terça-feira, 30 de abril de 2013

O Pai








Nunca lhe passou pela cabeça uma situação destas, era impossível pensar que agora aos 35 anos lhe queriam mudar a vida.

Viveu, quase sempre, numa espécie de miséria envergonhada, num misto do parece e do faz de conta.

As dificuldades eram imensas, as refeições eram um entremear de açordas e de sopas de feijão, durante o Inverno, e de gaspachos com um pedaço de conduto, durante o Verão.

Poupava em tudo, se é que não ter, se pode considerar poupar.
Banhos só de água fria e apenas um sabonete para desencardir as partes mais necessárias, a pasta de dentes tinha que servir, apenas, para tirar o sabor estranho da espuma do sabonete.

Na rua a aparência era importante, as pessoas avaliam a apresentação, era preciso parecer mesmo que isso fosse à custa de sacrifícios, imensos sacrifícios.

Tinha duas camisas, tão poidas, que mais pareciam uma frágil rede a cobrir o abaulado peito, já não as podia lavar, apenas as mergulhava suavemente na água e, sem esfregar, pendurava cuidadosamente na corda para que fossem escorrendo até secar.

A gravata, estampada, que a falecida madrinha, um ano, lhe ofereceu pelo Natal era uma boa protecção da fragilidade da camisa e, ao mesmo tempo, davam um certo ar de respeitabilidade.

Não que fosse necessário, pois sendo filho do saudoso mestre Malaquias já era o principio de consideração.

O pai foi um homem muito estimado, era o barbeiro e ao mesmo tempo regedor, tinha uma vida equilibrada até que a desgraça lhe caiu à porta e não aguentou. Um dia apareceu morto sentado numa cadeira de verga olhando o infinito. Dizem que foi de desgosto e, os mais afoitos, até, se atrevem a segredar que se deve ter envenenado, mas o doutor Gameiro passou a certidão de óbito com a ideia que foi um ataque cardíaco. Bom! Agora, que já lá está, não interessa conjecturar! A verdade é que o desgosto e a vergonha, de uma forma ou doutra, o levaram à morte tão novo, deixando a mulher e o rapaz numa penúria que faziam dó.

Foi numa invernosa tarde, de segunda-feira, que dois guardas apareceram, na modesta barbearia, e arrastaram para a vergonha o pobre regedor, acusado de algo que não fez e de que nem sequer sabia.

Dizem que foi o presidente da câmara que mandou, os guardas, deter o desgraçado, acusando-o de ter desviado as verbas que tinha mandado para arranjar a abobada da escola dos rapazes, que ameaçava cair a qualquer momento e quando a professora, Dona Laura, lembrou o presidente do perigo para as crianças este, na certeza de ter mandado as verbas há muito tempo, concluiu que o regedor se tinha apropriado daqueles contos de réis e, mandou os guardas deter o pobre e honesto Malaquias.

Quando o homem chegou ao posto, os próprios guardas o trataram com respeito, pois estavam convencidos que o barbeiro não era para o crime de que o acusavam e tinham razão, na desorganização da câmara, descobriram que afinal as verbas tinham ido para pagar umas melhorias na casa do senhor presidente.

Os guardas, caso inédito, pediram desculpa ao mestre Malaquias e mandaram o homem em paz. Ele foi, mas paz nunca mais a encontrou, a tristeza subiu no seu corpo como um arrepio de frio, o sorriso constante perdeu-o para sempre e os olhos pareciam lobrigar, apenas, um ponto distante. Sentou-se naquela cadeira, nunca mais segurou o filho nos joelhos naquelas brincadeiras, que os dois tanto gostavam, até que, numa tarde deu um suspiro tão fundo que todas as mágoas, desgostos e desilusões se fundiram com a luz da sua alma e abalaram para além do infinito. Morreu!

A mulher, dona Bebiana, deixou partir com o suspiro do marido, o gosto de viver e nunca mais disse coisa com coisa. Endoidou! Disseram os vizinhos.

O rapaz, na ingenuidade dos seus 11 anos, não compreendia o que se estava a passar, a dona Marcolina, na catequese dizia que havia um Deus justo e misericordioso, ajudava as crianças, protegia os mais fracos e recompensava os bons. O pai era dos melhores, a mãe era muito fraca e ele uma criança e Deus não fez nada disso, dona Marcolina não percebia dessas coisas ou andava a mentir às crianças.

Foi obrigado a crescer, deixou de ser menino para tratar da mãe que, nos momentos de lucidez, lhe afagava o rosto e, com um brilho bom nos olhos, dizia:

-Se não fosse o meu José que seria feito de mim! Depois sorria, olhava algo que mais ninguém via e ficava naquela letargia onde havia mergulhado.

A casa do povo, dentro das suas poucas possibilidades, deu à dona Bebiana uma pensão de 113 Euros, para amenizar a miséria que, de repente, caiu naquela casa.

Mas 113 Euros mal chegavam para os remédios da pobre viúva e José não tinha forças para trabalhos, mais, pesados por isso apenas ia ganhando umas moedas fazendo uns mandados.

Quando a mãe morreu as coisas que já estavam más ficaram muito piores. Estava no princípio do desespero, era difícil camuflar mais a desgraça que se tinha abatido sobre esta casa e, só a ajuda da vizinha dona Carlota conseguia mitigar um pouco a extrema miséria.

Foi no meio desse desespero que a notícia apareceu, de repente, como uma bomba que apenas se ouve quando já nos caiu em cima.
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Mas voltemos 36 anos no tempo. Bebiana era uma moçoila de encher o olho, trigueira, peito farto e quadris que baloiçavam ao ritmo do andar, Malaquias era um moço mal-amanhado, magro, fartos cabelos negros espetados mas de uma simpatia que contagiava. Bebiana, quando ele a foi procurar, aceitou-o como namorado, era diferente dos outros que a assediavam porque era apetitosa e ele, Malaquias, queria casar.

Passado pouco tempo a alegria encheu a modesta casa, Bebiana estava grávida. Malaquias espalhou a notícia enquanto ia pagando uma rodada de copos aos amigos.

Coincidências? No dia em que completavam um ano de casados, José abrindo os olhos e a plenos pulmões anunciou a chegada.

É lindo disseram todos, só dona Mariquinhas se atreveu num pormenor que saltava à vista mas todas faziam por não notar.
Bebiana tinha cabelos negros como a noite, Malaquias também e o rapaz era ruivo.

-É como a minha tia Carolina, irmã de minha mãe que tal como a minha bisavó também era assim, dizia Bebiana!

Todos acreditaram, quase todos, embora para alguns era muita coincidência que um dos grandes amigos de Bebiana, médico veterinário, dono da herdade dos rouxinóis, casado com a professora Aurora, ter os cabelos da cor de uma cenoura acabada de colher e, muito mais confusão quando o veterinário e a professora foram os padrinhos do José.

Houve alguns falatórios mas o assunto acabou por morrer, embora quando a professora abalou deixando abandonado o marido, acusando-o de ter, ou de ter tido, outras mulheres entre elas a comadre fosse causa para mais falatórios, mas de pouca dura pois o veterinário era homem de muita influência e tantos dependiam do trabalho na herdade dos rouxinóis.
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Mas voltando ao princípio, hoje véspera de José fazer 35 anos, o doutor Toscano, ilustre advogado da herdade e dos proprietários, mandou-o chamar ao seu escritório.

-Assunto urgente! Disse o rapaz que trazia o recado.

José ficou em pânico, chamado ao doutor Toscano, ele que nunca fez mal a uma mosca. Lembrou logo o pai preso, acusado e arrastada como Cristo, com umas algemas, ao posto da guarda.

Apetecia-lhe chorar, pensava que possivelmente o iam prender por ser pobre, mas não tinha culpa pois já nasceu assim. Não sabia o que vestir, a roupa para andar na vila remediava mas, para tão ilustre visita, se calhar estava imprópria.

Mas era a que tinha! Esticou com o ferro o colarinho da camisa e alisou, um pouco, a gravata, escovou o melhor que soube o blusão.
Mirou-se ao velho espelho, já era da avó, não lhe pareceu má a figura, tinha uns olhos bonitos e o cabelo em reflexos ruivos, dispostos em argolinhas e cuidadosamente penteado.
Foi perguntar à vizinha se estava em condições de aparecer no escritório do advogado.

-Tas lindo José! Exclamou dona Carlota com um riso nos olhos.

Foi atendido por uma menina, toda jeitosa, ele já a tinha visto passar na rua, mas hoje parecia ainda mais vistosa.

A medo balbuciou:

-Boa tarde, venho para......bom....

-Eu sei, pode entrar o doutor atende já, disse a moça com um sorriso, que deixou as pernas do José a tremer.

A sala era enorme, cabia lá a sua casa com quintal e tudo. Tinha uma secretaria maior que a mesa de bilhar da sociedade e uns sofás, em pele castanha, que o atemorizavam. Tinha receio de se afundar.

O doutor Toscano era imponente, alto e com uma barriga maior que a da Rosa Periquita que estava prestes a ter o quinto filho. Era grande, estendeu-lhe uma mão enorme, deu um forte passou bem antes de se sentar atrás daquela enorme mesa.

Pegou numa pasta, de capa preta, folheou uns papéis. Pousou a pasta e firmou os dois cotovelos na secretária, abriu um sorriso enorme, parecia estar a ganhar coragem, mas acabou por começar:

-Sabe que eu estou a falar com um dos homens mais ricos desta vila?

José pensou que o homem tinha endoidado, como dizia dona Carlota, pois, bem, olhou para trás e não estava ninguém.

Lá se atreveu a responder:

-Sabe, senhor doutor, que não vim aqui para o senhor mangar comigo? Sou pobre, mas mereço ser respeitado como todos os outros.

-Calma amigo José! Calma! Exclamou o causídico. Não me entendeu bem! Estou a falar de si e para si! Depois de assinar uns documentos que lhe vou dar, vai tomar posse de todos os bens que era do nosso saudoso doutor Pedroso!

-Mas hoje tirou o dia para brincar comigo? Pergunto José.

-Tem razão! Disse o advogado. Vou explicar tudo. O doutor Pedroso era o seu padrinho e também o seu verdadeiro pai. Tenho toda a documentação que ele tratou, ainda, em vida para reconhecer a paternidade e deixar tudo ao filho, bem arrependido de não ter tido coragem de o fazer mais cedo. Só agora o fazia. Que Deus lhe tenha a alma em descanso!

José mordeu a língua para ter a certeza de estar acordado, a vida estava a dar uma volta, o Chico da Nora deu-lhe um emprego de ajudante de marceneiro, a ganhar 400 euros, ia começar no fim do mês e agora isto. Emprego, herdeiro e rico.

Pensou na vida e sentiu umas lágrimas no rosto, o advogado pensou em alegria, mas não, eram de raiva. Numa vida de 35 anos teve 11, apenas 11, de felicidade e 24 de infortúnio e miséria.

Em todos estes anos, teve falta de tudo e, o padrinho, em 35 Páscoas, nem uma simples amêndoa lhe ofereceu e de repente, quando sentiu que o tempo lhe faltava e que tudo o que tinha não o podia levar, aparece um testamento e uma paternidade.

Paternidade! Nem pensar, sempre foi filho do Malaquias Silva e não era agora que deixaria de ser.
Quem sabe até se a bisavó não era ruiva! A mãe jurava que sim, o pai acreditou e ele também acreditava.

O advogado parecia impaciente, José estava a sentir-se importante com essa impaciência.
-Sabe doutor! Exclamou por fim, sempre fui filho de um homem bom e vou continuar a ser. O nosso pai é o que nos cria e dá amor.

Não quero essa tal paternidade que nada me diz!

O advogado estava de olhos arregalados, transpirava e tentava manter a aparência. Por fim, com um sorriso postiço, continuou:

-Mas, meu caro José, a herança foi deixado em exclusividade ao filho, se não for para o filho fica para o estado, tem que assinar o documento da paternidade para poder tomar conta da herança!

José levantou-se, pela primeira vez, parecia seguro e determinado:

-Caro doutor, sempre fui pobre não vou estranhar a falta da herança, pode entrega-la aos porcos porque eu, FUI E VOU CONTINUAR A SER, filho do Malaquias da Silva, um homem bom.

Levantou-se e, sem se despedir, veio respirar o ar puro da rua.




quinta-feira, 11 de abril de 2013

Adeus Alex!








E foi assim, quase de repente, a tarde entristeceu, aquele olhar que nos hipnotizava o pensamento, deixou o brilho na tristeza de uma partida esperada, num abalar na procura doutro espaço, das estepes geladas, dos campos brancos onde a alma se liberta e o tempo pára.

Vamos sentir em cada canto, em cada pensamento, uma presença como se a verdade fosse apenas um sonho mau.

Sabes?
Agora, quando o teu olhar me fitava nesse vazio, o teu corpo se arrastava na nobreza da tua vontade e sentia, no teu pensamento, a impotência do querer e não conseguir, pensei muitas vezes que o fim devia chegar para puderes partir com a postura que o teu passado merecia. Não queria e mesmo agora penso que não é verdade, mas desejava que o sofrimento não fizesse parte do fim anunciado.

Hoje, na tristeza de uma tarde esquecida, o fim chegou.

Da vida todos sabemos um pouco, da morte ninguém conhece nada.

Quem sabe, Alex, quem sabe um dia não nos encontraremos por !


10 de Abril 2013

10 de Abril 2013

terça-feira, 2 de abril de 2013

Um milagre?








Vou fazer um pequeno interregno, volto em Maio. Vou sentir a vossa falta!

Era estranho, esquelético, com uns tiques que incomodavam.
Levantava o olho direito franzindo o canto da boca, fungava como um cheirador de rapé, e olhava as pessoas de través.

Diziam, os mais antigos, que foi um rapaz normal vítima de uma assombração, não obedeceu as regras do além e foi castigado por forças ocultas, mas isso era o que se dizia, um pouco, a medo. As pessoas tinham receio de falar em coisas que iam para além da sua própria imaginação, factos em que as forças do além se sobrepunham ao conhecimento das pessoas.
 Dona Inácia, na sabedoria dos seus 90 anos, contava que tudo tinha a ver com umas marcações de terras, parece que avô do Libório tinha desviado uns marcos e, de forma indevida, tomou para si terras que não lhe pertenciam, quando chegou a hora de se apresentar ao criador foi recambiado para desfazer o mal que tinha feito.

Uma tarde, continua dona Inácia, estava o pobre Libório agarrado à rabiça do arado, quando avô, qual alma penada, se lhe apresentou aparecido do nada, com voz cavernosa lhe ordenou a troca dos marcos.
 Obedeceu no medo que o tolhia e fez tudo o que lhe mandou sentindo um tremor que o inibia. Acabada a tarefa o avô, naquela voz do além, ordenou que enquanto ia desaparecendo não devia olhar para trás para nunca se arrepender. Mas o terror era tanto que o pobre rapaz apenas olhou de soslaio, o que enxergou ninguém sabe, apenas ficou como agora se vê, alheio, como se estivesse sem estar.

Anda pela aldeia por entre as gentes como se não fizesse parte delas, vagueia pelas ruas nos seus tiques, passando indiferente à caçoada dos rapazes, olha algo que, possivelmente, apenas ele vê.
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Agosto quente, ainda agora se tinha levantado a manhã e já as pessoas andam num desconforto de roupas coladas ao corpo, com uma vontade enorme de se encostarem no agradável trabalho de não fazer nada.

Mas é apenas vontade, pois o dever chama e há muito que labutar.
Todos têm que dar a sua ajuda, no sábado começam as festas em honra da padroeira e, os filhos da terra, começam a alegrar as ruas, com as falsas pronúncias de um francês com sotaque transmontano.

Chegam em carros que regalam a vista e dão aquele ar de prosperidade, que por vezes, não passa de um faz de conta, num carro alugado para esconder as dificuldades que sentem no dia-a-dia.

Nas tabernas as malgas do verde, matam a secura que o calor deixa na garganta e, com alegre verborreia, entoam de forma ensurdecedora.

No largo da Igreja, o som dos martelos ultimavam o palanque onde iriam desfilar todas as atracções, guardadas, para dar brilho às festividades.

Sábado, logo pela manhã, o troar dos foguetes anunciavam aos quatro cantos da aldeia, o início de uma semana de folguedo, musica, bailes, cantares, largada de vacas e, a culminar, a procissão que iria dar o toque religioso para os pagadores das promessas pelas graças recebidas.

Á tarde o largo regurgitava, não havia espaço para mais ninguém, Libório parecia alheio, mas tinha garantido um lugar na fila da frente. O olhar distante parecia procurar algo que estava para além da imaginação, não soltava uma palavra, não mostrava qualquer afecto, estava ali como se não estivesse.

O mestre da banda, com a batuta, deu umas pancadas na estante da pauta, os músicos alinharam os instrumentos de forma, quase, cerimoniosa. O mestre do alto do seu poiso, olhou os seus músicos e sentiu o nervosismo dos mais novos, com um leve sorriso deixou a mensagem, era hora de começar.

Primeiro os violinos naquele melodioso lamento, depois os metais encheram a praça de magia, os acordes tomaram conta dos sentidos e a emoção encheu os ares, apoderou-se de todos e conseguiu, com o fascínio da música, passar despercebida as limitações destes amadores.

Quando a banda silencio algumas lágrimas bailavam nalguns olhos mas o milagre deu-se depois.

Libório que há cinco longos anos não botava uma palavra, que passava os dias num alheamento total, num quase autismo, saltou de repente, bateu as palmas, olhou o mestre e gritou:

-Mais uma vez, toquem mais uma vez!

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Hoje, os mais cépticos, dizem que foi a magia da música.
Os outros, dizem que foi um milagre da santa padroeira