Maria
do Rosário estava apaixonada, nunca se sentiu assim, uma doçura desinquieta, um
formigueiro na barriga, um acelerar no coração.
Já muitas vezes desejou e se sentiu atraída por rapazes, ia com eles no
sentido e adormecia com uma humidade, lascívia e confortante, mas agora era
diferente, sonhava com um de mãos dadas, pensava em passeios à beira mar,
olhos nos olhos, suspiros doces, beijos gordos e molhados, agora era um amor
diferente, preenchia o corpo, alimentava a alma e dava sentido à vida.
Agora, sabia ela, era amor de verdade.
Conheceu-o, por acaso, é daquelas coisas que acontecem, deve ser o destino. Foi
na casa da Margarida, num fim de tarde que prometia mas, de repente, começou a
chover intensamente. O boletim meteorológico já a tinha avisado mas, como
sempre, não ligou.
Ele estava lá, era primo do marido da amiga.
Prendeu-lhe os olhos, percorreu-lhe o corpo, sentiu-lhe o cheiro, tomou conta
do seu querer. Queria falar mas ficou sem graça, aparvalhada.
-Que se passa rapariga, perguntou Margarida. Nunca te vi, assim, tão calada!
-Desculpa amiga, sussurrou Maria do Rosário, mas há momentos de magia e até as
mais tagarelas, como eu, se deixam prender.
Depois arrependeu-se de ter falado, corou, gaguejou e foi até à janela fingindo
ir espreitar a chuva.
Mário, assim se chamava o Apolo, percebeu o encabulamento da rapariga, já era
normal causar esse enlevo nas mulheres.
E gostava!
Mas esta parecia diferente, não foi só físico, sentiu magia, uma atracção feita
do desejo da presença, de gosto pelo olhar e do prazer pelo estar.
Era linda,
assim lhe pareceu, olhos que brilhavam, intensamente, numa cor indefinida,
rosto emoldurado por fartos caracóis negros, lábios maduros e um corpo
com tudo no sitio certo e nas quantidades devidas. Deus, quando a concebeu, não
estava de férias, redundante, mas graças a Deus!
A tarde ia caindo e a chuva parecia querer continuar, eles bem avisaram! Mário aproveitou para perguntar:
-Maria do Rosário, julgo ser esse o teu nome, posso deixar-te em qualquer lado?
Está o chover e eu tenho o carro mesmo defronte da porta!
A rapariga tremeu, sentia algo a trepar pelas pernas, jura que um frio lhe
percorreu a espinha e se foi diluir, num doce calor, num sítio que não era
capaz de dizer.
Quis falar
- muito obrigado não vale a pena! - mas o desejo deu-lhe uma martelada na
cabeça e apenas lhe saiu:
-Muito obrigado mas vou aceitar, nem guarda-chuva tenho!
*****
Começou assim, como a nascente de um regato, timidamente, depois tonou-se firme,
intenso e apaixonado.
Correram todos os caminhos do amor, ternos, doces, relaxantes, brutos e loucos.
Foram brisas e tempestades, doidos, irracionais e meigos, tão meigos como as
sedas deslizantes dos lençóis.
***
Um dia, desgraçadamente, há sempre um dia, ele não apareceu.
-É a minha ânsia, dizia Maria do Rosário, afinal ainda é cedo!
Já passou uma hora, nunca se atrasou cinco minutos.
-Estará farto de mim! Imaginou com pavor. Não pode ser, ainda ontem fizemos o amor mais
doce e intenso, mais firme e mais selvagem, tal como ele, como nós, gostamos.
-Foi o trânsito, deve estar numa zona sem rede, o telemóvel não dá sinal.
-Será que me usou e agora desaparece, assim, subtil como apareceu!
-Não
lhe perdoaria nunca, era capaz de o matar, não seria de mais ninguém!
Telefonou para todo o seu mundo, e para o mundo comum.
Ninguém sabia dele.
-Alguma
das suas parvoíces! Disse a tia Aninhas. Tal como o ano passado, quando se meteu
no avião e foi para umas maluquices em África!
-Não, não pode ser, gritou Maria do Rosário, ele não me fazia isso!
********
Nem
sempre as más notícias são as primeiras a chegar, foi no dia seguinte, às 11
horas, que o telemóvel tocou, Era a Emília:
-Rosário, vem já a minha casa! E desligou.
Sentiu uma agonia que lhe deixou um zoar na cabeça, queria pensar e nada, as ideias troavam num desalinho total. Que terá acontecido?
Não gostou do que encontrou, caras pesadas, olhos vermelhos de choro, um cheio
acre a desgraça.
-Mas o que se passa? Perguntou Maria do Rosário. Que foi? Contem-me por
favor?
-Tem calma, pediu Emília, vamos ter fé, vamos rezar. O Mário teve um acidente,
com a mota, está no hospital e muito mal mas ele é forte. Vamos pedir a Deus!
-Se ele morrer eu morro com ele, juro, chorou Rosário.
Deus não os ouviu, ou não quis ouvir, ou então, fingiu que não estava atento e
o pobre Mário não resistiu.
Morreu
nesse dia as 21 horas e sete minutos.
******
Maria do Rosário carregou um luto de três dias, pensou com tristeza nos bons momentos, nos passeios românticos à beira rio,
recordou com saudades as serenatas que ele improvisava, não cantava bem mas a
voz rouca tinha uma certa magia, reviveu aqueles momentos, de pura
loucura, nos imagináveis lugares onde aconteciam , sem tabus, sem medos, quase
irracionais.
Viu, como num filme, o cadáver sereno naquela urna cheia de dourados, o mesmo
sorriso que a morte não soube apagar, depois aquela mole imensa a caminho dum
cemitério onde, o forno grande, transformou em cinzas o que restou de uma vida.
Foi o regresso a casa, agora mais vazia, diferente, sem as gargalhadas roucas.
Silencio, apenas silencio que dói, de forma estranha, dentro de nós.
******
Encontraram o corpo passados dois dias, vestida de noiva, com um esgar de
sofrimento no rosto.
As
pessoas dizem que foi do desgosto, os médicos sabem que foi do veneno.
Esta bela música foi oferta de uma
grande amiga , no sexto aniversário do meu Blogue.