segunda-feira, 28 de abril de 2014

Uma Valsa











Perdi, um pouco, a noção das horas. Ouvi as badaladas do relógio, da Igreja, mas os pensamentos desviaram-me a atenção e perdi-lhe o conto.
Olhando a tonalidade da luz, que entrava pela janela, pensei, que deviam ser 11 horas, ou talvez mais, acordei tão tarde que perdi a noção do tempo.
Nem sempre foi assim, antes, era como o galo da manhã, ainda o Sol estava escondido no horizonte e já, eu, andava dum lado para o outro, mexendo aqui, remexendo além, numa falsa actividade, como dizia o meu pai.
Agora tudo mudou, não por querer, mas a vida pregou-me uma partida, digo que foi a vida mas a minha imprudência foi a principal culpada.

Como todos os dias, quando saía da faculdade, vinha naquele ziguezagueia por entre os carros, aproveitava todo os espaços e ia escapando habilidosamente à confusão, sempre me saia bem, chegava cedo a casa, e ficava com tempo para preparar os trabalhos, encontrar-me com os amigos, no café do Chico Inácio, para uma alegre cavaqueira.

Um dia, estava escrito, dizia a minha mãe, as coisas não correram da mesma maneira, a chuva foi pouca e as ruas eram autênticas ratoeiras, eu que o diga, a curva foi além do que imaginava e as rodas da mota descontrolaram, fui jogado violentamente contra o passeio, o capacete que devia estar no sítio certo, ia enfiado num braço, e foi a cabeça que embateu, com violência, na esquina do passeio.

Para mim, acabou tudo naquele momento, acordei passados três dias numa cama, que não era a minha e num quarto que não conhecia. Numa total confusão de tubos e tubinhos que me mantinham agarrado às máquinas, onde luzes mostravam gráficos que eu não entendia.

Do meu lado uma voz trouxe-me à realidade:

-Então Fernando, vamos acordar?

Era um médico ou enfermeiro, pela bata, mas tinha um sorriso lindo!

-Há quanto tempo estou aqui? Perguntei.

Olhou aqueles gráficos, com um ar de conhecimento, antes de me responder:

-O importante é que estamos, aqui, a falar e ontem ainda não tinha a certeza de que isso seria possível. Agora vai ter visitas da família, só uma de cada vez, elas vão contar-lhe como tudo aconteceu.
*********

Foi difícil, parece que tive um acidente, não muito aparatoso mas grave, bati com o pescoço e a cabeça na esquina do passeio.
Não me lembro de nada, total escuridão no meu pensamento.

Estive três dias em coma, acordei sem a noção de nada, sem recordações e, o pior, sem sentir o meu corpo.

***

Estou há oito meses no hospital, vou sair hoje melhor do quando entrei, diz o meu irmão, entrei inconsciente, de maca, vou sair consciente, numa cadeira de rodas.
Não é bom, mas ele tem razão, entrei muito pior.
Vou ter uma grande luta pela frente!

****

Agora ouvi bem, é meio-dia, foram 12 sonoras badaladas do velho relógio da Igreja. Esta minha impaciência é porque às 4 horas, da tarde, chega a Susana, a minha fisiatra, a mulher das mãos mágicas.

A Susana é da equipa de fisioterapia do hospital, é linda e de uma paciência que a torna especial, durante oito longos meses, todos os dias, as suas mão fizeram milagres, com os dedos, longos e delicados, procurava e estimulava os meus nervos e músculos, movia de forma suave e cautelosa as articulações, que teimavam em estar rijas e insensíveis.

Quando saí, do hospital, os meus braços já tinham recuperado toda a mobilidade, as pernas é que não respondiam aos apelos do cérebro.

Fiquei de voltar, semanalmente, para continuar a recuperação mas, os meus pais, queriam mais e contrataram a Susana, para diariamente, tratarem da minha recuperação e em boa hora o fizeram.

A minha sensibilidade é diferente, já reajo a alguns estímulos e, bem amparado, já consigo ficar de pé, por curtos momentos, mas é uma enorme vitória, da Susana e também, da minha vontade.

Diz, ela, que para o ano posso voltar à faculdade e, está esperançada, que dentro de três anos possa deixar a cadeira de rodas.

Eu acredito intensamente, quero acreditar!

***

Ouvi bem, é meio-dia, faltam 4 horas e estou impaciente.

A Susana, é de uma beleza muito especial, não tem nada que se realce, é uma comunhão perfeita. Os olhos são doces e com uma suavidade que nos prendem e não pudemos deixar de os fixar, a boca, pequena, tem um recorte que a torna especial e os cabelos fulvos caiem, sobre os ombros, em suaves canudos.

Não sei o que outras pessoas pensam mas, para mim, é a mulher mais bonita que alguma vez conheci.
Além do mais, é terna, suave no falar, paciente e com uma doçura que a tornam especial. Já sei que vão pensar que sou, uma espécie, de aluno apaixonado, pela professora, mas juro que não,  ela é mesmo especial.
Mas tenho que guardar todos estes pensamentos, a cadeira de rodas prende-me e  não deixa libertar tudo o que o meu coração sente.

Chegou, ainda não eram 4 horas, tirou o casaco e vestiu uma bata, como sempre o fazia, com um sorriso lindo incitou-me:

-Vais tentar, sozinho, levantar da cadeira, não tenhas receio estou aqui para te amparar.

Foi difícil, mas consegui!

Ajudou-me a estender na mesa, que servia de marquesa, e com um belo sorriso exclamou:

-Boa! És formidável! Que perseverança e coragem, tenho a certeza que, em três anos, vais recuperar totalmente!

Devo ter perdido a cabeça, mas foi mas forte que a minha vontade e, o pensamento, saiu-me boca fora:

-Só espero que, nessa altura, estejas descomprometida, para eu me poder candidatar a conquistar o teu coração!

Depois corei e senti, mesmo, umas lágrimas rebeldes a escorrerem no meu rosto. Só consegui proferir:

-Desculpa Susana, sou mesmo parvo!

Continuou, em movimentos suaves, a fazer o meu pé articular. Parecia não me ter ouvido, o que me deu algum sossego, mas ouviu e bem, estava apenas a coordenar as ideias.

Levantou os olhos e com a mesma doçura de sempre apenas me disse:

-Sabes uma coisa Fernando, enquanto pensares assim não te recuperas. És um homem maravilhoso, qualquer mulher, incluindo-me a mim, ficaria orgulhosa em te ter como companheiro! O meu coração já o conquistastes, há muito!

Ouvi sinos dentro da minha cabeça, as pernas pareciam ter força para pularem de alegria, não arrisquei, mas os meus olhos agora deixaram cair todas as lágrimas, de alegria, que há muito tinham desaparecido.

*******

Vamos casar! Estão todos convidados, apareçam no domingo, pelas 13 horas, na pequena Igreja da nossa paróquia, venham assistir ao meu casamento e da Susana.

Vai ser uma cerimónia linda, vamos entrar ao som da valsa nupcial, de Mendelssohn, foi a Susana que escolheu.
Vou na minha cadeira de rodas, a minha noiva vai a empurrar mas, um dia, vou voltar pelo meu pé, bem agarrado ao braço da minha mulher.

Prometo!
Vá lá! Não faltem, espero por vós!

Quero compartilhar, com todos, a nossa felicidade!



terça-feira, 22 de abril de 2014

Eduardo e Luísa










Foi numa invernosa tarde de Janeiro, a chuva fustigava sem dó nem piedade, e só os loucos como eu se atreviam a enfrentar a rua. Não era por vontade, mas obrigações são, mesmo, obrigações.

Estava desempregado há algum tempo e, mesmo com toda a borrasca, não podia perder uma entrevista. Era a primeira depois do enviar tantos currículos, e não seria a água  que me iria impedir.

Cheguei cedo, aliás é um hábito que me acompanha desde sempre, detesto esperar e sou incapaz de deixar alguém à minha espera. Dou, em regra, 15 minutos de tolerância, depois vou embora.

A recepcionista era uma loira, um pouco delambida, com um sorriso amorfo e, para impressionar, com uma falsa actividade.

Esperou alguns momentos até que pareceu descobrir que estava ali na sua frente.
Fez um sorriso, ainda mais enjoado, antes de perguntar:

-Em que posso ajudar?

Comecei a ficar um pouco vidrado, mas aguentei, não me convinha entrar com o pé contrário. Afivelei um sorriso, também, um pouco pálido antes de responder:

-Talvez encaminhando-me para quem me convocou para esta entrevista! Coloquei-lhe a carta em frente do nariz.

Olhou para o papel e levou-me para uma sala de reuniões, luxuosamente mobilada.

Desta vez o sorriso saiu-lhe melhor, foi quase simpática:

-Pode aguardar um momento, a doutora Luísa, já o vêm atender!

Saiu num precário equilíbrio naqueles saltos altos e afilados.

Foi rápido, a tal doutora Luísa, apareceu vinda do nada e deixou-me um pouco apatetado. Era, como se costuma dizer, um monumento. Afirmar que era linda, é quase pecado, ultrapassava tudo o que o se pode imaginar.
Alta, de uma elegância suave, certa em tudo, na beleza, nos modos e na simpatia.
Estendeu-me uma mão, esguia, e indicou-me uma cadeira. Fixou-me com aqueles olhos, quase esmeraldas, antes de começar:

-Como, decerto, já lhe disseram eu sou Luísa, responsável pelos recursos humanos desta Companhia. O seu perfil e experiência parecem estar de acordo com o que pretendemos.

Sabe engenheiro Eduardo, gostava de completar com umas questões, muito simples:

-Basta Eduardo! Deixemos o engenheiro, respondi.

Sorriu, o mais lindo que alguma vez contemplei:

-Bom, Eduardo, voltou a sorrir, vou fazer três perguntas:

-É casado? Na carta não menciona!
Se for escolhido qual a sua disponibilidade?
Fala algum idioma além de português?

-Bom, respondi, uma falha grave! Sou solteiro, estive quase casado mas consegui saltar a tempo. Disponibilidade imediata e, julgo que está no meu currículo, falo bem Inglês, o suficiente de alemão e entendo o francês.

Gostei do ar dela, daquele olhar  entontecedor.

-Por mim, continuou, ficava já! Mas tenho que obter o visto do presidente. O seu telefone está aqui! Eu telefono breve. Tenho a esperança na sua admissão, depois falamos em remunerações.

Deixei um sorriso, levantei-me,  segurei a mão que me estendeu e despedi-me:

-Obrigado, fico esperançado nesse telefonema, mas já ganhei com o privilégio de a ter conhecido.

Fiz uma ligeira vénia e sai mas levei-a no pensamento.

Luísa sorriu agradada com o piropo, o candidato mexeu com ela. Tinha aparentemente, tudo o que queria e admirava num homem.

******
Quatro horas de uma tarde em que a chuva deu lugar a um dia gélido, as pessoas passavam enroladas em abafos e, com os cachecóis, tapando parte do rosto.
Estava na livraria, procurava um livro sobre novas tecnologias de informação, quando o telemóvel tremeu dentro do meu bolso.
Atendi, pareceu-me a voz da delambida, o que me aguçou o interesse:

-Boa tarde é da Enterprise Communication, vou passar à Dra. Luísa.

Senti um frio doce percorrer-me o corpo, ajeitei o cabelo, como se o telefone tivesse imagem. Sou vaidoso e estou nervoso.
Ouvi, então, a voz doce e suave:

-Bom dia engenheiro Eduardo!

Interrompi:

-Bom dia e, mesmo que não tenha boas noticias, continuo a ser apenas Eduardo.

A gargalhado que ouvi do outro lado era animadora.

-Seja, então, Eduardo! Posso confirmar a sua admissão a partir do dia 1 de Fevereiro. Gostava de o ter aqui, na quinta-feira às 15 horas, para falar com o nosso presidente e assinar o contrato.

As pernas tremeram-me, por duas razões, tinha um emprego e ia ver, novamente, a mulher que morava no meu pensamento.

******

Sexta-feira, as 14,30, entrei na Empresa. Ao balcão não estava a loura, mas uma morena com um sorriso bonito.
 Apresentei-me:

-Boa tarde, sou Eduardo Santana, tenho uma entrevista com a doutora Luísa. Sei que estou adiantado mas espero.

Não esperei muito, não tardou, a Luísa apareceu-me com a mão estendida:

-Boa tarde Eduardo, como vê esqueci o Engenheiro. Venha comigo!

Segui-a, fui apresentado ao Presidente, Mister Larsson, julgo que sueco, assinei um contrato com condições superiores às que esperava.

Acompanhou-me à saída e não resisti:

-Sabe Luísa, sujeitando-me a ser despedido já, mesmo antes de começar, não resisto em a convidar para jantar!

Foi o sorriso mais bonito que vi até hoje, e quase em surdina respondeu:

-Já estava preocupada a pensar que tinha que ser eu a fazer o convite. Aceito, pode ser amanhã?

Fiquei, quase sem palavras, mas ganhei coragem:

-Combinado, onde nos encontramos?

Sorriu.

-Pode ser aqui, à porta, por volta da 19,30!

Senti tudo a saltar dentro de mim, estendi a mão:

-Combinado!

******

As coisas acontecem, nada é por acaso, tudo deve estar escrito num livro do destino.

Tenho 34 anos, da vida pouco ou nada recebi, de repente, numa altura de crise, arranjo um bom emprego. Sem falsa modéstia, sei que sou bom na minha área mas isso, nem sempre é importante, Para completar, este virar de página, caiu na minha vida uma mulher que me completa.
Tem tudo o que mais tenho procurado desde sempre, é linda, carinhosa, inteligente, sabe falar no momento certo e escutar como ninguém.

Podia ter começado no jantar, mas não, julgo que foi logo no primeiro olhar, num momento de magia onde os nossos corações viram mais longe que os nossos olhos.

Foi um namoro curto, dois meses, depois já vivíamos juntos, passado um ano resolvemos casar, não era importante, mas o pai da Luísa sonhava levar a filha ao altar, antes de morrer.

Foi um casamento simples, a família dela, eu já não tenho família, e alguns dos nossos amigos mais próximos. Mas foi lindo e maravilhoso ouvir o SIM, e tão mágico o olhar feliz da Luísa quando o proferiu.

Estamos casados há, quase, dois anos e cada dia tem parecido o primeiro. Pensámos em filhos mas, por opção, resolvemos esperar mais algum tempo. Luísa tem andado muito frágil, o olhar continua a ser o mesmo, mas noto que há esforço para o manter.
Comecei a ficar apreensivo, será que já não sente por mim o mesmo? Não pode ser, era impossível fingir, o nosso amor é completo. Trabalha muito e o cansaço é o responsável, vou propor umas férias, uns dias só para nós, num lugar tranquilo, talvez no campo.

Foi ao primeiro almoço que sugeri:

-Amor! Porque não tiramos uns dias de férias e vamos para um lugar, calmo e sossegado, retemperar forças? Tu precisas muito, tenho notado o teu cansaço. Sabes que até penso que já não és feliz comigo!

Olhou-me com tanta ternura que os olhos pareceram ter o brilho que ultimamente tinham perdido, deu uma pequena gargalhada antes de responder:

-És mesmo tonto, tu és a minha vida, sem ti não existo. Gosto dessa ideia de umas férias, vou falar com mister Larsson e vamos. Preciso muito, a minha cabeça dói o dia inteiro e, nunca tinha dito, por momentos perco um pouco a visão, são flashes mas preocupam-me!

Encostei-a ao meu peito e senti como estava frágil, tentei parecer tranquilo:

-Vamos fazer as férias depois, mas agora mesmo vamos ao hospital, falamos com o doutor Salema e ele vai tratar de ti. As férias esperam, primeiro a saúde.
Ainda tentou argumentar:

-Mas querido, na Companhia, precisam de mim.

Afaguei-lhe o rosto enquanto a tranquilizava:

-Não penses no trabalho, eu trato disso.

Felizmente o doutor Salema estava de serviço, ouviu, muita atentamente a Luiza, perguntou se, além das dores da cabeça, das perdas de visão se tinha também náuseas e problemas com leitura.

-Tenho, respondeu, agora que fala nisso lembro-me de uma certa descoordenação com a leitura, pensei que seria das perdas de visão momentâneas e da possível falta de uns óculos.
Náuseas não e ainda bem! Às tantas pensava que estava grávida!
O médico franziu a testa, Luísa não reparou mas, eu fiquei muito apreensivo.
O doutor Salema acabou de escrever. Depois, continuou de modo muito profissional:

-Eduardo preciso que a Luísa faça uma Ressonância. Eu vou tratar disso e depois telefono. Tens o mesmo número?
Apenas abanei, afirmativamente, a cabeça.

Saímos sem soltar uma palavra, não sabia o que dizer. Foi ela que quebrou o silêncio:

-Desculpa amor, não te queria preocupar!

Apertei-a contra mim, sustive o soluço, mas as minhas palavras disfarçaram o que eu sentia:

-Não penses nisso, não vai ser nada, apenas um susto para recordarmos quando estivermos velhinhos.

Senti o sorriso e as palavras:

-Sabes, amor, não tenho medo de morrer mas não quero pensar que te posso perder.

*****

O doutor telefonou, tinha tudo tratado, era preciso estar amanhã cedo no hospital.

Luísa não estava com muita vontade, julgo que era receio do que pudesse estar por detrás. Ainda tentou:

-Amor, achas que vale a pena tudo isto? Penso que duas semanas de férias, os dois, sozinhos era o melhor, tu és a minha cura e a tua companhia é o meu remédio.

Dei-lhe um beijo, puxei-a contra o meu peito, anichou-se como tanto gostava. Olhei de frente nos olhos antes de lhe perguntar:

-Onde está a mulher que eu amo tanto? Onde está a Luísa lutadora? Vamos tratar de ti, depois fazemos as nossas férias no nosso lugar secreto. Vá vamos à luta, minha princesa!

     *******

Foi tudo tão rápido que nem deu tempo para me preparar e, o doutor Salema foi, penso, demasiado directo:

-A Luísa tem um tumor no cérebro, que designamos por Glioma, têm já algumas metástases. Vamos cuidar dela, um tratamento multidisciplinar, uma acção conjunta de neurocirurgião, um radioterapeuta e eu como oncologista.
Vamos tratar do internamento, não pudemos perder tempo.

Depois olhou-me, apertou-me o ombro e disse-me baixinho:

-Se sabes rezar pede por ela, se não sabes chegou a altura de aprenderes.

*********

Foram tempos difíceis, Luísa foi enorme na coragem, foi ela que alimentou a minha.
Pegava na minha mão com tanto carinho, encostava a cabeça no meu ombro, tinha perdido os cabelos, mas nunca ouvi um queixume.
Hoje estava mais sensível, pareceu-me ver alguma tristeza e notei que estava a ganhar coragem para falar:

-Sabes, Eduardo, eu sei que o fim se aproxima, não te preocupes, estou preparada. Fui a mulher mais feliz, Deus deu-me o homem mais maravilhoso que alguma mulher pode desejar. Não foi muito tempo eu queria mais, mas foram quatro maravilhosos anos.
Não quero que sofras por mim, eu vou estar bem, mas com muitas saudades, se é que as saudades são permitidas nesse lugar para onde vamos. Não quero ser cremada, não deixes que me façam isso.

Ela sentiu as minhas lágrimas, não as consegui conter. Enxugou-me, com as mãos os olhos, deu-me um beijo:

-Amor não quero partir com esta imagem, quero levar no pensamento o homem especial que me amou, tenho a certeza disso. Vamos deitar, estou cansada e amanhã é um dia daquele tratamento doloroso.

*****

Foi fazer a quimioterapia mas estava tão fraca que os médicos acharam que era melhor ficar internada. Tentei animar mas as palavras soaram-me a falso, bem tentava mostrar calma e confiança, mas apenas consegui dizer:

-Querida é melhor, ficas e os médicos vão ajudar. Vou estar contigo todo o tempo que me deixarem e, amanhã, serei o primeiro, aqui, ao pé da minha mulher!

Os olhos não brilhavam da mesma maneira, notava muita conformação e, eu, não queria isso.

-Sabes, minha querida, que preciso muito de ti, és a minha vida, quero que reajas e que acredites. Sabes que sou agnóstico mas, hoje aqui, juro que quando voltares curada, para nossa casa, vou a pé a Fátima.
Notei-lhe os olhos húmidos, a sua mão apertou com mais força a minha, deu um sorriso e com voz cansada, deixou quase como num murmúrio:

-Não vais só, vou contigo, vamos os dois agradecer!

-Agora tem que sair, disse-me a enfermeira. A senhora vai dormir, tomou um calmante, precisa descansar.

Saí, não sabia para onde ir, nem o que fazer. Entrei numa Igreja, não sei rezar, mas pedi com tanta fé e sinceridade que, acredito, se houver alguém para me ouvir vai ajudar.

***********

Fui, como prometi, o primeiro. Quando me viu os olhos brilharam como há muito não via.
Estendeu-me os dois braços e pediu:

-Dá-me um abraço, preciso tanto de sentir o teu corpo.
Abraçamo-nos com tanto amor.

-Sabes querido, disse Luísa, hoje sinto-me melhor. Tinhas razão ficar aqui ajudou, os médicos têm sido tão queridos. Talvez Deus, ainda, nos possa ajudar!

A enfermeira interrompeu o nosso enlevo:

-Tenho pena de estorvar este momento, mas tenho que a levar para o tratamento. Vai demorar é melhor o senhor voltar ao fim do dia.

Voltei às seis horas, não me deixaram entrar, disseram que ela precisava descansar e a minha presença a iria deixar mais agitada e não era bom.

*******

Fui, outra vez à Igreja, precisava acreditar, necessitava da esperança.
Fiz as minhas próprias preces, pedi que aceitassem a minha vida em troca daquele que sentia fugir. Afinal, sem ela, a minha existência não fazia sentido.

Levantei-me muito cedo, aliás, não consegui dormir, era impossível dormir naquela cama vazia, nos pensamentos que queria rejeitar mas de que não me conseguia libertar.

Só às onze me deixavam fazer a visita, ia tentar arrumar algumas coisas que andavam dispersas pela casa.

O telefone tocou, olhei o relógio, quem seria às oito horas, algum engano, mas fui atender:

-Bom dia, diga por favor!
********

Luísa tinha morrido nesta madrugada.

-Morreu, disse-me o doutor Salema, com muita dignidade.

Não me aguentei, foi mais forte do eu. Chorei toda a dor, toda a mágoa, reneguei aquele Deus que apenas fingiu ouvir mas nada fez.
Se pedisse para mim eu compreendia, não mereço, mas a Luísa porque?
Sim porque? Foi para castigar a minha descrença? Se foi conseguiu!

Não queriam que eu visse o cadáver, mas quem me ia impedir, era a minha mulher e tinha que me despedir.
Mesmo sem o cabelo, que emoldurava a doçura daquele rosto pálido, sem o brilho daqueles olhos que me prendiam, continuava linda e tão suave e serena que pensei que apenas dormia e, não tardava ia acordar.

Teve o funeral como desejava, numa campa rasa com os amigos de quem gostava.

*******

Faz hoje 15 dias que me deixou.
A minha vida foi com a dela, sinto a sua presença, mas é só o meu pensamento, ela já está muito longe.
Não consigo aguentar a solidão, os nossos amigos tentam, mas nada mais pode ser igual.
Não sei como é, ou se há outra vida, onde possamos continuar do ponto onde ficamos.
É muito difícil! Não posso, nem quero, continuar assim, vou ter com o meu amor.

Vou escrever, ao Diogo, uma carta simples, sem muitas explicações, apenas para saberem que vou ter com o meu amor, sei que ela me vem buscar, sinto a sua presença.



*******


Sou o Diogo e nenhum de vós me conhece.
Fui o maior amigo do Eduardo e, como é normal, também da Luísa. Acompanhei o amor que os uniu e sofri, com eles, todo o amargura que, de forma tão trágica terminou.

Hoje estou aqui a cumprir o desejo do Eduardo.
Faz um ano que o meu amigo desapareceu, sem rastro, sem qualquer pista. Foi como se tivesse evaporado.

Pois, como disse, o carteiro entregou-me, faz hoje um ano, deixo-a aqui para todos, tirarem as devidas ilações:

Amigo Diogo

Não sei como começar, é difícil esta espécie de despedida e este pedido que te deixo, mas és o único capaz de o fazer.
Sei, porque te conheço, que vais aguardar um ano para rasgares este envelope, para saberes o que sempre, tenho essa convicção, esteve no teu pensamento.

A Luísa precisava de mim e, eu não saberia estar longe dela, por isso, voltámos a juntar os nossos destinos para todo o sempre,
Vamos ser felizes na eternidade!

Vais sentir a minha falta, terás que arranjar outra companhia para ires a Alvalade, porque eu, deixei de ter interesse pelas coisas terrestres.

Adeus, amigo, a Luísa já não tarde, vem aqui para me levar.
Deixa passar um ano, depois podes dar a conhecer, se assim o entenderes, estas palavras que te deixo.
Até sempre amigo, ou até um dia, quem sabe!

Eduardo








segunda-feira, 14 de abril de 2014

Once upon a time....







Foi há três meses atrás que a viu pela primeira vez mas, ficou-lhe no pensamento o porte altivo, os fartos cabelos negros, em caracóis, a emoldurarem um rosto, quase, angelical onde uns olhos, de verde intenso, tornavam o quadro quase surreal.

Estava no pequeno jardim do largo em frente aos correios, telemóvel encostado ao ouvido, enquanto os lábios cor de romã se iam entreabrindo em frases que ele não conseguia ouvir.

Quis avançar mas não conseguiu quebrar a timidez, não era a primeira vez que as pernas lhe paralisavam a vontade, que o coração disparava à alegria do olhar e o corpo deixava morrer o desejo entorpecido pelo medo da rejeição.

Fechou os olhos para ganhar coragem, esteve assim alguns segundos até que a ousadia parecia ter vencido o medo, abriu e, a imagem, tinha desaparecido como por encanto.

Apeteceu-lhe chorar, mas em público não teve ânimo, não queria mostrar como era fraco, tímido e falho de iniciativa.

Durante três meses, todos os dias à mesma hora, no mesmo local, sentava-se num banco na esperança de a voltar a ver. Passava, quase, uma hora olhando o espaço e imaginando, o milagre de a ver correndo na sua direcção, braços abertos para o estreitar contra o coração.

Sempre ouviu dizer que a esperança era a ultima a morrer e ele sentia, que ela ainda um dia, ia reparar no amor que lhe tinha e de como a poderia fazer feliz, só precisava de ser perseverante.

A mãe dizia-lhe que o tempo que perdia o podia usar a procurar  emprego, mas a mãe não percebia nada do amor! Para a mãe, amor era um homem a trabalhar e uma mulher, em casa, a lavar a roupa e a fazer comida.
Esses tempos mudaram a vida agora é diferente, a juventude descobriu um novo conceito, mais puro, mais romântico, nada de trabalho, nada de panelas, agora a vida é para curtir, andar numa boa e cada um viver na casa dos pais.

O pai esta “bué” de atrasado, sai de madrugada e volta ao fim do dia, a trabalhar, sempre a trabalhar.
Para que? Nem dinheiro tem para trocar o "chaço" que está estacionado à porta.

O velho agora nem lhe fala. "Tasse" lixando para isso, ficou chateado porque pôs uma argola, muita curtida no lábio, diz  que os porcos é que usam argolas para não cavarem a terra, como se alguém acreditasse numa coisa dessas, o velho está mesmo a ficar marado.

Já esta a ficar "pró" lixado com a “garina”, andou um dia a pavonear-se para lhe chamar a atenção, depois dá-lhe o amoque e desaparece, mas um dia vai encontra-la e ela vai ver o que custa. Não se brinca, assim, com os sentimentos cá do menino.

Mais uma tarde perdida olhando uns velhotes num barulhento jogo de sueca, pareciam que estavam a jogar a vida. Batiam as cartas com violência, gesticulavam e acusavam os parceiros de não terem jogado este ou aquele trunfo.

Ia desistir, por hoje, mas ia voltar e um dia a gaja ia aparecer e ele, talvez, nem para a tromba lhe fosse olhar, não se brinca assim com os sentimentos de uma pessoa.

Ele não a conhecia, só a viu naquele dia a falar ao telemóvel, mas a maneira como o olhou, foi de soslaio, mas disse tudo e ele sentiu a mensagem.

*****

Foi até ao café do Rebocho, era lá que a malta se reunia, para combinar com o pessoal o programa para o dia. Já estava a imaginar o Isaías a inventar uma ida ao cinema, o merdoso do Aníbal a descobrir umas cenas maradas à porta do liceu das miúdas e o Toni a escolher não fazer nada. Ele ao cinema não ia, estava tesinho e não conseguiu sacar “népia” à velha! Para o liceu não ia, o “chui” já o topava e não estava interessado em ir passar uma noite na esquadra, não fazer nada era agradável, mas hoje não estava virado para isso.

De repente teve uma ideia luminosa e juntando os amigos num círculo, todos tesos como ele, perguntou:

-Quem está disposto a alinhar num esquema para sacar uns dinheirinhos? É, quase, uma brincadeira eu tenho tudo estudado!

-É pá, disse o Toni, não estou interessado em ir dormir à “choldra” !
-Mas qual “choldra”, qual merda! Exclamou irritado, isto está tudo previsto. O velho fecha a loja, dos telemóveis, às 7 horas e é a melhor altura para avançarmos e sacar o dinheiro e algum material.
É, fácil o Aníbal que tem mais “caparro”, imobiliza o velho e os outros sacam tudo o que valer dinheiro, mas nada de violências porque o velhote até é “bacano”. O Isaías, que tem carro, aguenta para nos pirarmos.

-Parece “porreiro”! Disseram.

-Tá combinado, às seis, todos no largo. O Isaías vai á frente estaciona, sem dar nas vistas, à porta da loja. Nós vamos de seguida e no momento de fechar a porta metemos o ombro que o ginga cai de pantanas, o Aníbal aguenta-o, nós fanamos o dinheiro, enfiamos os telemóveis no saco e arrancamos para o carro. Não demoramos mais que três minutos.

***

O senhor Apolinário já arrastava, um pouco, o peso dos anos mas tinha que viver. Estava há 52 anos nesta loja. Começou ao 14 com o tio Ernesto, era uma retrosaria, vendiam tudo e a casa estava sempre cheia, eram outros tempos, com o pronto-a-vestir o negócio foi por água abaixo e o tio desistiu, estava cansado.
Apolinário ficou com o negócio e, acompanhando a evolução, transformou as linhas e os botões em telemóveis, acabou o retroseiro e começou uma nova etapa, era necessário acompanhar o progresso.

Hoje o dia foi bom, não se podia queixar. Estava, no entanto, preocupado com um “gajo”, mal-encarado, que tinha estacionado um velho Ford à porta da loja, o tipo estava nervoso, olhava para todos os lados esperando alguma coisa e boa não era, com toda a certeza! Ia telefonar à polícia, o seguro morreu de velho.

-Vamos mandar já uma patrulha, prometeram.

Sete horas, ia fechar a porta e descer os taipais, quando de roldão entraram três marmanjos, que o imobilizaram contra o balcão, tiraram o dinheiro da caixa e começaram a descarregar as prateleiras para um saco de lona.

No momento em que se preparavam para sair, com o saque, uma surpresa os aguardava, a polícia apareceu em força. O Isaías ainda tentou arrancar com o carro mas não teve tempo.

Foram mandados ajoelhar e mãos atrás das costas, para serem algemados.
O Timóteo, finalmente, voltou a encontrar a mulher dos seus sonhos, transformados em pesadelos.

A diva, dos cabelos negros, com lábios cor de romã, era a agente Susana que, com perícia, o manietou.





quinta-feira, 3 de abril de 2014

Vendetta









Dona Bebiana estava preocupada, sempre tentou ser boa mãe, deu tudo pelos filhos.
O Ernesto, o mais velho, tomou rumo na vida, sempre foi carinhoso, amigo dos pais e mesmo agora que está a acabar o curso, no estrangeiro, todas as semanas telefona no computador, nessas coisas modernas do Skype falam e, ao mesmo tempo, estão todos ali na sala, cara a cara, olhos nos olhos. Deus abençoe quem inventou estas modernices!

Agora o que a estava a atormentar era a Clarinha, tinha só 12 anos, de repente ficou distante, metida consigo, fechada no quarto, parecia viver num mundo à parte, não queria falar com ninguém, era um castigo para a obrigar a ir à escola.

-Filha, perguntava Bebiana, tens algum problema que queiras partilhar com a mãe?

-Deixa-me em paz, não te metas na minha vida!
Gritou, Clarinha, enquanto batia com porta do quarto. 
Depois voltou para o seu isolamento.

A mãe nem lhe respondeu, não valia a pena.

Dona Bebiana ficou viúva há três anos, o marido de repente, sem nada o fazer prever, partiu com um AVC fulminante, quando chegou ao hospital já estava morto.

Foi difícil, ficar só e com dois filhos, um com 18 anos e outra de 9.

Arregaçou as mangas, tomou conta do negócio do marido, sem pouco ou nada perceber da padaria, mas venceu e conseguiu manter os filhos ao nível a que estavam habituados.

É verdade que o padrinho da Clarinha foi importante, deu-lhe apoio, aconselhou-a nas decisões mais difíceis, enquanto estragava a afilhada com mimos e prendas.

Aos fins-de-semana, quase sempre, aparecia para um passeio ou uma ida ao cinema, desde que houvesse filmes para a idade dela.

Clarinha idolatrava o padrinho, contava os dias que faltavam para o fim-de-semana, já sabia que ele  vinha buscar para uma ida ao Jardim Zoológico, ao Oceanário, ao cinema ou a qualquer divertimento apropriado à sua idade.

*****

De repente, Clarinha, perdeu o interesse, não quer ir com o padrinho, inventa desculpas mas não a conseguem arrancar de casa.

Dá-lhe um beijo e inventa uma desculpa.

O homem sai triste, olha para a comadre, enquanto vai dizendo:

-São fases, isso depois passa, é a idade do armário, não te preocupes!

Hoje foi de mais, cumprimentou o padrinho, ignorou a prenda, nem a desembrulhou. 
Pediu desculpa e foi tomar duche.

Bebiana ficou sem saber o que dizer:

-Desculpa Américo, eu falo com ela.

-Não vale a pena, repetiu o padrinho, deixa-a que isso passa!

Bebiana já não sabia o que fazer mas, não podia permitir, a filha estava impossível, chata, mesmo muito chata, não podia continuar assim, afinal era a mãe, boa mãe que nunca lhe faltou com nada, talvez só um pouco ausente, mas mesmo isso, por eles.

Ia tomar uma resolução, sempre resolveu os problemas, com os filhos, pelo diálogo, nunca pelo castigo. Se necessário for, pode ser um pouco mais dura, vai ter uma conversa muito séria com a filha:

-Clara, abre a porta, temos que falar e não me obrigues a rebentar o fecho!

Sentiu o rodar da chave, a filha tinha os olhos inchados, estava a chorar.

Abraçou-a, afagou-lhe os cabelos como costumava fazer, até que sentiu os soluços acalmarem.

Depois pediu:

-Clarinha o que se passa, já não te conheço! Onde está a minha filha terna e doce?

A rapariga abriu os olhos, havia medo naquele olhar.

-Fala comigo filha! Pediu Bebiana.

-Sabes mãe, começou Clarinha, não posso, se falar alguém te vai fazer mal e eu não quero!

A mãe sentou-se na cama e indicou-lhe o lugar ao lado. Agarrou-lhe a mão e garantiu:

-Não Clara! Ninguém me vai fazer mal, pedimos ao teu padrinho que nos ajude! Vá conta o que estas a esconder!

Quase em desespero a filha pediu:

-Ao padrinho não, é ele que me faz mal e que diz se eu contar tu vais pagar!

Bebiana respirou fundo, aconchegou a filha contra o peito:

-Agora percebo tudo. O que foi que ele fez?

As lágrimas saltaram, mas arranjou coragem e contou:

-Tirou-me as cuecas e mexeu em tudo, eu chorei, chamou-me menina mimada, disse que se eu contasse que dava cabo de ti, e que ninguém ia acreditar num fedelho como eu.

Depois, chorou até que as lágrimas libertaram o coração.

-Sabes, disse a mãe, eu acredito! Vais  à psicóloga para te ajudar. Eu trato dele, podes ter a certeza que o doutor, teu padrinho, não me vai  fazer nenhum mal e nunca mais molestará nenhuma criança!


O doutor, Américo Damásio, não esperava ninguém tão tarde, espreitou a ainda ficou mais confuso, a comadre Bebiana a estas horas, devia ser urgente. Abriu a porta com um sorriso:

-Tu aqui a estas horas, que se passa? Entra! Vamos para a sala!


*****

A senhora da limpeza encontrou o cadáver.
Estava recostado no sofá, no meio da testa um furo negro, de sangue seco, na mão direita apertava, ainda, uma pequena Beretta 21.

Suicídio, foi o veredicto.

Os negócios não lhe estavam a correr muito bem!

Efeitos da crise!
Que fazer?