domingo, 28 de agosto de 2011

Requiem aeternam dona eis







Que se vão da lei da morte libertando...
(Camões)




Gostava de perpetuar em frases minhas a memória de um tempo.

Gostava, verdadeiramente, de ter a força e o engenho para deixar
para além de mim o tributo de um amor e de uma devoção.

Queria ser poeta e ter a magia das palavras para erguer um poema
que fosse a epopeia de uma vida.

Quem me dera poder talhar na pedra o vulto grande que me envolve,
pintar na tela a imagem de uma saudade que dói e que consome.

Poderia, talvez, ser trovador para levar por esse Mundo fora a cantiga
que tornasse imortal a dor que me oprime.

Quem nos governa nada me deu, apenas me deixou as lágrimas para verter,
um coração para albergar a saudade e o pensamento que me perturba e oprime.

De resto nada mais!

Esse Deus que muitos veneram e idolatram é apenas o refúgio para explicar o inexplicável.

É a desculpa para camuflar a dor e o infortúnio.

Esse Deus, a existir, não poderia ser tão cruel e impiedoso.

Não iria cercear a flor que está no apogeu da vida.

Não seria capaz de roubar a essência à existência, de escurecer a luz que nos ilumina,
de tirar a seiva que nos alimenta.

Como poderia ser tão injusto? Tão ilógico? Tão impiedoso?

Não posso crer em quem não me dá razão para acreditar.

Fostes tu, oh Deus, que assim me tornastes.

A culpa é tua!



segunda-feira, 22 de agosto de 2011

O meu cão







A ti Fuzzy, meu amigo, sei que não me deixastes, sinto que estás à minha espera.




O meu cão rebola a bola
Na relva deste jardim;
O meu cão rebola a bola
Rebola a bola p'ra mim.

O meu cão rebola a bola
E deixa a bola a saltar;
O meu cão rebola a bola
E espera p'ra eu apanhar.

O meu cão rebola a bola
Rebola vezes sem fim,
O meu cão rebola a bola
E toma conta de mim.

O meu cão já foi embora
Decerto não vai voltar;
Mas antes de fechar os olhos
Eu vi o meu cão chorar.

A bola já não rebola,
Nunca mas vai rebolar;
Na relva deste jardim
Não mais a vejo saltar.

Dizem que o meu cão partiu,
Que morreu que foi embora;
Mas juro que não acredito,
Pois senti o meu cão agora.

Está sempre ao pé de mim
Eu ouço a cauda a abanar;
Eu sei que não me deixou
Não me iria abandonar!

Ele sabe quanto preciso
Da sua maneira de olhar,
Do amor que lhe sentia,
De ver a bola a rolar.

O meu cão rebola a bola
 
Vejo a bola a rebolar;
O meu cão já foi embora,
Deixou-me aqui a chorar.












terça-feira, 16 de agosto de 2011

Encanto




Para ti Sónia, minha sobrinha, pelo carinho da tua presença e magia das tuas palavras nos momentos em que mais precisei.




Quando abri a porta senti a golfada de ar quente.

Na taberna, defronte, os homens pareciam hipnotizados pela mini gelada que emborcavam em goles pequenos.

As moscas, em voos simétricos, martirizavam as caras tisnadas dos bebedolas que iam matando o tempo, em total indolência, nas sombras da esplanada do Chico Cocho.

Abarquei, com nostalgia, este quadro do quotidiano e retive, na minha mente, todos os pormenores desta cena, quase bucólica, onde os personagens pareciam retirados de um quadro do Malhoa.

Os homens moviam-se em movimentos lentos, num sincronismo natural, onde o levantar ritmado da mini parecia a batuta da própria essência, como se não existisse, como se esse movimento fosse fruto do deslizar do pincel do pintor.

Hoje eu estava sensível a todos os movimentos, a tudo o que estava no meu horizonte, o próprio bailado das moscas parecia fazer parte de um momento que acompanhava o mundo que ia dentro de mim.

***

Alzira, quando a desafiei para vivermos na aldeia, longe do bulício da cidade, ficou radiante e garantiu-me ser o que mais desejava no mundo.

Os primeiros tempos foram um sonho, foi a descoberta diária de novos encantos, o coaxar das rãs, o manto de grilares que enchiam de magia a planície.
Era o sentir do grito vermelho das papoilas a salpicar, de sangue, o tapete colorido das marcelas.

Vivemos intensamente os frios do Inverno junto aos troncos que na lareira se desfaziam em ondas de calor, que nos aqueciam o corpo, pois a alma ia sendo aconchegada por um ponche "caliente" e reconfortante.

O Verão quente, tão quente que até as próprias aves se deixavam cair com o bico aberto na procura de uma vida que a canícula lhes ia roubando, era passado no remanso de uma casa onde a frescura das abobadas ia atenuando a escalmorreira que fazia lá fora.

Ia-mo-nos amando nos intervalos de uma vida feita de casualidades e de momentos parados na doçura do tempo.

De repente, como se as ideias se deixassem esfumar em doses de indiferenças, Alzira deixou de respirar o encanto da procura, deixou de sentir o enlevo da descoberta.

Amorfou, a tristeza entrou de repente na pintura, as formas deixaram-se diluir nas saudades do bulício, dos cinemas, dos centros comerciais.

Alzira perdeu o espaço, os movimentos ficaram tolhidos na imensidão da campina, os horizontes perderam-se nas saudades do trânsito, no atropelo dos transportes cheios.

Alzira não aguentou a imensidão e com o mesmo encanto com que chegou, apanhou a carreira numa manhã, no Largo da Igreja, e abalou sem querer olhar para as saudades que me ficaram.

Pensei seguir com ela, não deixou, precisava da distância para respirar, como se o espaço pudesse ser encontrado no desconforto da civilização.

****

Abro a porta de manhã, vejo os homens parados no tempo de uma mini fresca e penso na Alzira, nas gargalhadas que deixou perdidas na imensidão dos meus sentidos.

Já não sinto o encanto dos coaxares, os grilos perderam a entoação que refrescavam as tardes quentes, o pão arrefeceu e já não aceita o sabor do presunto que acabei de cortar no alto da vara.

Ainda é Verão e já sinto esse frio que se entranha nos ossos e que nos faz tiritar.

A lareira está apagada não a irei acender para que as labaredas dos chamiços não consigam apagar o cheiro de uma partida, na carreira no Largo da Igreja, numa manhã que nunca foi dia.

Hoje vejo o desconforto da paisagem que o tempo secou, não quero ver mais a paleta onde o pintor deixava em traços lavados o encanto do meu pensamento.

Aprendi, agora sei que saudade se escreve com A, com A como se escreve Alzira, que abalou numa carreira que saiu do Largo da Igreja.