quarta-feira, 26 de março de 2014

Carta para a Lili








Querida Lili!

Eu sei que ficas irritada sempre que te trato por Lili, mas foi assim que eu te conheci.


Eras uma menina  borbulhenta, escanzelada, mas tinhas um sorriso lindo.

Estás crescida, tens a pele como pétalas de rosa e o corpo com tudo o que os olhos gostam de ver mas, é verdade, falta aquele sorriso que iluminava os nossos olhos.

Não sei se te lembras, já passou muito tempo, as horas não deixam parar o tempo, os dias sucedem-se e as lembranças esfumam-se na nossa memória, nem todas, eu mantenho a saudade das tardes de verão, quando as nossas brincadeiras nos levavam às margens da ribeira, e nos perdíamos nas nossas aventuras.

Gostava de olhar o teu rosto e o teu sorrido lindo, e fácil, que não me deixavam ver, as desagradáveis, borbulhas que te cobriam a cútis.

Agora não tens borbulhas mas o sorriso esfumou-se, o rosto é lindo mas perdeu a magia, e aquela graça que nos seduzia.

Eras uma rapariga-rapaz, como dizia a tia Odete, subias uma árvore mais "lista"que qualquer rapaz, as tuas canelas escanzeladas tinham as marcas das quedas, dos escaldões dos troncos dos sobreiros e, também, os arranhões das silvas onde as amoras nos tentavam o olhar.

Hoje as tuas pernas são torneadas, lisas e suaves como veludo, mas não tem o mesmo encanto, falta aquele sorriso que nos fascinava.

Não eras a mais bonita mas ninguém notava, tinhas um encanto que nos levava enredados nas brincadeiras que inventavas.

Um dia cresceste, as borbulhas, por encanto, deixaram o teu rosto, o corpo tomou forma, o peito cresceu, as curvas foram-se acentuando, as pernas tornearam-se. O sorriso, esse, ainda fazia parte do teu rosto!

Um dia a aldeia acordou pequena para ti, a ambição encheu uma pequena mala e abalastes para a cidade imensa.

Hoje vives numa casa grande, não queres mais ser Lili, mas para mim nunca deixarás de o ser!

O teu sorriso lindo ficou, aqui na aldeia, para os teus amigos que esquecestes, naquela dia em que o espaço ficou pequeno para ti.

Agora estás na cidade, muitos homens enxameiam o teu espaço, adulam-te mas não tem o teu sorriso, esse ficou, aqui, na aldeia onde estão os teus amigos.

Esses que te apaparicam, de olhares gulosos, não são os teus amigos, esses são os teus clientes!






sexta-feira, 14 de março de 2014

Mistério







Foi um cruzar de olhares daqueles que apenas acontecem uma vez na vida, intenso, provocador e com uma enorme promessa de desejos.
Ele parou e ficou na expectativa, ela seguiu, olhando para trás, com um sorriso de desafio.

O bambolear do traseiro, os cabelos soltos ao vento, a gaiatice do sorriso e aquele olhar de desafio deixou Ernesto confuso, ficou indeciso.

A mente, em segundos, trabalhou intensamente.

A cabeça contrariava a vontade, mas o desejo era mais forte e foi  a vontade que venceu.

Foi aumentando os passos, ela já tinha virado a esquina da rua, um pouco envergonhado deu uma corrida e dobrou, também a esquina, mas a rapariga parecia ter-se evaporado.

Era estranho, só havia uma pequena loja de venda de artigos religiosos, depois um muro alto com um portão ao fundo. Não tinha tempo de ter chegado ao portão, na loja só um senhor, já de idade, olhava para uns papéis.
Perguntou:

-Desculpe, senhor, não entrou aqui, agora, uma amiga minha?

Olhou-o, quase, com indiferença mas foi dizendo:

-Há dias, que aqui, eu sou o único que entra. Isto está mau. Será que foi ao cemitério? Mas não as estas horas, olhou para o relógio, já está fechado!

-Qual cemitério? Não conheço nenhum aqui.

Deu uma gargalha rouca antes de responder:

-É aqui o meu vizinho do lado, sem ele o meu negócio já tinha acabado.

Saiu disparado, o velhote tinha razão, ao lado era o cemitério, foi até ao portão, estava fechado. Espreitou por uma fresta e lá estavam as campas alinhadas. Voltou as costas e jura que ouviu uma gargalhada, que lhe percorreu o corpo como um arrepio.

Depois falou para ele mesmo:

-Não pode ser, não devo ter ouvido nada, foi aquela sensação de insegurança que faz ouvir coisas.  Gargalhada? Sou mesmo parvo!

A noite não foi fácil, no sonho a rapariga ia à frente, olhava-o com um sorriso cheio de promessas, ele acelerava o passo, mais e mais, mas a distancia não se alterava, depois desaparecia num novelo de fumo e apenas ficava a gargalhada, a mesma gargalhada.

Acordou a tremer, transpirado e com a sensação de não estar só. Acendeu a luz e olhou medroso e envergonhado, o quarto estava normal.
Sou mesmo parvo, pensou, era apenas um sonho.

Apagou a luz mas ficou com a convicção que não era assim tão tonto, um "frufru" percorreu o escuro e um cheiro adocicado a jasmim invadiu o espaço.

Acendeu a luz e o pouco que dormiu foi com toda a claridade.
Levantou-se e quase não se reconheceu ao espelho, macilento e com umas olheiras de zumbi, mas pouco importava estava decidido, hoje, agora mesmo, ia ao cemitério. Não ia resolver, se calhar nada, mas deixava de cismar em coisas que lhe tiravam o sono e lhe abalavam a tranquilidade.

A loja estava no mesmo sítio mas o velhote não. Entrou, mais por curiosidade e perguntou ao moço que estava ao balcão:

-Será possível falar com o outro senhor que costuma estar aqui?

O rapaz pareceu surpreendido, esboçou um sorriso antes de responder:

-Só posso ser eu, estou aqui há dois anos, desde que o meu avô faleceu!

Estava a perder a paciência, quase gritou:

-Mas como? Ainda ontem estive aqui e falei com um senhor de idade, magro e um pouco careca. Tinha uma bata  azul escura, uns óculos de vidros cortados  e olhou-me por cima das lentes.

-Se tirou o dia para gozar comigo perdeu o seu tempo, respondeu o rapaz. Esse, de que o senhor fala, era o meu avô, morreu em Julho de 2011. Pode ir espreitar, aqui mesmo ao lado a campa 387, tem até uma foto. Não se importa deixa-me trabalhar porque não tenho tempo para brincadeiras! Nem paciência!

Saiu, irritado, a caminho do cemitério, ia ver todas as campas, uma a uma, principalmente as que tinham fotos.

Pela primeira vez na vida, entrou com medo, medo estranho que se impregnava nos ossos e parecia tolher o raciocínio.
Havia muito poucas pessoas, duas ou três mulheres compondo as jarras das flores, em gestos mecânicos, movimentos muito suaves como se tivessem receio de perturbar os descansos.

A campa 387, ficava mesmo ao fundo da álea, estava bem tratada, pedra mármore negra, uma imagem de um anjo, uma placa com duas datas e, ao centro, uma foto esmaltada. Não havia duvida era o velhote que viu, jurava que viu, na loja da esquina.

Seguiu todas as campas, principalmente com fotos, tinha a esperança, já agora, de encontrar a da menina do olhar provocador. Andou nesta pesquisa tempo de mais, pois quando olhou já tinham fechado o cemitério, não deu por nada.

Começou a ficar em pânico, o vento que sussurrava nas copas dos ciprestes pareciam gargalhadas, em todos os lados adivinhava movimentos, mas era apenas o pavor que se havia apoderado de si.

O muro era demasiado alto, bateu no portão com todas as suas forças, mas era difícil, pois a rua, além da loja, só tinha campo abandonado, ninguém se atrevia a construir em frente a um cemitério.

Tinha que saltar o portão, tarefa difícil, era alto e encimado por uma espécie de lanças bicudas.

Tentou pular o máximo, com as pernas e os braços bem estendidos, mas faltava muito.

Olhou ao redor, mas não via nada que pudesse servir de base. Tentou mais algumas vezes, quanto mais tentava maior era o cansaço e menor o alcance.
Pensou em arrancar uma jarra mas isso seria profanação. 
Teve medo, não fazia.

A noite começava a cair, olhava à volta e imaginava sombras.
No desespero viu uma tábua encostada à casa dos lavabos.
Empinou-a ao portão e trepou o possível, tentou passar o corpo mas a tábua não aguentou e caiu no momento que o corpo passava as lanças que encimavam o portão.

O resto é previsível.

******

O velho da loja e a moça do sorriso gaiato, tinham completado a sua missão, ninguém os podia ver e agora já podiam descansar em paz.

Foi feito justiça, estes, nunca mais violariam ninguém.






sábado, 1 de março de 2014

No Outono








Foi numa tarde de Outono, num dia em que a chuva descansou e nos deixou, apenas, a magia das folhas voando ao sabor do vento.


Sou suspeito pois, para mim, o Outono tem uma magia que não consigo encontrar noutras épocas. Gosto daquela luz a esconder-se por entre as folhas secas e a penumbra translúcida do cair do dia.

Talvez, porque sou um romântico.

Mas como ia dizendo, foi numa tarde de Outono que, quase, por acaso olhei pela minha janela, primeiro vi as nuvens pardacentas que corriam, mudando os desenhos surrealistas, que, sempre, me faziam lembrar algo ou alguém por momentos, para de seguida se transformarem em formas diferentes.

Na rua, em frente, mesmo no portal da casa que, em tempos, foi da dona Filomena estava um vulto que me deixou confuso. A penumbra que, entretanto, descera não me permitia ver bem mas, parecia mesmo a pobre dona Filomena, já falecida há alguns anos.

 Eu apenas bebi um trago de whisky, foi tão pouco que era impossível ter embotado os meus olhos, a dona Filomena morreu, julgo que há dois anos, mas não havia dúvidas era ela, o mesmo xaile cinzento, o corpo dobrado pelas dores e pelo peso dos anos. Conseguiu abrir a porta e entrar, fiquei confuso se era o fantasma da senhora porque abriu a porta, sempre me disseram que atravessavam as paredes e uma porta, penso, é mais fácil que uma parede. Estou a divagar, a tentar desviar o pensamento, mas na verdade tenho um arrepio que me atravessa o corpo, um frio na coluna e, julgo, as cuecas muito próximas de estarem borradas.

Não pode ser, deve ser destes óculos, já os devia ter mudado, mas a preguiça e esta mania de poupar acabam por dar mau resultado.

Mas o que é isto? Acenderam- se as luzes do andar da morta, isto e surreal, não são os óculos, deve ser um pouco de senilidade que me faz ver coisas, ou talvez não, porque algo anda naquela casa, vejo as sombras que passam como acontecia quando a morta ainda estava viva.

Vou fechar as persianas e vou espreitar pelos intervalos, apagou as luzes, só ficou a escuridão.

Vou tomar um ou, mesmo, dois comprimidos de Xanax, acho  que vou dormir como um anjo. Será que os Anjos dormem? Não acredito, ou fazem turnos ou, então, á noite ficávamos entregues à bicharada,

Acordei cedo e bem-disposto, tinha esquecido aquela aparição e prometi a mim mesmo que whisky, só ao serão e pouco pois anda a confundir- me e a fazer- me ver coisas.

O dia está como o de ontem, escuro, não chove mas mais
valia, assim só aquela penumbra e um frio que enregela e que nos obriga a um trago para aconchegar o corpo. Mas vou resistir, jurei e juras são para cumplir.

 Vou espreitar a casa da saudosa dona Filomena, assim fico a saber que as visões são o fruto de uns goles durante a tarde. Hoje não bebi nada, por isso vou ficar tranquilo e não penso mais em visões.

Oh meu Deus não pode ser! Neste momento, exacto, o vulto da pobre morta está a entrar na antiga morada. Estou confuso, ela morreu mesmo, fui ao funeral e vi que o caixão foi enterrado na campa. Hoje não bebi, a não ser que o leite agora tenha álcool, mas não, não tem. Tenho que ir ao psiquiatra, estou a ficar apanhado da cabeça, tenho visões e imagino ver o inimaginável.

Antes de me considerar maluco vou bater à porta, pode ser que a defunta tenha alguma irmã gémea, ou algo parecido, que ande a arrumar as coisas para desocuparem a casa.
Não me apetece muito, está frio e tenho que me vestir, mas vou senão a minha cabeça não para de girar.

Estou a caminho, enfiado num grosso sobretudo e com um gorro, de lã, tapando a cabeça.

Estou à porta mas, algo, parece estar a tolher a minha mão.

Quero bater à porta mas, confesso, o medo deixa-me paralisado, e se a mulher me aparece, a abrir, que faço eu?
Desato a fugir gritando histericamente, ou desmaio mesmo ali?
Se calhar é melhor voltar depois. Não já que aqui cheguei vou em frente!

Bati, primeiro, suavemente e escutei. Nada, bati com mais força e, então, ouvi um arrastar de correntes, uns passos como que deslizando em chão encharcado, faziam um "tchloque" estranho, como se pisassem algo viscoso.

Entreabriram a porta e, os meus olhos ficaram esbugalhados perante a imagem. Alta, totalmente nua, longos cabelos e olhos brilhantes, pegou-me pelo braço e arrastou-me por um longo corredor que terminava num espaço infindável, onde a música, parecia dos “Dire Straits”, enormes fontes jorravam chocolate, mesas intermináveis repletas das maiores iguarias. Pares, vestidos como vieram ao mundo, balançavam- se ao som estridente da música que abafava todos os ruídos. Luzes faiscavam, dando um ar feérico ao ambiente que nos absorvia.

Balbuciei:

-E a dona Filomena?

A minha acompanhante, com um sorriso luminoso, convidou:

-Esqueça a essa, era apenas a tua guia!
Vá, aproveita o melhor que souberes.

-Mas, perguntei, estamos no paraíso?

Olhou- me com ar enigmático antes de responder:

-No paraíso? Não! O paraíso é monótono, estamos muito melhor!
Estamos no Inferno!