nos meus braços.

Contive as maquinações do meu pensamento, olhei-a bem nos olhos e insisti:

-Bom, em que poderei ser útil?

-Senhor Gilberto, julgo que é esse o seu nome, preciso que descubra quem anda a ameaçar o meu marido:

-Ameaçar, mas ameaçar como? Para esses casos nada como avisar a polícia!

Humedeceu os lábios com a ponta da língua, gesto maquinal mas cheio de uma sensualidade estudada.

-Não quero a polícia, quero resolver particularmente este assunto. O meu marido é um homem muito importante no mundo dos negócios e, como deve saber, nesta situação é fácil arranjar muitos inimigos. A inveja impera e temos que nos manter atentos.

Continuei a rolar o lápis enquanto o meu pensamento tentava enquadrar aonde esta conversa me podia estar a levar. A mulher era demasiado perfeita para estar a falar verdade. Era pedir muito. Tentei o meu melhor sorriso e perguntei:

-Mas porque não é o seu marido a procurar ajuda para este caso?

Fez o gesto de cruzar a perna e o meu coração parou, mas desistiu e o meu coração retomou o ritmo normal.

-Como lhe disse o meu marido é um importante homem de negócios e o trabalho absorve-lhe o tempo por completo, não tem tempo para mais nada.

O meu pensamento não pode deixar de ser um pouco pecaminoso, pois com uma mulher como esta e apenas com tempo para o trabalho era um pouco estranho, mas isto sou eu a pensar pois se calhar ainda lhe resta tempo para mais algumas coisas.

Sorri, um sorriso um pouco amorfo mas foi um sorriso:

-Bom… Vou ficar com todos os elementos para começar. Vai-me deixar um sinal para despesas.

Entregou-me um envelope, perfumado, com todas as indicações e onde juntou um molhe de notas:

-É suficiente para as primeiras despesas? Perguntou com um sorriso capaz de fazer desabrochar uma flor.

Estendeu-me uma a mão gelada e saiu num deslizar de suavidade e sedução.

Abri o envelope, contei os 1.200 Euros, passei um recibo que guardei na carteira e dei um olhar atento pelas indicações que, numa caligrafia miudinha, me eram fornecidas por aquele monumento que acabara de sair.

Nos papéis dizia que era a Senhora Dona Marta Cascudo, casada com o industrial José Maria Cascudo. Nunca tinha ouvido, ou lido, tais nomes mas, possivelmente, era ignorância minha.

As ameaças, eram todas feitas em colagens muito pouco originais.

Guardei tudo na pasta e sai para um jantar rápido.

No Bar do Elias nada de novo.
Balcão corrido onde alguns personagens que pareciam ter saído de algum romance de Raymond Chandler, iam digerindo, em gestos mecânicos, os restos do que parecia ter sido uma refeição.

Sentei-me na mesa do costume, no canto, onde podia observar passando despercebido.

Enquanto tragava, o bife grelhado, fui estudando os elementos que a Dona Marta me deixou. Pouco coisa de interesse, apenas hábitos, horas e locais. Amanhã ia começar, ia postar-me em frente à residência para poder seguir o dia desse Senhor Cascudo.

Paguei e segui para casa.

O dia estava frio e a relento parecia querer roer as nossas articulações. O carro, como sempre com a humidade, só pegou depois de muita insistência. Mas pegou.

O trânsito era o do costume, taxistas acelerados desrespeitando tudo e todos, senhoras e senhores em andar morno provocando filas e todas as tropelias de uma manhã dos apressados a caminho dos empregos.

Cheguei, antes das oito horas, à morada que estava nas instruções mas, estranho, não havia nenhuma habitação no local, apenas uma pequena oficina de bate-chapas, um armazém de hortaliças, um clube nocturno de aspecto um pouco duvidoso e um local de estacionamento onde antes teria sido um edifico.

Perguntei na oficina se estava no sítio certo. Estava no sítio certo mas no local errado. A morada era essa mas ninguém habitava esta rua.

Era estranho, podia ser brincadeira, mas tinha deixado um sinal de 1.200 Euros.

Entrei num café na esquina da travessa. Um par de namorados estavam tão embevecidos a treinar comerem os dois com a mesma boca que tive que me desviar para não estorvar tão bela tentativa.

Ao balcão uma senhora, tão gorda que só se conseguia deslocar de lado, olhou para mim com um olhar tão interrogativo que fiquei na dúvida se também serviriam café, mas tentei.

-Uma bica curta.

Arrastou o corpo de uma forma tão diligente até à máquina que pensei que afinal a gordura era apenas aparente.


-Aqui tem o seu cafezito! É novo por aqui, nunca o tinha visto?

Afivelei um sorriso e respondi:

-Estou de passagem, vinha a ver se encontrava o Senhor José Maria Cascudo mas, devo estar enganado na morada.

-O Doutor Cascudo! Exclamou a mulher.

Senti a esperança renascer e, agora sim, com um sorriso verdadeiro perguntei:

-Sim, sim, conhece?

Olhou-me com uns olhos piscos muito velhacos. Passou a língua, gorda como o resto, por uns lábios ressequidos e com um ar enigmático disparou:

-Conheci sim senhor, foi um bom cliente!

Comecei a ficar um pouco perplexo, a criatura estava-me a parecer por demais enigmática.

-Mas já não conhece?

Sorriu, da forma como só as cascavéis sabem sorrir. Sibilina, enigmática.

-Conheço como se podem conhecer os mortos. O senhor Doutor que morava, na casa que foi demolida, aí na travessa, morreu mais a esposa num grande acidente de automóvel, no ano passado. Não leu nos jornais?

Fiquei confundido, duas pessoas a gozarem comigo num período de 24 horas era demais.

-Será o mesmo?

-Isso não sei, mas com esse nome não deve ser fácil haver muitos.

Parecia lógico, arrisquei;

-Como era a mulher?

Olhou-me com um ar reprovador, pensando sei lá o que.

-Uma cabra, linda e jeitosa como todas as mulheres gostariam de ser, mas uma cabra que não deixava o homem respirar, não o largava um instante. Ciumenta até da própria sombra, mas não lhe valeu de nada. Morreram juntos. Ficaram feitos em carvão, nada se aproveitou.

Fez um trejeito de choro, mas não se saiu nada bem.

Paguei, meti-me no carro e sai disparado. Há coisas na vida que não sei explicar.

-Será que a tipa morreu mesmo?



quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Aquele almoço




Senti um leve puxar no casaco, olhei e ela estava ali.

Olhava-me num ar de súplica, cabelos desgrenhados e com a fome estampada no rosto sujo.

Tinha uns olhos lindos mas de uma tristeza tão profunda que a beleza se transformava numa angústia.

Estendeu uma mão esquálida, encardida, mostrando um monte de pensos rápidos e num murmúrio de súplica pediu:

-Senhor compre uns!

Fiquei naquele jeito de quem fica sem modo de não saber o que fazer e sem firmeza na voz perguntei:

-Tens fome?

Vislumbrei uma ténua luz no fundo daqueles olhos e um leve abanar de cabeça confirmava o que eu pensava.

-Anda, vamos ali aquele restaurante comer!

Vi medo no corpo franzino:

-Mas, senhor, eles não me deixam entrar.

Sosseguei-a:

-Vamos juntos e eles deixam.

Quando entrou parecia um pequeno animal tremendo de medo. O empregado fez um pequeno gesto que acalmou quando viu que a pequena ia pela minha mão e, ficou mais tranquilizo, quando me ouviu perguntar:

-Que te apetece comer?

Olhou tudo e encolheu os ombros.

-Um bife com batatinhas fritas? Perguntei.

Os olhos pareceram querer brilhar e por momentos vi um sinal de vida escondida por debaixo de tanta opressão.

-Pode ser, respondeu a medo.

Olhei-a melhor e vi que debaixo de tanta sujidade havia uma beleza escondida. Um sorriso morto pela vida no rosto amargurado de uma criança.

Reparou que a estava a observar e perguntou:

-Para pagar a comida tenho que fazer coisas ao senhor?

Senti o mundo desabar, apeteceu-me chorar, fugir, desaparecer, esconder-me. Mordi os lábios para acalmar a revolta mas encontrei um sorriso para responder:

-Não minha querida, quando comeres podes ir à tua vida e, se quiseres, dar um beijinho e dizer obrigado, mas só se quiseres.

Olhou-me com uma ternura que não pensei possível debaixo daquela mascara de infortúnio.

-Sabe o meu pai traz homens que fazem coisas comigo e que depois lhe dão dinheiro? Eu não gosto nada!

Percebi um soluço e vi uma lágrima naqueles olhos tristes, um pedido de socorro naquele rosto, um frémito de medo naquele corpo.

Devagar mas com tanta delicadeza ia devorando a carne pegando na faca de forma desajeitada.

-Quantos anos tens? Perguntei para mudar o rumo da conversa.

-Acho que fiz 12 anos, mas não tenho a certeza.

-E a tua mãe?

-Está doente por causa do vinho e parece que tem uma doença má mas eu não sei o nome.

-Tens irmãos?

-Tenho, ou tinha, um irmão pequenino mas as senhoras da Assistência já o levaram. Não sei dele.

Olhou-me com uma leve doçura e percebi que por debaixo daquela sujidade havia uma menina que, também, sabia sorrir.

-Senhor porque me pagou esta comida?

-Vi que tinhas fome e eu precisava de uma companhia para almoçar. Não te importas?

Sorriu mais uma vez.

-Tens filhas? Perguntou muito séria.

-Não, não tenho filhas.

Olhou-me de uma forma estranha e ia começar a dizer alguma coisa, mas arrependeu-se e apenas abanou a cabeça.

Percebi que algo ficou por dizer e insisti:

-O que ias dizer?

-Estava a pensar que se não tem filhas eu podia ser sua filha.

Deu-me um beijo rápido e desapareceu.

Nunca mais a vi.



terça-feira, 2 de novembro de 2010

A Pita da Alice






Sabem que esta pequena estória podia ser verdadeira?
Eu sei que não é, mas que podia..podia!




A Alice tinha uma pita e andava ufana. Dizia a toda a gente:

-A minha pita é linda e não há outra igual.

No pátio, onde vivia, já todos estavam cansados de a ouvir elogiar a pita. As mulheres olhavam de lado e passavam mostrando total desinteresse, os homens não passavam sem querer fazer um afago na pita da Alice.

Os tempos iam passando e a pita ia crescendo, era linda, fofinha apetecia mesmo fazer uma festinha.

Mas nem pensar a Alice não deixava ninguém mexer na sua pita. Era dela e só dela.

Hoje a pita está enorme, delicada e muito branquinha, parece que a neve a veio enfeitar de alvos e imaculados flocos.

A mãe da Alice, essa, não anda nada satisfeita, pois a pita não é asseada e pita que não é asseada deita mau cheiro.

A mãe ia avisando a Alice:

-Se não cuidas em condições da tua pita ainda vais ter um desgosto, toma atenção e depois não digas que eu não te avisei.


A filha resmungava:

-Pois tens inveja da minha pita e até acho que gostavas de ter uma como a minha, mas não penses porque a minha é única, é especial. Pergunta ao meu namorado porque é ele quem mais brinca com ela. Vá lá! Pergunta!

A mãe não gostava nada destes desaforos da filha e rilhando os dentes ia ameaçando:

-Depois não me venhas dizer que eu não te avisei!

*******

Um dia, há sempre um dia, Alice chegou a casa e não viu a pita:

-Mãe onde está a minha franga?

-Eu avisei, não avisei? Não me destes ouvidos e agora a tua pita está na panela.
Deu uma bela canja. Oh se deu!