domingo, 22 de dezembro de 2013

Um conto de Natal A guitarra do João

                  



  


Para o meu sobrinho Martim
 (Natal 2013)


Joãozinho tinha seis anos e era muito pobrezinho, pois os pais foram um dia, para o Brasil, e nunca mais voltaram.


Foi a avó Emília que tomou conta do menino. A avó era uma simpática velhinha, muito doce mas muito pobre. Vivia numa casa, pequenina, num pátio de gente boa que tanto a ajudavam.

Hoje, o Joãozinho está muito triste, tão triste que até o Sol parece querer por um raio de luz, nos olhos do menino, mas ele nem dá por isso.

Tem a cabeça escondida entre os braços, para que os outros meninos não possam ver as lágrimas que lhe escorrem pela cara.

Luís, que é o seu melhor amigo, achou estranha a posição do colega e foi-se aproximando para lhe perguntar:

-Dói-te a cabeça? Queres que eu chame a nossa professora para te ajudar?

-Não é preciso, respondeu o João, já passa!

Luís bem viu que ele estava a chorar, as lagrimas ainda se viam na cara.
Queria ajudar mas estava um pouco sem jeito, ainda era muito novo, e só a mãe é que sabia como isso se fazia. Mas tentou:

-Sabes João, no outro dia também chorei com dor neste ouvido, mas a minha mãe deitou umas gotas, de um remédio, e passado um bocadinho já não doía!


-A mamã mãe disse que quem chora não é mariquinhas e, disse mais umas coisas, que não percebi bem, mas aprendi que os homens grandes também choram.

-Não tenhas vergonha! Eu não conto aos outros meninos!

-Queres que eu peça à minha mãe o remédio para tratar o teu ouvido?

-Mas o meu ouvido está bom, respondeu o Joãozinho! Vou-te contar um segredo mas não digas nada, eu não queria chorar, mas não consegui, e as lágrimas apareceram sozinhas.

Luís estava sem perceber nada, ainda tinha só seis anos e, às vezes, não percebia bem as coisas.

-Mas se não te doí nada, porque estás então com lágrimas na cara?
Agora Joãozinho parecia querer sorrir, mas não lhe correu muito bem, o desgosto devia ser grande e o sorriso não apareceu.

-Vou-te contar tudo, mas juras que não dizes a ninguém? Suplicou o João.

-Eu pedi, ao Pai Natal, uma guitarra mas a minha avó disse que ele não tinha dinheiro, para guitarras, e só me podia trazer um chocolate.

-Eu queria tanto uma guitarra igual à que está na montra do senhor Elias!

-Eu porto-me bem, todo o ano, e nunca tenho prenda no sapatinho!

-Quando peço à minha avó um chocolate, diz que me faz mal aos dentes e não compra! Agora o Pai Natal vai trazer um e já não faz mal!

Luís ficou pensativo, também não percebia porque não davam prendas ao amigo, ele era tão bonzinho!

Queria dizer qualquer coisa mas, não sabia bem como fazer, havia palavras de crescidos que ainda não compreendia.
Pegou no braço do amigo e convidou:

-Anda, vamos brincar, se calhar a tua avó está muito velhinha e não percebe nada e o Pai Natal tem uma guitarra para ti.

No resto do dia, Luís, não largou o amigo para ele se esquecer da guitarra.

Quando fosse grande ia comprar uma e oferecia ao amigo, ou então se o Pai Natal lhe der duas, vai pedir à mãe que o deixe oferecer uma ao João. A mãe deve deixar!

No fim das aulas deram um abraço de amizade e, cada um foi para sua casa.
                             
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Agora só voltavam na segunda-feira.

No sábado, o Luís, foi com o pai à padaria e quando passaram à montra do senhor Elias parou para ver a guitarra do João, era bonita, brilhava e tinha enfeites à volta do buraco. Luís não se conteve e pediu ao pai:

-Pai podia perguntar quanto custa aquela guitarra?

-Está ali o preço, naquela etiqueta, respondeu o pai!

-Mas quanto é, insistiu o Luís.

-Cinquenta euros, disse o pai. Mas para que queres saber?

-Não é nada, só para saber mesmo, respondeu.

Quando chegou a casa Luís perguntou à mãe:

-Oh mãe quanto é que eu tenho no meu mealheiro?
A mãe deu uma gargalhada e foi contar as moedas.


-Olha, disse ela, se não fosses gastador podias ter mais, assim só tens oito euros.

Na segunda-feira, Joãozinho, não foi à escola e a professora disse que a avó telefonou a dizer que ele estava doente, com febre.

Luís, quando encontrou, a professora, no recreio, aproximou-se um pouco acanhado. Ela percebeu e perguntou-lhe:

-Então Luís! O que me queres dizer?

Ficou um bocadinho envergonhado mas atreveu-se:

-Eu tenho, oito euros no mealheiro, para cinquenta quanto falta?

-Olha Luís, lá mais para diante já vão aprender essas contas, mas para teres os cinquenta faltam quarenta e dois.
Luís ficou a magicar, quarenta e dois euros são muitas moedas.

-Eu sei, continuou, porque é que o João Cosme está doente! Se tivesse os cinquenta euros conseguia que ele ficasse bom!

A professora, a muito custo, conseguiu evitar uma gargalhada.

-Senta-te aqui ao meu lado e explica bem porque eu não percebi nada!

-É assim, o João pediu ao Pai Natal a guitarra da loja do senhor Elias e, o 
Pai Natal, disse que ele só merecia uma tablete de chocolate e o João ficou triste e adoeceu.

A professora, dona Irene, ficou totalmente baralhada.

-Então Luís o João falou com o pai natal? Como é que ele fez isso?

-Ele só falou com a avó e ela é que falou com o Pai Natal e ele disse à avó que não tinha dinheiro e então o João chorou aqui no banco do recreio e eu vi.

-Vamos ver se entendi tudo! O João pediu essa guitarra mas, como não a pode receber, tu queres comprar mas só tens oito euros?

-Muito bonito o teu gesto, nós vamos arranjar uma maneira.


-Mas, pediu ele, o João não pode saber que não foi o pai Natal.
-Não vai saber querido! Disse a professora.

Luís estava radiante a professora Irene disse que nós íamos resolver.
 
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À tarde, a professora, disse assim a todos os meninos:

-Tomem atenção, o João Cosme está doente e aqui o Luís, descobriu que temos que o ajudar. Como sabem, ele vive só com a avó que é muito pobrezinha, e não tem dinheiro para o Pai Natal comprar a prenda que o João tanto quer.

-Eu estive a pensar que podíamos, entre todos, ajudar. Que dizem?
-Siiiiiimmm, responderam os meninos.

A professora Irene, sorriu, estava feliz:

-Eu sabia que os meus alunos não iam esquecer um colega que agora precisa!

-Vamos fazer assim, se cada um der 2 euros ficamos com 36 euros, são 18 meninos, eu ponho o resto e compramos o brinquedo, falem com os vossos pais e se eles estiverem de acordo vamos em frente.

Luís levantou-se, levantou a mão e perguntou:

-Mas assim ele fica a saber que não foi o Pai Natal!
A professora sossegou:

-Não fica, é um segredo nosso! Eu vou a casa do vosso colega, na véspera de Natal, e digo que o Pai Natal se enganou na morada e deixou na escola.

-Booaa! Gritaram todos.


Luís não se conteve e perguntou:

-E, os meninos, também vão com a professora à casa do João?

A professora Irene sorriu, feliz, e respondeu:

-Se os vossos pais deixarem porque não?!
Os rapazes responderam em coro:

-Deixam pois! Os nossos pais até vão com a gente.

Quando bateram à porta, foi o João que abriu. Ficou, quase assustado, não esperava.

A avó gritou, lá de dentro:

-Quem é João?

-É a minha professora e os meus amigos.

-Então manda entrar! Que educação é a tua que deixas as pessoas à porta!

-Não vale a pena, disse a professora, vimos só entregar, ao João, um presente que o Pai Natal deixou na escola.

-Toma João, o Pai Natal não encontrou a tua morada.

 O João não sabia o que dizer, abraçou os amigos e apenas lhe saiu.

-A minha guitarra!

Voltaram todos, às suas casas, felizes porque tinham dado uma alegria a um amigo.





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Cresceram, hoje já são homens, mas no Natal todos se recordam da guitarra do João.




sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

BOM NATAL








                 Para todos o meu desejo de um feliz natal








sábado, 7 de dezembro de 2013

Maurício






Estavam muitos à sua volta mas, ele estava tão distante que, nem se apercebeu daqueles murmúrios, que iam dispersando, como se fosse uma oração numa sintonia perfeita.
A cova estava ali, como uma boca ávida, para devorar os despojos de uma vida.
Maurício olhava mas, o pensamento toldava-lhe a visão, apenas aquele ruído de vozes,  sussurrantes, que o deixavam numa confusão entre o real e o sonho. Fechava os olhos, na esperança de estar num pesadelo, mas não, era tudo tão real, a solenidade, o compasso, os sussurros e aquela boca à espera de engolir a urna, que não tardava, iria desaparecer sobre os sons cavos, da terra, que a iriam cobrir.

Sentiu o pasmo, as pernas a quebrar numa dormência, o rodopiou na cabeça que não conseguiu controlar. Quando bateu com a cara no chão, duro, já nada sentiu, tinha perdido a noção do espaço, do tempo e da vida.

Acordou, disseram-lhe, vinte e cinco dias depois, num quarto que não era seu, num desconforto de um cérebro vazio. Olhava sem saber, porque estava naquele sítio que não conhecia, quem era, donde tinha vindo.

Entrou uma mulher, de branco, e um homem de bata azul que perguntaram:

-Como se sente senhor Maurício?

Quem seria esse Maurício? Se calhar até conhecia mas não se lembrava.

A mulher de branco devia ser enfermeira, apalpou-lhe a testa, olhou para o nível de um saco pendurado a pingar, lentamente, para um tubo ligado ao seu braço.

Laivos de memória, pareciam, querer aflorar mas eram tão ténues que, logo se diluíam na confusão, que lhe tomava conta dos pensamentos.

O sujeito que deveria ser o médico falou também:

-Amanhã vai ter alta, vai voltar à sua vida lá fora!

Maurício olhou os tubos ligados ao braço, o médico percebeu a interrogação:

-A enfermeira Natália vai tirar tudo isso, já não precisa!

-Mas, perguntou, onde é a minha casa? Não me lembro onde moro!

O médico abanou a cabeça, olhou como a procurar uma resposta no espaço, maneou os ombros e saiu.

A enfermeira Natália sossegou-o:

-Não se preocupe alguém o vem buscar!

******

Vieram, eram muitos mas para ele era a primeira que os via, um casal chamou-o de filho, a rapariga do casaco vermelho e o rapaz alto, com uma barba alourado, chamaram-lhe mano.

Havia outro casal, tristes nos modos e no vestir, pareciam da família, mas não o chamaram de nada, possivelmente eram tios ou primos.

Todos simpáticos, como se o conhecessem há muito e falavam em coisas como se ele soubesse a que se referiam.

Aquela que lhe chamou filho, não se calou um segundo, tinha feito o seu prato favorito, a propósito não tinha nenhum, tinha à sua espera a musse como ele gostava, não sabia como podiam saber se não o conheciam e ele, achava que nunca tinha comido essa coisa.

O casal triste suspirava, a mulher enxugou umas lágrimas, e disse com voz triste, ele era muito amigo da nossa filha, vê o estado a que chegou, não conhece ninguém, não diz coisa com coisa, está mesmo parvinho de todo. Pobre Maurício!

A que lhe chamou mano, mascava pastilha elástica e o da barba mandava mensagens, dum telemóvel, com uma sofreguidão como se o mundo estivesse para acabar.

Parecia um estranho no meio de pessoas que nunca vira, diziam que eram família mas a família a gente não esquece e não se recordava de nenhum deles. Julgou que estava acordado, não era um sonho, beliscou a perna e doeu, era real.

Afinal o que se passava, seria que era extraterrestre e não sabia. Não podia ser, esta gente parecia conhece-lo, até sabiam o nome, porque ele tinha uma leve ideia de ser Maurício.

A rapariga que mascava a pastilha, pegou-lhe no braço e encostou-se como se fossem velhos amigos, com um sorriso feliz disse:

-Vens com a mana e os pais, o mano vai levar os teus sogros!

Sogros, pensou, se tenho sogros devo  ser casado!
Ainda não tinha falado mas, não se conteve:

-Mas sogros como?

Olhou os seus denominados pais, antes de responder:

-São os pais da Mila, logo são teus sogros, mas não penses nisso! Um dia vais recuperar a memória e ficarás a par de tudo.

Não estava confortável com esta situação, tinha acordado, talvez, há dois dias, de um sono que lhe deixou um buraco negro no cérebro, limpou-lhe as memórias e criou um vazio angustiante. Não sabia quem era, donde tinha vindo e agora estavam-lhe a impingir uma família, talvez fossem simpáticos, mas era pouco, ele não os tinha escolhido.
 Estava como uma criança para adopção, a família escolhe a criança mas, a criança, não tem a possibilidade de escolher a família.
Estava farto duma irmã que mascava pastilhas, dum irmão de barba rala agarrado ao telemóvel, duns pais tão apagados e ausentes que pareciam dois estranhos, no assento traseiro.
Não podia continuar, estava a tempo de por fim  a esta palhaçada.

Tomei coragem e gritou:

-Parem esta merda, estou farto disto, quero sair!

A mana estancou o carro, mas de forma tão desastrosa que o mesmo rodopiou, bateu com força no separador, saltou e só parou no fundo da ribanceira.

Maurício foi a única vitima, o lugar ao lado do condutor é, quase sempre, o pior.


Agora, se lhe fosse permitido, ficava a saber que a boca ávida, daquela cova, esperava por ele.