domingo, 30 de outubro de 2011

A Falésia ou uma espécie de drama Shakespeariano

 



Não gosto de whisky mas adoro aquela sensação de ter um copo na mão e deixar tilintar as pedras de gelo naquela mistura líquida da cor do ouro velho, que se vai desvanecendo á medida que as pedras de gelo se diluem. Por vezes dou por mim olhando para um cigarro imaginário, esperando ver as espirais de fumo.

Deixei de fumar quando o doutor Semedo, olhando-me por cima dos óculos, disse que ou deixava o vício ou deixava de viver.

Embora a vida nada de bom me tivesse dado acabei, no entanto, por optar por ela.

Desloquei a minha cadeira de rodas de forma a poder abarcar um pouco da rua e a nesga de mar que a falésia deixava adivinhar ao longe. Foi neste local onde nasceram e acabaram por morrer todos os meus sonhos.

********

Conheci a Madalena numas férias de verão, foi um daqueles encontros casuais em que o destino se veste de Cupido e faz com que aconteçam estes despertares de paixões.

De repente, sem nenhum ter dado por isso, éramos namorados, andávamos de mãos dadas, olhos nos olhos e cada um bebendo, em pura embriaguez, as palavras do outro.

O amor nasceu e cresceu quase espontâneo, intenso, puro e liberto de estigmas e frustrações.

Foi um andar em puro êxtase, longos caminhares pela praia, mãos coladas como se fosse apenas uma, beijos doces de pura sensação de nada mas existir, de sermos o centro, de tudo e do nada, à nossa volta.

Quando as férias estavam para terminar Madalena olhou-me nos olhos, lágrimas espreitando sufocadas:

-João, as minhas férias vão acabar mas eu não vou, quero ficar aqui contigo, se for embora nunca mais me vais 
 ver porque morrerei de tédio e de saudades.
 Deixa-me ficar meu amor!

Caminhamos juntos até á falésia onde íamos todas as tardes até que o Sol mergulhava no horizonte, matizando o céu de vermelho e laranja e pronunciando mais um dia de calor.

Olhamos ao longe, silencio que doía, pensamentos em turbilhões povoavam a nossa mente.

-João, não respondestes, será que queres que vá embora?

Não vou saber viver longe de ti, ou fico contigo, ou vens comigo ou então mata-me para poder morrer abraçada a ti e partirei com a tua imagem na minha retina.

Depois entrou num soluçar convulsivo.

Apertei-a contra mim, sufoquei o choro na minha garganta antes de dizer:

-Meu amor nada nem ninguém nos vai separar, vou combinar com os meus pais e vamos ficar a viver juntos.

De repente o Sol nasceu na sua cara, as lágrimas pareciam pérolas a brigar naquele rosto, abafou-me de beijos, sufocou-me de abraços.

-Obrigada, obrigada, obrigada...meu amor.

****
Os meus pais adoravam Madalena por isso a mudança foi fácil, íamos morar todos na nossa casa, no alto da falésia.

Fui com ela a Lisboa, recolher tudo o que lhe iria fazer falta, o resto, depois iria mudando aos poucos.

Era uma sensação diferente mas gostosa, compartilhava-mos todos os momentos, sorriamos à felicidade, fazíamos planos para uma vida que queríamos que fosse nossa, só nossa, e para sempre.

****

Foi numa quinta-feira que o carteiro trouxe um registo para assinar e, estava longe de todos que esta missiva iria ser o despoletar de situações para a qual ninguém estava preparado.

Era lacónica, numa linguagem seca e sem vida, amorfa e triste como convém às missivas que, sem saberem, vão mudar a vida de muita gente.

Eu, João Menezes, oficial miliciano desmobilizado, era convocado para me apresentar no quartel para uma comissão de serviço numa das colónias, mais propriamente em Moçambique.

Madalena leu a convocatória com uma serenidade que me surpreendeu, os olhos brilhavam, mas inventou um sorriso, abraçou-me, lambuzou-me a cara de lágrimas incontidas e animou-me:

-João ainda falta um mês e eu vou contigo.

Todos sabíamos que era um desabafo, uma forma de tirar pressão, era como um escape para aliviar a angústia que sentiu tomar conta do seu pensamento e emaranhar as suas ideias.


********

Quase como numa coincidência, também, foi numa quinta-feira. Uma chuva miudinha tornava mais triste a despedida dolorosa que se avizinhava. Rostos escurecidos pelo medo e pela incerteza.

Madalena era o símbolo da tranquilidade aparente, estática, numa serenidade feita de receios.

-João já que não posso ir contigo, vou estar todos os dias a tua espera. Vou rezar, como se fosse crente, vou implorar como se fosse possível fazer ouvir a minha voz. Vou estar em cada      momento ao teu lado, vou ser um escudo a todas as balas, um lenitivo para as tuas dores, a alegria para os teus momentos de tristeza, vou ser o teu Anjo da Guarda. Não me vais ver chorar, nem tu nem ninguém, vou sorrir sempre para que o meu sorriso seja o Sol que te vai iluminar nestes tempos em que nos vão separar.

Quando o Niassa se afastou do cais, as figuras iam-se perdendo em miniaturas, onde apenas o lenço vermelho de Madalena deixava traços de fogos-fátuos.

**********

Foram uns tempos difíceis em Mueda, local para onde me jogaram. Clima tenso onde o medo transpirava nos rostos macerados destes homens, que atiraram para uma guerra que não era deles, cansados, desiludidos, esperando quando seria o dia em que a desgraça lhe iria bater à porta e o destino os mandaria para Portugal, numa caixa embrulhada na nossa bandeira.

Escrevia, quase todos os dias para a Madalena, mas a primeira resposta só apareceu, quase, dois meses depois.

Era uma carta longa, com todos os momentos contados de uma forma tão clara que a senti como se estivesse presente. Dizia que passava os dias a rezar embora não fosse grande devota, percorria todos os nossos caminhos e sentia como se a minha mão lhe segurasse a sua, olhava o horizonte na esperança de ver o barco que me devolvesse ao nosso amor.
Dizia das saudades, das noites de insónias, dos receios e ao mesmo tempo da esperança de um regresso para podermos continuar a nossa felicidade.

Cartas longas, sentidas, turbilhões de palavras a que eu não sabia responder.
Apenas lhe contava das saudades e do desejo de voltar, não lhe dizia dos dramas, da dor e do sofrimento, dos camaradas estropiados, inadaptados, dos que ficavam nas picadas, nos que morriam em actos de bravura para alimentar uma guerra perdida, uma guerra que já não era nossa, isso não contava, deixava apenas para mim.

**********

Há coisas que não sei explicar, coincidências que nos levam a odiar dias, a ter medo que se voltem a repetir mas, para pasmo, voltou a ser numa quinta-feira de Novembro, chuvosa, fria, lúgubre e triste.
Quando bateram a porta, nada nem ninguém podia imaginar que o nosso mundo estava prestes a desmoronar.

Era um tenente e um sargento, perfilaram-se e saudaram militarmente a minha mãe e a Madalena que abriram a porta.

-São os parentes do nosso oficial João Menezes?

As duas tremeram mas abanaram a cabeça em sinal de anuência.

-Pois o que trazemos é uma missão ingrata e dolorosa, o nosso oficial teve um grave acidente em combate, não sabemos qual o desfecho, nem mesmo se será possível, ou se suportará ser evacuado para a metrópole.

A minha mãe desfaleceu mas Madalena gritou:

-Mataram o meu João, mataram o meu amor, acabaram com a nossa vida, ele precisa de mim.
 Já vou meu querido!

Saiu disparada, atravessou o caminho, desconheceu os chorões que atrapalhavam os seus passos e correu para a falésia onde loucamente se precipitou no vácuo e desapareceu nas ondas revoltas.

Muitos, ainda, a ouviram gritar, ninguém sabe o que ela foi dizendo.

Encontraram, passados cinco dias, o seu corpo numa praia a trinta quilómetros da falésia.

*******

Voltei a pátria, oito meses no Hospital da Estrela, entre a vida e a morte e regressei a casa numa cadeira de rodas. As minhas pernas ficaram, lá, misturadas com os estilhaços de uma mina.

*******

Agora estou aqui, limitado no espaço e no tempo, pedaço do que fui, sem futuro, sem sonhos.

Pouso o copo onde o gelo se derreteu e tornou o Whisky num líquido colorido.

Olho o infinito para além da nossa falésia, pela nesga da minha janela e, sonho não acordar um dia.

Só a morte me pode libertar deste pesadelo.




segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A cantora




Até que a rapariga não cantava mal. Era uma daquelas músicas brasileiras a que a voz doce da artista emprestava uma sensação de cócegas.

As pessoas mais preocupadas com o conteúdo dos pratos, pouca ou nenhuma atenção lhe votavam, mas ela persistia na balada, onde o amor ainda havia de voltar.

Um pouco tímido cruzou os olhos com os da cantora e mais timidamente, ainda, os deixou cair. A voz dela parecia mais doce e a letra da canção era como se fosse só para ele.

Falava de tristezas passadas e de muitas promessas de um amor que iria acontecer.

Havia lamentos e todas as venturas de um dia que estava tão próximo. Falava de beijos quentes, de promessas que pareciam reais.

Ficou enlevado e procurou-lhe os olhos que num largo sorriso o deixou confuso.

Desviou o olhar e o rubor tomou conta do seu rosto, como de um rapazinho envergonhado.

No seu cérebro mil projectos se começaram a desenhar. A que horas sairia? Iria só, ou alguém  a iria esperar? E o sorriso! Meu Deus, aquele sorriso!

Ficou desajeitado como sempre, sem saber tomar uma decisão.

Pediu mais uma bebida, era a terceira e decerto não lhe iria cair muito bem. Não estava habituado mas a ocasião a isso o obrigava.

Em pequenos goles ia ficando inebriado com a letra que, decerto, lhe era dedicada.

Os acordes entravam nos ouvidos e as palavras daquele amor esquecido aqueciam uma existência tão vazia.

Será hoje meu Deus, será hoje
Que o amor vai surgir, assim, de repente
Trazendo tudo o que queroooo
Aquecendo de forma tão boa a alma da gente

Estava enlevado na letra, preso na música.

Quando sua boca me chama
Eu corro apressada
Rebolo consigo na cama
Não preciso mais nada

O pensamento levantou voo, os olhos fecharam-se num doce torpor.

Andou nas nuvens de mãos dadas, vogou ao sabor do vento, rodopiou agarrado aquela delicada cintura.

Beijou aqueles cabelos negros que lhe roçavam o rosto e que o deixavam louco.

Estava próximo daqueles lábios carnudos que em promessas se abriam para ele, já sentia o sabor do beijo quente que se aproximava.

O corpo tremia de prazer.

*********

O sobressalto foi enorme, aquela cara feia tão próxima da sua não era a da cantora.

Acordou assustado com alguém que lhe gritava aos ouvidos:

-Então amigo, acorde que vamos fechar, o espectáculo já acabou há muito!

Só o frio, da noite, o trouxe à realidade.












domingo, 16 de outubro de 2011

Quase um conto infantil






Tinha um ar de princesa, um sorriso de anjo e a beleza de uma Afrodite.

O nariz, um pouco arrebitado, dava-lhe um ar traquina que as duas covinhas na face acentuavam.

Os olhos eram grandes e profundos mas possuídos de uma tristeza que o sorriso nos lábios não sabiam disfarçar.

Quando nasceu, há 19 anos, todos pensaram que não iria vingar, prematura e tão frágil, que a família quando espreitava a incubadora ficava convencida que a menina não passaria desse dia.

Quiseram os desígnios do destino que aquele bebé, tão fraco, se transformasse numa bela moça de olhos tristes.

*****

Quando fez 15 anos, uma doença, estranha e misteriosa, tomou conta dela de tal forma que o padre lhe chegou a dar a extrema-unção, mas de um dia para o outro, o rosto voltou a tomar cor. Não conhecia os pais, olhava-os de uma forma estranha e começou a falar uma língua desconhecida e que ninguém entendia.

Fixava os que a rodeavam como se não estivessem ali, não os percebia e não se fazia entender.

Arengava em palavra estranhas, frases entoadas em sons semelhantes a estalidos doces e musicais que se perdiam, sem que os que a escutavam conseguissem perceber algo do que dizia.

A família, desiludida, desistiu da medicina e enveredou pelos bruxos, curandeiros, pais de santos e a todos os que apregoando poderes e sabedorias iam fazendo rezas, mesinhas, imolações, sacrifícios e tudo o que a imaginação lhes permitia, para ir esvaziando os bolsos dos pais da Marcela.

Um dia, no meio de uma sessão mais emotiva, saltou com uma fúria que ninguém esperava e esgatanhou barbaramente a cara do curandeiro que fugiu, espavorido, com a face fortemente dilacerada.

Depois voltou para a cama e adormeceu num sono calmo e tranquilo.

Quando acordou estava serena, de nada se lembrava, nem da doença, nem da agressão e muito menos da língua estranha que, diziam, que tinha falado.

Havia, no entanto, algo que não se atreveu a contar, ouvia os pensamentos dos outros e sabia o que ia 
acontecer. Era estranho perceber que o futuro lhe estava sempre tão presente.

************

O tempo estava agreste e o vento, com fúria, fazia estremecer os estores das janelas, enquanto a chuva fustigava impiedosamente os que se arriscavam.

Marcela espreitava através dos vidros os que, afoitamente, se atreviam a enfrentar a borrasca que com tanta violência se tinha abatido.

Olhava e os seus sentidos iam antevendo as agruras e as alegrias dos que se arriscavam a cruzar a rua.

Aquele ali, tentando segurar um guarda-chuva que o vento tentava roubar, ia imaginando o que iria dizer a uma colega que tinha erigido como dona do seu coração.

A idosa, encolhida na porta, esperando uma aberta, pensava no frigorífico vazio e nas goteiras que neste momento pingavam no cubículo onde parecia viver.

Na esquina um homem pensava de forma estranha, gostava da mulher e ao mesmo tempo desejava que partisse e o libertasse do fardo da doença que a apoquentava. Já tinha pensado em trocar a hora dos comprimidos ou, mesmo, esquecer alguns de forma a libertá-la do sofrimento e, a ele, de um fardo que apesar de todo o amor, se estava a tornar muito pesado.

Marcela perscrutava todos estes pensamentos e sentia todos os dramas e chorava baixinho sabendo que nada podia fazer.

*****

Acordou com um ruído estranho no seu quarto, algo de etéreo, resplandecente de luz e que pairava como uma nuvem.

Uma melodia suave, enchia de doçura, enquanto fragrâncias que ultrapassam a imaginação deixavam caricias que inebriavam.

Uma voz, tão suave como uma pena deslizando numa suave brisa, clamou:

-Marcela és a eleita e a força do Senhor está contigo. Tudo o que quiseres será feito.

Depois, a miragem diluiu-se em mil estrelas iridescentes que se esfumaram como por encanto.

******

Acordou pela manhã com a estranha sensação de que, a partir de agora, a sua vida mudaria e que tudo iria ser diferente.

Espreitou da sua janela os dramas da rua, mas o apaixonado não estava, a idosa tinha desaparecido e, até o marido que desesperava, com a doença da mulher, estava ausente.

Olhou na procura de dramas para dar a sua ajuda mas, todos pareciam felizes com o sol a brilhar, os rapazes corriam alegremente atrás de uma bola colorida, as meninas saltavam à corda numa alegre algazarra e os velhotes na esplanada do café olhavam de soslaio as mini-saias que passavam.

Todos pareciam felizes e sem problemas.

*****

Marcela estava triste porque tinha poderes mas não tinha onde os usar. Entrou em depressão, deixou de ouvir os pensamentos dos outros, tornou-se agressiva e caiu, novamente, num sono profundo.

Um dia vai acordar novamente.

Que nos reservará?



domingo, 9 de outubro de 2011

Desassossego





-Tio. Tu tens medo do escuro?

Resposta difícil a uma questão tão simples.
Dizer que não, é mentir. Dizer que sim, é alimentar uma lenda de “cocas” e “papões” que não tem razão de existir.

-Não querida. Porque havia de ter medo do escuro? O escuro não existe, o escuro é só porque a luz está apagada.

Mas a verdade é que muitas vezes tenho medo do escuro. Quantas noites, eu, fico perscrutando os indetermináveis sons que a minha imaginação alberga.

-Sabes amor, é natural que quando não vemos as coisas fiquemos com receios. Mas medo não devemos ter.

Tantas vezes, sinto que algo se move no meu medo. Oiço as vozes do meu desassossego.

-Mas tio todos os meninos e meninas tem medo!

Todos os meninos e tantos adultos!
 Nós dizemos que não, mas há algo que nos atemoriza. O escuro é como o desconhecido e, só os mais intrépidos se aventuram nessa descoberta.

-Tio agora que estás ao pé de mim, podes apagar a luz que eu não tenho medo.

-E eu ao pé de ti também não. Dorme descansada!

Fico absorto no enlevo do sono descansado.
Os meus medos ficam para depois, para quando a solidão se alberga dentro de mim.