Era
um dos dias mais felizes da sua vida, não porque tivesse razão de queixas da existência,
muito pelo contrário pois sempre se considerou uma privilegiada em relação há
maioria das amigas.
A
vida tinha-lhe dado quase tudo, nasceu numa família abastada, filha única e de
pais não muito novos o que, compreende-se, a tornava especialmente mimada, ela tinha
consciência disso e fazia esforço para não se aproveitar da situação.
Hoje
ia completar 18 anos e, tinha a certeza, os pais iam oferecer-lhe aquele carro
que ela estava farta de mirar na montra do stand.
O
Dia estava um pouco sombrio, manhã outonal com vento e uma temperatura um pouco
desagradável, mas para Joana o tempo parecia radioso.
Foi
espreitar à janela e perscrutou as redondezas na expectativa da surpresa,
embora esperada, do carro amarelo que a acompanhava nos sonhos e nos desejos.
Nada,
na rua, os automóveis do costume e no jardim o velho BMW do pai.
Seria
que estava enganada? Não iria manifestar qualquer desagrado mas, dentro, sentia
uma sensação de vazio e o dia não iria ser, de certo, a mesma coisa.
Os
pais já esperavam, na sala, para o pequeno-almoço.
Beijos
e parabéns escorreram nos rostos, o pai abraçou a filha enquanto lhe foi
segredando ao ouvido:
-A
tua prenda vai ficar escondida até logo e temos a certeza que vais gostar da
surpresa!
Joana
apertou mais o pai, puxou a mãe para o abraço e desabafou:
-Tenho
os melhores pais do mundo, amo-os mais do que à vida. Obrigado por tudo, por
terem feito de mim o que sou.
*******
A
animação era visível, a família e os amigos mais chegados iam tomando conta da
sala em amenos diálogos, enquanto os salgados e as bebidas iam desaparecendo
naturalmente. Os mais viciados, procuravam os cantos abrigados do jardim para,
em pequenos grupos, fazerem pequenas espirais com o fumo que calmamente iam
libertando das suas bocas.
A
música era convidativa e alguns, muito poucos, começavam a rebolar o corpo ao
ritmo dos acordes que enchiam o ar.
*****
O
pai de Joana estava preparado para sair e a filha, apercebendo-se, perguntou:
-Onde
vais pai?
O
homem sorriu e percebendo a curiosidade de Joana respondeu:
-Vou
ali e volto já, vou escolher a tua prenda!
-Posso
ir contigo? Perguntou Joana.
O
homem soltou uma gargalhada, deu um beijo na filha e entrou no táxi que já o
esperava ao portão.
*****
A
mãe de Joana estava preocupada, o marido já devia estar de volta, tinha saído,
quase, há duas horas e o que tinha para fazer não era para demorar, era só
pegar e vir, todo o resto já tinha sido tratado.
*******
Quando
o carro da polícia parou à porta os convidados, que fumavam no jardim, ficaram
curiosos e mais, ainda, quando um dos dois guardas que saiu lhes perguntou:
-
Esta cá algum familiar do, olhou o papel que trazia na mão, senhor Ramiro Caixinha?
Respondem,
quase todos, em uníssono:
-Está
a esposa e a filha, mas há algum problema?
Respondeu
o polícia que parecia mais velho:
-Muito
má noticia, o homem teve um acidente muito grave, já saiu do local cadáver e o
carro amarelo só serve para a sucata.
Aos meus amigos/as, do
Brasil, que fazem o favor de me visitar e têm a amabilidade em me deixar belas mensagens
de amizade peço desculpa por esta pantomina, sei que não vão compreender pois são
problemas cá do burgo e que vos passam, felizmente, ao lado,
Uma peça em três
actos, como convém, podia ser ficção mas se calhar não é.
Segunda-feira, 15
horas, dia cinzento
1º Acto
Uma sala e um balcão
com alguns livros em estantes. No lado de dentro uma menina com uma bata azul e
uma caneta na mão, no lado de fora um sujeito com uma pasta debaixo do braço.
Diz o
sujeito:
-Então bom dia! Venho tratar da minha licenciatura, quem me
pode atender?
Responde a
menina:
-Posso ser eu, quer fazer a sua inscrição? Espero que tenha
em ordem os seus documentos.
Volta a
dizer o sujeito:
-Mas que documentos, que historia é essa, eu tenho
experiência profissional e um currículo mais que suficiente para uma
licenciatura e até, quem sabe, até já com um mestrado.
Volta a
falar a menina:
-Bom, isso já não é comigo, tem que ser com o senhor reitor,
vou-lhe marcar uma entrevista. Deixe ver, espere lá, bom, bom, na sexta-feira
às 10 horas. Tá bom? Fica em nome de quem?
Fala o
sujeito:
-Doutor Óscar!
Admira-se a
menina:
-Mas se já é doutor porque quer a entrevista?
Subleva o
sujeito:
-Bom, parece que não percebeu eu sou doutor porque nasci
para ser doutor.
2º Acto
Sexta-feira, 10
horas, chove torrencialmente
Uma sala de entrada,
um banco corrido e um homem vestido como um porteiro
Fala o
sujeito:
-Venho para a entrevista com o senhor reitor
Responde o
homem vestido de porteiro:
-Entre, entre, ele está à sua espera.
Uma sala mascarada de
escritório, móveis escuros e pesados e sofás clássicos em cabedal castanho
Um reitor, figura insignificante,
enterrado numa cadeira de pele castanha vai apontando num caderninho os factos
e acontecimentos.
Diz o
reitor:
-Então o caro Óscar quer habilitar-se a uma licenciatura,
não é verdade?
Responde
o sujeito:
-Pois caro reitor, quero porque tenho direito a isso, pois
saiba o amigo que eu até já fui gaiteiro no rancho da minha terra e até numa
manifestação do 1º de Maio, lá na minha aldeia, fui eu que fiz o discurso.
Fala o
reitor;
-Muito me conta, isso é notável, nem todos se podem gabar de
tais acontecimentos, só por isso já tem direito a uma porrada de créditos.
Rejubila
o sujeito:
-Mas há mais, há muito mais, que eu sou uma pessoa de muitos
saberes e com uma experiencia do caraças, perdoe o termo, mas na minha terra
dizemos assim.
Palavras
do reitor:
-Não tenho dúvidas disso pois o nosso amigo comum, sabe bem quem
é, foi ele que mo remendou, disse-me da injustiça do seu professor, quando
acabou a instrução primaria, não lhe ter dado logo a licenciatura, mas não era
possível eram outros tempos e outras leis. Mas adiante, que mais podemos juntar
aqui na sua candidatura?
Continua
o sujeito:
-Então aqui vai, fui tesoureiro na Sociedade Recreativa o Pimpim,
fui cronometrista na corrida dos carrinhos de rodas de esferas durante a feira
de Agosto, ajudei o padre, lá da nossa paróquia, durante a missa.
Exulta o
reitor:
-Estou um pouco confuso na licenciatura que prefere, embora
a sua experiência dê para tanta coisa, é vasta! Mas afinal que licenciatura
pretende?
Deleita-se
o sujeito:
-Ainda não tinha pensado nisso, o que acha mais adequado à
minha experiência?
Volta o
sujeito:
-É difícil dizer mas, penso que, algo como Desenvolvimento
Organizacional, não acha bem? Só tem um pequeno problema tem que fazer
Metodologias das Ciências Sociais.
Assusta-se
o sujeito:
-E como se faz isso? Sou uma pessoa muito ocupada e o nosso
partido precisa de mim.
Descansa-o
o reitor:
-Não vou complicar, eu mando-lhe, por correio electrónico, o
enunciado e logo me manda a resposta.
Pergunta
o sujeito:
-Esta bem, posso responder no domingo?
Acalma-o
o reitor:
-Pode e na segunda-feira tem o seu certificado pronto e
depois é só pagar na secretaria.
Sussurra
o sujeito:
-Senhor reitor, é de homens como o senhor que o país precisa
para andar para a frente.
Baba-se o
reitor:
-Pois eu sou muito prático e gostei de o atender senhor
doutor.
3ª Acto
Manhã cinzenta,
ameaça chuva.
O mesmo balção, a
mesma menina e o mesmo sujeito
Declara o
sujeito:
-Venho pelo certificado!
Responde
a menina:
-Está pronto é só pagar a inscrição, o curso e o exame.
Pergunta
o sujeito:
-Qual a minha nota em Metodologias das Ciências Sociais?
Quando
desceu os degraus da Igreja o bruaá de espanto ecoou como se a admiração
tivesse um som.
Parecia quase
irreal nos contornos de um corpo cinzelado pelo bom Deus num dia de muita
inspiração, nas faces onde o resplandecer de um sorriso, quase divino, fazia o
brilho do Sol empalidecer.
Era a noiva.
Ao seu lado um homem demasiado discreto, ia realçando, ainda mais, toda a
formosura da donzela.
-Que linda
noiva, exclamou a Dª Rosa!
-Boa como o
milho, disse o Chico!
-Mal
empregada, suspirou o professor Osório!
***
Foram uma
família feliz até que a desgraça, numa tórrida tarde de Agosto, deixou o senhor
Meireles agarrado a uma invalidez para o resto da vida. O tractor quando se
empinou, numa vala, atirou o pobre homem deixando a coluna de tal forma que se
lhe acabou a vida abaixo da cintura, agora dependia da mulher para tudo até,
como dizia, para mijar.
A Junta de
Freguesia conseguiu, com a ajuda da população, comprar-lhe uma cadeira de rodas
para amenizar tanta desgraça.
A vida não
era fácil, pois a pensão de invalidez era pequena e os trabalhos de costura não
abundavam, o que lhes valia era o rendimento de uma pequena courela que tinham alugado,
pois ele não a podia cuidar.
Naquela
quente tarde de primavera, mãe e filha, deixaram o senhor Meireles sentado à
porta da rua para poder ver quem passava e, ao mesmo tempo, entretido com os
amigos que paravam para deixar uma palavra de carinho.
Iam fazer as
pequenas compras semanais.
***
Isa, assim
se chamava a filha, foi a primeira a sair do minimercado, carregando os sacos
de plásticos, e ficou surpreendida pelo olhar lupino de um rapaz que se
encontrava na esplanada do Café Central.
Sentiu-se,
um pouco, incomodada e comentou com a mãe:
-Vistes
aquele lingrinhas? Parecia que me ia comer com os olhos!
A mãe sorriu
e perguntou:
-Não sabes
quem é aquele rapaz? E antes que a filha tivesse tempo para responder, foi acrescentando,
o moço é o filho do Senhor Engenheiro Timóteo, o homem mais rico desta região.
Dizem que tudo que a gente avista muitas léguas em redor é dele e aquele rapaz
é o único filho e um dia toda a riqueza vai ser dele. Devias ter retribuído o
olhar e até um sorriso não tivesse sido despropositado.
Isa estava
admirada com a conversa da mãe, parecia estar interessada em qualquer coisa.
Fez de conta
que não percebeu e continuou o caminho.
***
Tinham
acabado de jantar e estavam ajeitados para ver a telenovela quando bateram à
porta.
Foi a mãe
abrir e, quase teve um ataque, na sua frente estavam, de chapéu na mão, o
senhor engenheiro Timóteo e o filho.
-Boa noite,
disse o homem, pedimos desculpa por vir incomodar a esta hora mas aqui o rapaz
não me deixou esperar mais, queremos falar consigo e com o seu marido. Pode
ser?
-Oh meu
Deus, balbuciou a mulher. Entrem, entrem!
Estava
nervosa e ia fazendo do avental um rodilho de tanto o torcer, caminhando de
lado ia dirigindo as visitas para a sala enquanto gritava:
-Oh Meireles,
oh Isa vejam quem está aqui! Temos visitas importantes, o Senhor
Engenheiro e o
filho querem falar com a gente. Isto é mesmo uma grande honra.
Entraram
todos para a sala perante a admiração da Isa e do pai.
-Mas entre
Senhor Engenheiro, entre, insistia a dona Balbina.
Era um pouco
confrangedora a situação, pairava no ar um incómodo desconforto.
Isa era a indiferença total, Meireles
encolhido na sua cadeira parecia um pouco incomodado por lhe irem quebrar a
rotina da sua telenovela. Só a dona Balbina parecia uma pura imagem de alegria.
Olharam uns
para os outros perturbados e foi o engenheiro Timóteo a ter coragem para tomar a
palavra:
-Bom, devem
estranhar esta visita inesperada mas o meu filho insistiu tanto que me decidi,
espero que me perdoem e compreendam a razão.
Olhou o
filho e ficou esperando um sinal de aprovação, mas o rapaz só tinha olhos para
a Isa que se encontrava encostada à parede numa total indiferença.
-Como ia
dizendo, retomou o engenheiro, o meu filho há muito que anda de olho na vossa
filha num total embevecimento e não se cansa de me dizer que encontrou a mulher
certa, a única capaz de voltar a trazer alegria à nossa casa.
-O gajo não
joga com a bola toda, pensou Isa!
-É mesmo o
Euro milhões, matutou Balbina!
-Não estou a
perceber nada, cogitou Meireles!
-Mas,
continuou o engenheiro, como devem saber eu fiquei viúvo faz três anos e tenho,
sem ajudas, criado este filho, Bernardo, que tem sido o meu grande amparo e a
minha maior força, só tem 19 anos mas pensa como um adulto.
O senhor
Meireles ajeitou-se na cadeira, ganhou folego e coragem para dizer:
-Senhor
Engenheiro sabe que nós temos muita consideração por vossemecê, pela sua
bondade, pela forma como tem ajudado esta terra, pelo trabalho que tem dado a
este povo. Mas deve compreender que terá que ser a Isa a decidir, ela têm 25
anos e nós não podemos falar por ela.
Dona Balbina
não se conteve e foi acrescentando:
-Oh Meireles
é nossa filha e nós temos obrigação de a aconselhar e não me parece que…..
Não teve
tempo de completar a frase, a filha interrompeu com as lágrimas a quererem
saltar dos lindos olhos:
-Bom, eu,
não quero ofender ninguém, acho e compreendo o acanhamento do senhor
engenheiro, pois não deve ser fácil aparecer numa casa, onde nunca entrou, a
pedir uma mulher de 25 anos para um miúdo de 19. Não quero ser desagradável mas
deve compreender que o seu filho ainda é uma criança.
O silêncio
caiu naquela sala, olharam uns para os outros sem saber. Isa desatou num choro
convulsivo, Meireles retesou-se na cadeira como se fosse possível levantar-se,
dona Balbina começou a rezar baixinho, o Bernardo mordia os lábios num
nervosismo confrangedor e o engenheiro Meireles gesticulava na tentativa de por
ordem ao desarranjo que acabara de causar.
-Bem, falou
por fim, vamos embora não nos compreenderam e criamos uma grande confusão.
Foi então que o que o rapaz mostrou que também
estava presente:
-Pai, espere
porque aqui vai uma enorme confusão, eles não perceberam e pensam que estamos a
pedir a mão da Isa para mim, tem que explicar que não, tem que dizer que é o
pai que está interessado em casar com a moça e que eu apenas ajudei a escolher.
O silêncio
parecia doer.
Meireles
meditava, não estou a perceber nada disto.
Balbina
pensava, é para o pai, que pena eu não ser livre
Isa não se
conteve:
-Mas senhor
engenheiro, explique melhor porque ficamos todos confusos e peço desculpa por
mim e pelos meus pais.
O engenheiro
empertigou-se, passou os dedos pelos cabelos grisalhos e, com um ligeiro
tossicar disfarçou o nervosismo que parecia que o tinha tolhido.
Alisou, mais
uma vez o cabelo, aclarou a garganta e com a voz entaramelada começou:
-Vou
explicar, há muito que eu anda de olho na Isa, acho que é uma rapariga muito
especial e, confesso, sinto por ela uma grande atracção. Pedi, como faço
sempre, a opinião do meu filho que só me disse que não devia perder mais tempo
e, hoje, quase me obrigou a tomar coragem. Por isso estou aqui para pedir a mão
da vossa filha.
Olhou a moça
e num gesto quase teatral pediu:
-Isa aceitas
casar comigo?
Meireles e
Balbina pareciam ter voado para bem longe, tal era o alheamento, mas Isa estava
presente para responder:
Foi assim
que me cumprimentou enquanto um brilho nos seus olhos, cor de âmbar, deixavam
antever tudo aquilo que sentia.
-Tenho um
namorado, repetiu, como se fosse a única no mundo a ter um namorado.
Rebolou os
olhos, passou os dedos pelos cabelos e sorriu.
Parecia que
todas as bênçãos do mundo a tinham bafejado.
Todo o seu
corpo deixava antever a felicidade que a invadia.
Não se
cansava de o repetir como se isso alimentasse a sua felicidade.
-É o Rui,
conheci-o ontem no centro comercial. Estava a comer uma pisa e olhou-me de uma
forma diferente. O seu sorriso de dentes brancos deixou-me loucamente presa no
brilho do seu olhar. Era impossível ficar indiferente. Fiquei apaixonada,
presa, sem poder resistir. Falamos o resto da tarde, andamos de mãos dadas.
Beijou-me de forma intensa, como nunca ninguém me beijou. Ouvi sinos e
cânticos, fui transportada a um lugar onde nunca me tinha sentido.
Estou,
loucamente, apaixonada.
Vêm-me esperar á saída! Vamos ao cinema!
São oito horas e a Graça continua á espera, está impaciente
mas não desiste. Devia ter chegado as seis e ainda não apareceu. Decerto algo
aconteceu.
Nove horas, vai desistir, não pode esperar mais.
Agora percebe porque ele era apenas Rui, porque não tinha
número de telemóvel para lhe dar, porque não disse onde trabalhava e, porque não
era importante onde morava.