quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Na Bruma





Foi há tantos anos que por vezes a memória já se perde na bruma do tempo.

Sei, porque há coisas que nunca esquecemos, que num gelado dia de Janeiro, Maria Angelina, descobriu que esse atraso não era normal. Não foi a primeira vez que o coração se sobressaltou, que a cabeça girou no receio de ser desta vez que o caldo se ia entornar.

O seu Tónio estava no serviço militar e só vinha a casa ao fim de semana, mas com uma fome danada, e depois era o fim do mundo. O que valia era a casa ser paredes meias com uns vizinhos, um pouco moucos, e que já não davam fé do reboliço que ia por aqueles lados.

Ela bem lhe pedia para ter cuidado, mas quem conseguia suster o saciar desses prolongados jejuns?

Agora andava preocupada, já eram dias a mais e aquela gaita não havia maneira de aparecer.

Tinha vergonha de ir à farmácia pois aqui todos se conheciam e o falatório não ia tardar.

Foi à vila e os receios passaram a ser uma certeza, estava grávida e, como lhe disse a farmacêutica, grávida e bem grávida.


*******

Maria Angelina andava num misto de alegria e tristeza, dividida entre a prazer e a dúvida, entre o desejo e o não querer.

Havia no seu peito uma angústia que não sabia explicar, ser mãe e não adivinhar qual seria a reação do Tónio. Estava convencida que ia ficar feliz, ele, gostava tanto de crianças.

Mas entre o gostar e o querer vai uma distância que por vezes é maior que o nosso pensamento. Ela recordava, as conversas longas, nas noites frias de Inverno, entrelaçados e aconchegados nos lençóis, quando lhe falava em casamento e filhos, mudava o assunto, acariciava-lhe o peito e, fingindo ironia, ia acrescentando que estas lindas peças não podiam ser estragadas pelas bocas gulosas de um bebé.

Ela, na altura, ria-se pensando que o seu Tónio queria apenas elogiar a firmeza do peito mas agora, essas palavras faziam eco no seu pensamento e tornavam penosa esta espera, esta incerteza.


*****

Chovia copiosamente na noite, dessa sexta-feira, quando a porta estremeceu com as batidas anunciadoras da chegada do nosso militar, pingando como esponja encharcada.

-Vai já tomar um banho quente antes que te constipes, disse Maria Angelina.

O homem deu uma gargalhada e perguntou:

-E então o meu beijo? Primeiro o beijo depois o banho.

Voltou, embrulhado na toalha, para o calor do lume que crepitava na lareira, mas o rosto da namorada estava estranho, fechado, escuro e impenetrável.

Timidamente perguntou:

-Que bicho te mordeu cachopa? Estás tão sisuda!

Ela trincou o lábio para não chorar, queria parecer forte, era difícil, mas a coragem veio ao de cima:

-Estou grávida, estou prenha !

O homem mudou de cor, levantou-se num ápice e gritou:

-Tu grávida? Estás maluca, como podes estar grávida? Com quem andas metida enquanto eu marco passos no quartel?

A mulher saltou do banco de atiçador em riste, os olhos metiam medo e soltando todas as forças que encontrou, dentro dela, gritou:

-Desaparece daqui antes que eu me desgrace e acaba com a vida do maior patife que se cruzou na minha vida. Sai, saia depressa, porque eu tenho nojo de te ter na minha presença!

Vestiu a farda encharcada, remordeu impropérios e saiu para a negrura da noite.

***

Quando saiu de casa ainda os galos não tinham cantado. Não chovia, mas um vento frio parecia cortar as orelhas. Maria Angelina não queria testemunhas daquele abalar matutino, quase marginal, esgueirou-se, com duas malas nas mãos, colada às paredes das casas desertas, não queria que os vizinhos, que a conheciam, se apercebessem deste desertar madrugador.

A camioneta, que fazia a ligação à automotora, saia do largo da feira às seis e meia da manhã, depois era só apanhar o comboio e partir para bem longe da terra que a viu nascer.

Tenho feito, há pouco tempo, 25 anos nesta aldeia perdida nos contrafortes da serra. Daqui viu partir a mãe consumida pela maldita doença que lhe corrompeu as entranhas e, pouco depois, o pai que se refugiou na bebida até que um dia o encontram pendurado no velho castanheiro.

Carpiu o desgosto, chorou no silêncio da casa deserta, até que os olhos secaram quando as lagrimas lavaram toda a dor que carrega na alma.

****

Nunca mais tinha sorrido até que um dia o Tónio, aperaltado, numa farda de militar, se lhe perfilou na sua frente e entre risos fez continência e lhe perguntou se a podia acompanhar a casa.

Deixou-se escoltar e voltou a sorrir, a vida passou a ter novamente algum significado.

Entregou-se aquele homem, o primeiro na sua vida, de uma forma tão intensa que ela própria não sabia explicar, vivia cada momento como se o mesmo fosse o ultimo, bebia as suas palavras, alimentava-se da seiva dos loucos fins-de-semana, dos sonhos, das promessas sussurradas nos momentos de paixão. 

E agora via que, afinal, tudo era uma mentira!

*****
A camioneta começou a sua marcha lenta pela sinuosa estrada, deixando um rasto de fumo negro, Maria Angelina olhou as poucas luzes que assinalavam a aldeia que se ia diluindo á medida que o veículo ia descendo no caminho da vila.

Maria Angelina deixou cair uma lagrima, não de despedida, pois sabia que um dia ia voltar, mas para libertar a vingança que lhe ia dentro do coração.

Quando a automotora partiu sentiu como se vida tivesse acabado aqui, para retomar quando chegasse à cidade que a esperava na imensidão do desconhecido.

****

Estávamos no final de uma amena tarde de Setembro quando o pequeno Ricardo deu a entender ao mundo que tinha acabado de chegar, Maria Angelina recebeu nos braços o filho que carregara no ventre durante, quase, 9 meses.

Era tão pequeno e tão frágil mas não podia negar, era a cara chapada do Tónio.

*****

Os dias correm tão ligeiros e tão metamorficamente que, quando olhamos para o lado, já os meses se transformaram em anos e os cabelos brancos teimam em despontar nas têmporas.

O Ricardo estava um rapaz que era o enlevo da mãe, ladino e de uma esperteza que a deixava, por vezes, sem o poder de resposta para algumas perguntas do filho. Hoje quando chegou do colégio olhou a mãe e perguntou:

-Porque é que eu não tenho um pai como os outros meninos?

Ficou perplexa e embora já esperasse, há muito, essa pergunta engasgou-se antes de responder

-O teu pai foi fazer uma viagem muito grande e não sabemos quando volta!

-Mas, mamã, ele podia telefonar, ou não gosta de nós?

-Gosta muito de ti e um dia ele telefona. Agora vai lavar as mãos para lanchares!

Para Maria Angelina o pai do Ricardo era, apenas, uma má recordação do passado que tinha alimentado no ódio até ao dia, que esperava próximo, pudesse destruir a vida de quem destruiu a sua. O desejo de vingança estava a germinar ao longo destes sete anos, em cada dia que passava mais se enraizava o desejo de acabar com a existência do malvado, que numa noite tinha enterrado todos os sonhos que o seu coração albergara.

****

Estava tudo planeado na sua cabeça, ia acabar com o desgraçado mas, antes, queria que ele conhecesse o filho e pudesse ver que o retrato não precisava de provas de paternidade.

Ia, passados estes anos, voltar à aldeia.

A automotora há muito que foi desactivada, agora havia uma camioneta até à vila e, depois, um táxi para a povoação.

******

Ricardo acordou, quase, de madrugada e foi enroscar-se na cama da mãe, estava agitado e ansioso pela viagem de camioneta, nunca tinha andado e, a promessa de talvez puder conhecer o pai provocava-lhe um misto de medo e satisfação, não sabia explicar mas era um sentimento bom e, ao mesmo tempo, mau.

A mãe tinha-lhe dito:

-Sabes filho, o teu pai não te conhece e a mãe não sabe se ele gosta muito de ti, nunca te viu e é natural que se tenha esquecido, mas não te preocupes, se ele não gostar eu gosto pelos dois.

Ao moço isso causava alguma confusão, pois ele também não conhecia o pai e, apesar disso, gostava muito dele.

Maria Angelina tinha preparado a viagem cuidadosamente, sabia que o Tóino acabada a tropa tinha voltado à terra e estava a tomar conta dos negócios do pai, que era um pequeno agricultor e, também, dono do café que ficava no largo da Igreja, mesmo no centro da aldeia.

Levava na mala a pistola, embrulhada num lenço, e no coração o ódio suficiente para fazer o que tinha que ser feito.

Ia apresentar o filho, depois deixaria a criança na casa da Dona Marcolina, vizinha de toda a vida, voltava ao café e descarregaria a pistola, no malvado, até que toda a raiva deixasse o seu coração. Não era fácil, mas tinha que ser feito, tinha que limpar a honra.

*****
Quando o táxi os deixou no largo da Igreja, muitas caras se voltaram para aquela mulher que com uma criança nas mãos se encaminhava para o café, muitos pareciam conhecer, mas as memórias estavam baralhadas.

Àquela hora o café estava quase vazio, ao balcão um homem ia, vagarosamente, limpando umas chávenas que depois alinhava na máquina do café.

Tóino olhou a mulher e a criança, primeiro com dificuldade pois a contraluz não o deixava enxergar bem, depois com os soluços a embargar-lhe a voz gritou:

-Amor onde tens andado? Voltei no outro dia de manhã para te pedir desculpa, depois corri todos os sítios conhecidos, possíveis e impossíveis, para te encontrar mas ninguém sabia de ti. Esse é o nosso filho? É lindo! Vamos recuperar o tempo perdido, vamos criar o nosso menino!

Maria Angelina voltou a sorrir, esqueceu ao que vinha, afinal Tóino foi o primeiro e único homem na sua vida.










terça-feira, 23 de outubro de 2012

O Padre Inácio







Já todos devem conhecer o padre Inácio! 

Não, não é esse, é o padre-cura da minha paróquia.

Não é notável por actos ou feitos, não se notabilizou por obras de beneficência, de caridade, exorcismos, sermões mais inflamados ou por qualquer mérito de santidade, nada disso é apenas um homem bom que tenta passar despercebido numa paroquia de pessoas simples que vivem da pastorícia ou do cultivo da terra.

Pois o nosso rotundo padre, homem de muito virtude, apreciador de boa mesa tenta passar despercebido, não quer protagonismo pois a simplicidade da vida é a mais adequada a um homem de Deus.

Tem uma vida austera que divide, entre a casa de Deus e a casa da paróquia onde habita.

Na casa de Deus vai cumprindo as missões a que está destinado, missas, baptizados, casamentos e, como não pode deixar de ser, os funerais. 

Tem na sua diocese muitos, e bons, voluntários que o aliviam de muitos afazeres, para os quais, confessa, não se sente muito vocacionado. 

Orientar a catequese e todas as burocracias administrativas que, apesar de tudo, fazem parte da rotina diária da sua paróquia não é o seu forte e muito menos a sua devoção.

Sempre que pode refugia-se na tranquilidade da casa que lhe foi destinada e onde a sua governanta, dona Rosa, o trata como se fosse um príncipe e os resultados estão bem à vista. O que lhe vai valendo é a horta, sua paixão, onde se deixa perder no tempo, abrindo rasgos, fazendo caldeiras junta às arvores, cavando e ficando extasiado vendo o fruto do seu trabalho, e de tanto amor, desabrochando para regalo e alegria do padre.

À tarde fica sentado ouvindo os melros que se vão alimentando dos seus frutos, mas ao contrário do padre-cura do Guerra Junqueiro, o nosso padre Inácio não os imagina na frigideira, gosta de os ver e ouvir na natureza.

Manhã, bem cedo, antes dos deveres canónicos, faz correr a água enquanto com uma pequena enxada vai acompanhando o caudal para que todas as plantas recebam a parte a que têm direito.

Antes de sair ouve, quase sempre, o responso da dona Ross, pois as mãos e unhas encardidas pela terra não vão bem com o pastor do rebanho desta paróquia.

Ouve, mira-a, sorri e concluí:

-Tem razão minha amiga, vou já esfregar estas mãos e unhas com uma escova e esse seu detergente que faz maravilhas!

Depois sai para a luz dia, bonacheirão e com um sorriso rasgado para com quem se cruza no caminho da Igreja.

****

Dona Rosa é a sua governante mas, na realidade, ele sente-se mais como uma mãe que trata com todo o carinho e desvelo esse filho que nunca teve. Ficou viuva, nunca sentiu a bênção da maternidade, ela que tanto amor tinha para dar. Quando lhe fizeram o convite para governanta do padre aceitou embora com algum receio, pois sempre lhe disseram que os padres tomavam aquele ar de beatitude mas, depois, fora do círculo da Igreja eram umas pestinhas difíceis de aturar. Mas teve sorte o padre Inácio era de uma grande bondade, para ele tudo estava bem, adorava tudo o que ela cozinhava e nunca fez qualquer reparo. Aceitava os conselhos e chamava-a, com carinho, de mamã Rosinha.

***

Tudo corria na paz do Senhor, os dias passavam naquela monotonia e quietude que o padre tanto apreciava, a sua Igreja, os seus paroquianos, o conforto da sua casa e a horta, sim a horta, onde se embrenhava em solilóquio com as couves, os nabos e toda a classe de produtos que a terra tão generosamente lhe ia oferecendo.

Parecia que tudo era perfeito mas, de repente o padre blasfemou, o bom e tranquilo padre Inácio perdeu a postura e, acreditem, largou um impropério contra a sua mamã Rosa.

Dona Rosa não esperava, saiu disparada e só parou na casa da sua irmã Maria Gertrudes, que muito admirada lhe perguntou:

-Que fazes aqui a esta hora Rosa?

Rosa com as lágrimas saltando dos olhos apenas respondeu:

-O padre virou demónio, chamou-me velha desastrada, a mim que tenho sido mais do que uma mãe para aquele traste!

-Mas que coisa ruim aconteceu mulher?

-Nada, respondeu, ou quase nada, apenas me distrai, sentei-me em cima dos tomates do padre Inácio e esborrachei-os.


Depois, dona Rosa entrou num choro convulsivo.

-Credo mulher, que brutalidade. Como fizestes isso?

- A culpa foi dele, colheu-os na horta, deixou-os em cima do banco e não me avisou.

Eu não podia adivinhar!





terça-feira, 16 de outubro de 2012

A viagem








Era uma estranha sensação, andava um pouco perdido e pela primeira vez não sentia aquela dor aguda que o apoquentava há tanto tempo, o médico dizia que era da coluna, da falta de cuidado quando se estirava no sofá, se calhar era mas se tinha tão belos sofás porque raio se ia sentar numa cadeira?

Na verdade hoje nada lhe doía. Tinha que se despachar, mas coisa esquisita passou a mão pela cara, que estava gelada, e pareceu-lhe que não precisava fazer a barba.

Foi espreitar o espelho e via-se reflectido como se fosse um negativo. Era ele mas não parecia, pois as sombras cobriam-lhe o rosto e não dava para se aperceber bem do que via.

Foi procurar os óculos mas hoje era dia não. Onde se terão metido os malvados? Quando não precisar deles logo vão aparecer.

Andou assim perdido, do quarto para sala e da sala para o quarto, sem saber bem o que tinha que fazer.

Há coisas que nos ultrapassam, acabou de se levantar, não se recorda de fazer nada e, na realidade já estava impecavelmente vestido, de verdade com um fato que detestava, com uma gravata que não se lembrava de usar há anos e com uns sapatos pretos que antes lhe magoavam os pés, mas de hoje nem os sentia.

O estranho era estar vestido a rigor embora com um pouco de cheiro a naftalina e não sabia, exactamente  o que tinha que fazer, não abe lembrava de nenhum compromisso mas, não se admirava porque a cabeça por vezes já lhe ia pregando partidas.

Estava cogitando neste mar de incertezas quando, os sinos da Igreja, o despertaram para um pungente toque a finadas.

Era um repicar tão triste e tão lúgubre que, lhe pareceu sentir duas  lágrimas a escorrer pelo rosto, passou a mão mas não, era só impressão pois a cara continuava fria, mas bem enxuta.

Tentou coordenar os pensamentos mas apenas o vazio lhe povoava o pensamento.

Mas era estranho, estava vestido, barbeado, gravata impecavelmente colocada, sapatos brilhando e sem saber porque e nem para que!

Os sinos continuavam no repicar triste e soturno.

Foi então que pensou que se tocavam a finados alguém tinha morrido. Estava tudo explicado, era isso, estava preparado para ir a um funeral. Não se lembrava de quem, mas não admirava, a cabeça por vezes já o atraiçoava.

Subiu a rua, passos suaves e firmes, há muito que sentia as pernas tão firmes. Estranhou que ninguém lhe respondesse quando os saudava com o habitual bons dias.

À porta da casa mortuária estavam os seus amigos e alguns familiares. Mas afinal quem tinha morrido? Porque seria que todos o desconheceram e ninguém respondeu às suas palavras?

Entrou, não percebeu, ninguém se desviou mas nenhum obstáculo o impediu.


Na peanha, num ataúde aberto descansava um homem com um pano na cara, um fato igual ao detestável que ele vestia, uns antiquados sapatos pretos como os dele e, coincidência tão estranha, a mesma insuportável gravata.

Tentou levantar o pano da cara do homem mas, não entendia, os dedos passavam e o lenço continuava na mesma posição.

De repente percebeu, agora já sabia, tinha chegado a sua hora.

Hora de partir e ninguém o tinha avisado



segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Hoje, 15 de Outubro







O dia, lá fora, parece estar risonho pois uns tímidos raios de Sol estão a filtrar-se pelas persianas e a obrigar-me a abrir os olhos para o dia.

A cama está confortável e as noites mais frias ajudam a esta moleza que nos incita a enrolar na preguiça dos cobertores.

O telemóvel tem estado numa doidice total, não tem o som ligado mas o vibrar vai dando conta das chamadas.

O ecrã diz oito não atendidas, nem vou espreitar, são os problemas do costume, trabalho, pressas e pedidos de última hora. Que se lixem, vou fazer a barba e saborear um grande pequeno-almoço.

Hoje, nem sei porque, mas apetecem-me croissants com doce, de preferência de laranja e um café enorme, quente e fumegante.

A mesa está posta com algum requinte, não é que não seja normal mas hoje está, mesmo, especial, pois além de flores amarelas (adoro flores amarelas) um enorme embrulho com um laçarote dourado está em posição de realce.

Cabeça a minha!

As chamadas, o embrulho e este marasmo que me envolve tem uma razão.

Dia 15 de Outubro, mais um ano no caminhar para a velhice.

Afinal é o meu aniversário!




segunda-feira, 8 de outubro de 2012

A Mariquinhas








A Mariquinhas é uma personagem um pouco estranha, não pelo aspecto mas pelo comportamento, má como uma cobra-cascavel, venenosa e com uma língua que só lhe falta ser bifurcada para a semelhança ser mais verdadeira.

É egoísta, quezilenta,  viperina e tão perigosa que todos a conhecem pela víbora do rés-do-chão direito.

Escuta tudo, sabe de todos, o mundo é o seu inimigo.

*****

Nem sempre foi assim, apenas a vida azedou o carácter de uma jovem que sonhou com o amor.

Tinha 20 anos quando conheceu o Onofre, já tinha namorado outros rapazes mas nada que lhe tivesse feito palpitar o coração, agora era diferente.

Foi na quermesse da feira de Santo Agostinho que ele lhe ofereceu, o urso de peluche que tinha ganho ao desembrulhar um daqueles papelinhos coloridos.

Pensou em não aceitar mas, aquele sorriso mascarado num bigode a Errol Flynn, foi mais forte que o pensamento.

Passearam o resto da noite, comeram farturas, soltaram gargalhadas sonoras nas voltas do carrossel, escarranchados numas girafas pintadas em cores garridas.

Ficaram, desde logo, com um compromisso para a vida.

Ele tinha 25 anos e, segundo disse, tinha terminado o curso de direito e ia trabalhar na empresa Saca & Saca Advogadas Associados, Lda., ao princípio seria estagiário, não ia ter grande salário, mas depois de acabar o estágio ia ganhar muito dinheiro.

Mariquinhas estava embevecida, bebia as suas palavras e deixava-se embalar no doce cantar das lindas promessas.

Casaram num dia de muita chuva mas, como diz o povo, casamento molhado é casamento abençoado. Iam morar na casa da Mariquinhas, que tal como a outra, não tinha janelas com tabuinhas.
­Era por pouco tempo, disse Onofre, depois iam comprar um apartamento, quem sabe, talvez, uma vivenda num sítio chique.
Foram uns primeiros tempos de sonho, puro enlevo.

Depois perante a desculpa de que advogado estagiário não tem salário  Mariquinhas ia mantendo, a muito custo, as despesas domésticas, mas era por pouco tempo, pois não tardava e o nosso causídico, dizia ele, iria compensar a mulher por tudo isso.

Mariquinhas não compreendia o estranho horário do marido, dormia durante o dia, depois saia para o trabalho e só regressava a casa a altas horas da madrugada. Só se viam, de facto, ao fim de semana, pois quando Mariquinhas saia ele dormia e quando Onofre chegava, dormia ela.

Andou assim muito tempo, ela trabalhava o marido dormia, algo estava errado, ia saber o porque do estranho horário e porque, passado tanto tempo de estágio, nada lhe pagavam?

Foi, muito timidamente, visitar Saca & Saca Advogadas Associados, Lda., e, pasmem, ninguém conhecia o senhor doutor Onofre Casquinha.

-Não! Aqui não trabalha! Foi o que lhe disseram.

Mariquinhas ficou desconfiada, algo estava errado e, entre dentes jurou:

-O malvado anda a enganar-me mas eu vou descobrir e ele não se vai ficar a rir. Juro que não!

*****
Onofre levantou-se quando Mariquinhas chegou do trabalho. Tomou banho, perfumou-se, alisou cuidadosamente o bigode, beijou a mulher e, antes de sair, disse:

-Minha querida o dever espera por mim.

****

Hoje ia ser diferente, ia seguir o marido, queria ver qual eram os seus afazeres.

Não foi difícil, ia à vontade, pegou o autocarro 201, andou 5 paragens e desceu na Avenida 24 de Julho.

Acendeu um cigarro e alisou, naquele jeito tão próprio, o fino bigode e preparou-se para atravessar a rua.

Mariquinhas pagou o táxi, enrolou o lenço à volta da cabeça para passar mais despercebida e preparou-se para seguir, embora a alguma distância, os passos do marido. Era muito estranho que o local para onde se dirigia pudesse a ter algo a ver com o trabalho.

Ele atravessou com a mudança dos semáforos, enquanto, ela arriscou uma corrida entre os carros para o não perder de vista.

Onofre estugou o passo, assobiou baixinho, deitou fora a prisca do cigarro e entrou na danceteria "O Violino".

Mariquinhas espreitou e, meu Deus, enxergou o marido cingindo pela cintura duas belas moçoilas, parcamente vestidas.

Enrolou a cabeça no lenço e, bebendo as lágrimas, foi a caminho do autocarro para o regresso a casa.

O ódio enchia o peito, o despeito martirizava-lhe a alma, a vingança passou a fazer parte do seu pensamento.

Agora percebia porque as longas noites de amor há muito tinham caído na rotina, pelo cansaço, dizia ele, pela fartura pensava, agora, ela.

Foi para a cama, não para dormir, mas para alimentar o ódio e amadurecer a vingança.

Eram, quase 5 horas da madrugada quando sentiu a entrada furtiva, passos leves, quase silenciosos, despiu-se como se a roupa fosse de veludo e anichou-se no quente da cama.
Passados 5 minutos ressonava na tranquilidade dos justos.

Era a hora esperada, era o momento de decidir o que havia para resolver.

Tinha a tesoura de podar bem afiada e pronta a cumprir a missão que lhe tinha destinado. Levantou os lençóis, procurou a melhor posição e zás, está feito.

Depois, o que cortou, foi bailando ao sabor da descarga do autoclismo. Havia coisas que não eram para compartilhar, eram dela, apenas dela.

O homem berrava como um capado e nunca um termo foi tão bem aplicado.

Os médicos tentaram uma reconstituição, remendaram mas…bom, nunca mais foi a mesma coisa.

***

O juiz não ficou muito convencido com os argumentos e condenou-a a seis anos de prisão efectiva.

Cumpriu a pena mas, quando saiu, não era a mesma mulher.

Agora está muito diferente!



terça-feira, 2 de outubro de 2012

A dúvida






Ficou um pouco assustado, o sino da Igreja parecia tocar a finados, não é que ele percebesse muito de toques mas este troar tinha algo de fúnebre.

Não sabia explicar porque mas, talvez o compasso, o eco triste ou, quem sabe, se não um terceiro sentido que o levava a pensar assim.

Foi ai que teve pena de que os telefoneis ainda não tivessem sido inventados, mas não, só havia aqueles telefones pretos com um auscultador encaixado num gancho no bocal, para onde se atiravam as palavras, e mesmo desses não tinha nenhum. Ia á venda do senhor Simão telefonar a saber, mas, pensou, se ia à merceeira não precisava de telefonar, perguntava e ele sabia de certeza. Pensando melhor era preferível ir à casa mortuária na Igreja e ficava a saber tudo.

Primeiro tinha que fazer a barba, pois com este pelos crescidos ainda haviam de pensar que já estava de luto por alguém que ainda não sabia quem, mas não ia por aftershave, para não julgarem que não tinha sentimentos, pois um desgraçado se tinha finado e ele estava a embelezar-se sem mostrar sentimentos. Mas o povo é mesmo assim, que havia de fazer!

Preparou o pequeno-almoço, tinha fome, mas a consciência parecia atormenta-lo, pois estar a comer, agora, antes de ir saber o que aconteceu era de um enorme egoísmo, alguns estavam a sofrer e ele, placidamente, ia trincando deliciosas torradas e bebendo o sumo de laranja. Estava a sentir uma enorme angústia pela forma desumana de adiar mas, pensava - quem ia saber se tomou a refeição? - ou se nem tinham pensado nisso.

Estava desconfortável e muito nervoso, quem sabe era alguém conhecido, até podia ser um amigo. Não tinha muitos mas, sempre havia alguns.

Oh, que desconforto, o sino voltou àquele repicar triste, os ingleses dizem knell ou será toll, não tinha a certeza mas julgou ouvir um destes termos à sua tia que viveu, toda a vida, em Londres.

Mas não importa tem que se despachar. Uma dúvida veio atormentar o já tão martirizado espirito, o que deve vestir, tem que ter cuidado, pode ser um desconhecido mas, também pode ser um conhecido, quem sabe um amigo.

Não pode ir com cores berrantes e logo hoje que queria estrear a t-shirt vermelha com a frase "I am here".
Não era uma frase muito forte mas quando a viu na montra ficou apaixonado e não se importou com os 35 euros e, pronto, comprou mesmo.

Talvez uma camisinha branca, mas só tinha de mangas compridas e estava um calor insuportável.

Resolveu, uma polo branca era o mais certo, passava despercebida.

Foi ao espelho dar os últimos retoques no cabelo, ensaiou um ar compungido, mas não se estava a sair muito bem, havia algo de artificial, tinha que ir treinando pelo caminho.

**

Ia começar, já um pouco afogueado, a subir a rua da Igreja quando descortinou o seu amigo Inácio que, de certeza, o ia informar sobre quem se tinha finado.

-Inácio quem morreu? Alguém que eu conheça?

Inácio deu uma enorme gargalhada antes de responder:

-Morrer, não morreu ninguém, mas ali na Igreja está a decorrer o funeral do professor Fausto.

-O que, o professor Fausto morreu?

-Não, pá, está a casar com a zarolha da presidente da junta!

-Mas os sinos estavam a tocar a finados?

-Não percebes nada de toques, tens que aprender. Estavam a chamar as pessoas para a missa.
Já vi que coisas da Igreja não é a tua especialidade!