Não gosto de whisky mas adoro aquela sensação de ter um copo na mão e deixar tilintar as pedras de gelo naquela mistura líquida da cor do ouro velho, que se vai desvanecendo á medida que as pedras de gelo se diluem. Por vezes dou por mim olhando para um cigarro imaginário, esperando ver as espirais de fumo.
Deixei de fumar quando o doutor Semedo, olhando-me por cima dos óculos, disse que ou deixava o vício ou deixava de viver.
Embora a vida nada de bom me tivesse dado acabei, no entanto, por optar por ela.
Desloquei a minha cadeira de rodas de forma a poder abarcar um pouco da rua e a nesga de mar que a falésia deixava adivinhar ao longe. Foi neste local onde nasceram e acabaram por morrer todos os meus sonhos.
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Conheci a Madalena numas férias de verão, foi um daqueles encontros casuais em que o destino se veste de Cupido e faz com que aconteçam estes despertares de paixões.
De repente, sem nenhum ter dado por isso, éramos namorados, andávamos de mãos dadas, olhos nos olhos e cada um bebendo, em pura embriaguez, as palavras do outro.
O amor nasceu e cresceu quase espontâneo, intenso, puro e liberto de estigmas e frustrações.
Foi um andar em puro êxtase, longos caminhares pela praia, mãos coladas como se fosse apenas uma, beijos doces de pura sensação de nada mas existir, de sermos o centro, de tudo e do nada, à nossa volta.
Quando as férias estavam para terminar Madalena olhou-me nos olhos, lágrimas espreitando sufocadas:
-João, as minhas férias vão acabar mas eu não vou, quero ficar aqui contigo, se for embora nunca mais me vais
ver porque morrerei de tédio e de saudades.
Deixa-me ficar meu amor!
Caminhamos juntos até á falésia onde íamos todas as tardes até que o Sol mergulhava no horizonte, matizando o céu de vermelho e laranja e pronunciando mais um dia de calor.
Olhamos ao longe, silencio que doía, pensamentos em turbilhões povoavam a nossa mente.
-João, não respondestes, será que queres que vá embora?
Não vou saber viver longe de ti, ou fico contigo, ou vens comigo ou então mata-me para poder morrer abraçada a ti e partirei com a tua imagem na minha retina.
Depois entrou num soluçar convulsivo.
Apertei-a contra mim, sufoquei o choro na minha garganta antes de dizer:
-Meu amor nada nem ninguém nos vai separar, vou combinar com os meus pais e vamos ficar a viver juntos.
De repente o Sol nasceu na sua cara, as lágrimas pareciam pérolas a brigar naquele rosto, abafou-me de beijos, sufocou-me de abraços.
-Obrigada, obrigada, obrigada...meu amor.
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Os meus pais adoravam Madalena por isso a mudança foi fácil, íamos morar todos na nossa casa, no alto da falésia.
Fui com ela a Lisboa, recolher tudo o que lhe iria fazer falta, o resto, depois iria mudando aos poucos.
Era uma sensação diferente mas gostosa, compartilhava-mos todos os momentos, sorriamos à felicidade, fazíamos planos para uma vida que queríamos que fosse nossa, só nossa, e para sempre.
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Foi numa quinta-feira que o carteiro trouxe um registo para assinar e, estava longe de todos que esta missiva iria ser o despoletar de situações para a qual ninguém estava preparado.
Era lacónica, numa linguagem seca e sem vida, amorfa e triste como convém às missivas que, sem saberem, vão mudar a vida de muita gente.
Eu, João Menezes, oficial miliciano desmobilizado, era convocado para me apresentar no quartel para uma comissão de serviço numa das colónias, mais propriamente em Moçambique.
Madalena leu a convocatória com uma serenidade que me surpreendeu, os olhos brilhavam, mas inventou um sorriso, abraçou-me, lambuzou-me a cara de lágrimas incontidas e animou-me:
-João ainda falta um mês e eu vou contigo.
Todos sabíamos que era um desabafo, uma forma de tirar pressão, era como um escape para aliviar a angústia que sentiu tomar conta do seu pensamento e emaranhar as suas ideias.
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Quase como numa coincidência, também, foi numa quinta-feira. Uma chuva miudinha tornava mais triste a despedida dolorosa que se avizinhava. Rostos escurecidos pelo medo e pela incerteza.
Madalena era o símbolo da tranquilidade aparente, estática, numa serenidade feita de receios.
-João já que não posso ir contigo, vou estar todos os dias a tua espera. Vou rezar, como se fosse crente, vou implorar como se fosse possível fazer ouvir a minha voz. Vou estar em cada momento ao teu lado, vou ser um escudo a todas as balas, um lenitivo para as tuas dores, a alegria para os teus momentos de tristeza, vou ser o teu Anjo da Guarda. Não me vais ver chorar, nem tu nem ninguém, vou sorrir sempre para que o meu sorriso seja o Sol que te vai iluminar nestes tempos em que nos vão separar.
Quando o Niassa se afastou do cais, as figuras iam-se perdendo em miniaturas, onde apenas o lenço vermelho de Madalena deixava traços de fogos-fátuos.
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Foram uns tempos difíceis em Mueda, local para onde me jogaram. Clima tenso onde o medo transpirava nos rostos macerados destes homens, que atiraram para uma guerra que não era deles, cansados, desiludidos, esperando quando seria o dia em que a desgraça lhe iria bater à porta e o destino os mandaria para Portugal, numa caixa embrulhada na nossa bandeira.
Escrevia, quase todos os dias para a Madalena, mas a primeira resposta só apareceu, quase, dois meses depois.
Era uma carta longa, com todos os momentos contados de uma forma tão clara que a senti como se estivesse presente. Dizia que passava os dias a rezar embora não fosse grande devota, percorria todos os nossos caminhos e sentia como se a minha mão lhe segurasse a sua, olhava o horizonte na esperança de ver o barco que me devolvesse ao nosso amor.
Dizia das saudades, das noites de insónias, dos receios e ao mesmo tempo da esperança de um regresso para podermos continuar a nossa felicidade.
Dizia das saudades, das noites de insónias, dos receios e ao mesmo tempo da esperança de um regresso para podermos continuar a nossa felicidade.
Cartas longas, sentidas, turbilhões de palavras a que eu não sabia responder.
Apenas lhe contava das saudades e do desejo de voltar, não lhe dizia dos dramas, da dor e do sofrimento, dos camaradas estropiados, inadaptados, dos que ficavam nas picadas, nos que morriam em actos de bravura para alimentar uma guerra perdida, uma guerra que já não era nossa, isso não contava, deixava apenas para mim.
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Há coisas que não sei explicar, coincidências que nos levam a odiar dias, a ter medo que se voltem a repetir mas, para pasmo, voltou a ser numa quinta-feira de Novembro, chuvosa, fria, lúgubre e triste.
Quando bateram a porta, nada nem ninguém podia imaginar que o nosso mundo estava prestes a desmoronar.
Era um tenente e um sargento, perfilaram-se e saudaram militarmente a minha mãe e a Madalena que abriram a porta.
-São os parentes do nosso oficial João Menezes?
As duas tremeram mas abanaram a cabeça em sinal de anuência.
-Pois o que trazemos é uma missão ingrata e dolorosa, o nosso oficial teve um grave acidente em combate, não sabemos qual o desfecho, nem mesmo se será possível, ou se suportará ser evacuado para a metrópole.
A minha mãe desfaleceu mas Madalena gritou:
-Mataram o meu João, mataram o meu amor, acabaram com a nossa vida, ele precisa de mim.
Já vou meu querido!
Saiu disparada, atravessou o caminho, desconheceu os chorões que atrapalhavam os seus passos e correu para a falésia onde loucamente se precipitou no vácuo e desapareceu nas ondas revoltas.
Muitos, ainda, a ouviram gritar, ninguém sabe o que ela foi dizendo.
Encontraram, passados cinco dias, o seu corpo numa praia a trinta quilómetros da falésia.
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Voltei a pátria, oito meses no Hospital da Estrela, entre a vida e a morte e regressei a casa numa cadeira de rodas. As minhas pernas ficaram, lá, misturadas com os estilhaços de uma mina.
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Voltei a pátria, oito meses no Hospital da Estrela, entre a vida e a morte e regressei a casa numa cadeira de rodas. As minhas pernas ficaram, lá, misturadas com os estilhaços de uma mina.
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Agora estou aqui, limitado no espaço e no tempo, pedaço do que fui, sem futuro, sem sonhos.
Agora estou aqui, limitado no espaço e no tempo, pedaço do que fui, sem futuro, sem sonhos.
Pouso o copo onde o gelo se derreteu e tornou o Whisky num líquido colorido.
Olho o infinito para além da nossa falésia, pela nesga da minha janela e, sonho não acordar um dia.
Só a morte me pode libertar deste pesadelo.