Foi
numa invernosa tarde de Janeiro, a chuva fustigava sem dó nem piedade, e só os
loucos como eu se atreviam a enfrentar a rua. Não era por vontade, mas
obrigações são, mesmo, obrigações.
Estava desempregado há algum tempo e, mesmo com toda a borrasca, não podia
perder uma entrevista. Era a primeira depois do enviar tantos currículos, e não
seria a água que me iria impedir.
Cheguei cedo, aliás é um hábito que me acompanha desde sempre, detesto esperar
e sou incapaz de deixar alguém à minha espera. Dou, em regra, 15 minutos de
tolerância, depois vou embora.
A recepcionista era uma loira, um pouco delambida, com um sorriso amorfo e,
para impressionar, com uma falsa actividade.
Esperou alguns momentos até que pareceu descobrir que estava ali na sua frente.
Fez um sorriso, ainda mais enjoado, antes de perguntar:
-Em que posso ajudar?
Comecei a ficar um pouco vidrado, mas aguentei, não me convinha entrar com o pé
contrário. Afivelei um sorriso, também, um pouco pálido antes de responder:
-Talvez encaminhando-me para quem me convocou para esta entrevista!
Coloquei-lhe a carta em frente do nariz.
Olhou para o papel e levou-me para uma sala de reuniões, luxuosamente mobilada.
Desta vez o sorriso saiu-lhe melhor, foi quase simpática:
-Pode aguardar um momento, a doutora Luísa, já o vêm atender!
Saiu num precário equilíbrio naqueles saltos altos e afilados.
Foi rápido, a tal doutora Luísa, apareceu vinda do nada e deixou-me um pouco
apatetado. Era, como se costuma dizer, um monumento. Afirmar que era linda, é
quase pecado, ultrapassava tudo o que o se pode imaginar.
Alta, de uma elegância suave, certa em tudo, na beleza, nos modos e na
simpatia.
Estendeu-me uma mão, esguia, e indicou-me uma cadeira. Fixou-me com aqueles
olhos, quase esmeraldas, antes de começar:
-Como, decerto, já lhe disseram eu sou Luísa, responsável pelos recursos
humanos desta Companhia. O seu perfil e experiência parecem estar de acordo com
o que pretendemos.
Sabe engenheiro Eduardo, gostava de completar com umas questões, muito simples:
-Basta Eduardo! Deixemos o engenheiro, respondi.
Sorriu, o mais lindo que alguma vez contemplei:
-Bom, Eduardo, voltou a sorrir, vou fazer três perguntas:
-É casado? Na carta não menciona!
Se for escolhido qual a sua disponibilidade?
Fala algum idioma além de português?
-Bom, respondi, uma falha grave! Sou solteiro, estive quase casado mas consegui
saltar a tempo. Disponibilidade imediata e, julgo que está no meu currículo,
falo bem Inglês, o suficiente de alemão e entendo o francês.
Gostei do ar dela, daquele olhar entontecedor.
-Por mim, continuou, ficava já! Mas tenho que obter o visto do presidente. O
seu telefone está aqui! Eu telefono breve. Tenho a esperança na sua admissão,
depois falamos em remunerações.
Deixei um sorriso, levantei-me, segurei a mão que me estendeu e
despedi-me:
-Obrigado, fico esperançado nesse telefonema, mas já ganhei com o privilégio de
a ter conhecido.
Fiz uma ligeira vénia e sai mas levei-a no pensamento.
Luísa sorriu agradada com o piropo, o candidato mexeu com ela. Tinha
aparentemente, tudo o que queria e admirava num homem.
******
Quatro horas de uma tarde em que a chuva deu lugar a um dia gélido, as pessoas
passavam enroladas em abafos e, com os cachecóis, tapando parte do rosto.
Estava na livraria, procurava um livro sobre novas tecnologias de informação,
quando o telemóvel tremeu dentro do meu bolso.
Atendi, pareceu-me a voz da delambida, o que me aguçou o interesse:
-Boa tarde é da Enterprise Communication, vou passar à Dra. Luísa.
Senti um frio doce percorrer-me o corpo, ajeitei o cabelo, como se o telefone
tivesse imagem. Sou vaidoso e estou nervoso.
Ouvi, então, a voz doce e suave:
-Bom dia engenheiro Eduardo!
Interrompi:
-Bom dia e, mesmo que não tenha boas noticias, continuo a ser apenas Eduardo.
A gargalhado que ouvi do outro lado era animadora.
-Seja, então, Eduardo! Posso confirmar a sua admissão a partir do dia 1 de
Fevereiro. Gostava de o ter aqui, na quinta-feira às 15 horas, para falar com o
nosso presidente e assinar o contrato.
As pernas tremeram-me, por duas razões, tinha um emprego e ia ver, novamente, a
mulher que morava no meu pensamento.
******
Sexta-feira, as 14,30, entrei na Empresa. Ao balcão não estava a loura, mas uma
morena com um sorriso bonito.
Apresentei-me:
-Boa tarde, sou Eduardo Santana, tenho uma entrevista com a doutora Luísa. Sei
que estou adiantado mas espero.
Não esperei muito, não tardou, a Luísa apareceu-me com a mão estendida:
-Boa tarde Eduardo, como vê esqueci o Engenheiro. Venha comigo!
Segui-a, fui apresentado ao Presidente, Mister Larsson, julgo que sueco,
assinei um contrato com condições superiores às que esperava.
Acompanhou-me à saída e não resisti:
-Sabe Luísa, sujeitando-me a ser despedido já, mesmo antes de começar, não
resisto em a convidar para jantar!
Foi o sorriso mais bonito que vi até hoje, e quase em surdina respondeu:
-Já estava preocupada a pensar que tinha que ser eu a fazer o convite. Aceito,
pode ser amanhã?
Fiquei, quase sem palavras, mas ganhei coragem:
-Combinado, onde nos encontramos?
Sorriu.
-Pode ser aqui, à porta, por volta da 19,30!
Senti tudo a saltar dentro de mim, estendi a mão:
-Combinado!
******
As coisas acontecem, nada é por acaso, tudo deve estar escrito num livro do
destino.
Tenho 34 anos, da vida pouco ou nada recebi, de repente, numa altura de crise,
arranjo um bom emprego. Sem falsa modéstia, sei que sou bom na minha área mas
isso, nem sempre é importante, Para completar, este virar de página, caiu na
minha vida uma mulher que me completa.
Tem
tudo o que mais tenho procurado desde sempre, é linda, carinhosa, inteligente,
sabe falar no momento certo e escutar como ninguém.
Podia ter começado no jantar, mas não, julgo que foi logo no primeiro olhar,
num momento de magia onde os nossos corações viram mais longe que os nossos
olhos.
Foi um namoro curto, dois meses, depois já vivíamos juntos, passado um ano
resolvemos casar, não era importante, mas o pai da Luísa sonhava levar a filha
ao altar, antes de morrer.
Foi um casamento simples, a família dela, eu já não tenho família, e alguns dos
nossos amigos mais próximos. Mas foi lindo e maravilhoso ouvir o SIM, e tão
mágico o olhar feliz da Luísa quando o proferiu.
Estamos casados há, quase, dois anos e cada dia tem parecido o primeiro.
Pensámos em filhos mas, por opção, resolvemos esperar mais algum tempo. Luísa
tem andado muito frágil, o olhar continua a ser o mesmo, mas noto que há
esforço para o manter.
Comecei
a ficar apreensivo, será que já não sente por mim o mesmo? Não pode ser, era
impossível fingir, o nosso amor é completo. Trabalha muito e o cansaço é o responsável,
vou propor umas férias, uns dias só para nós, num lugar tranquilo, talvez no
campo.
Foi ao primeiro almoço que sugeri:
-Amor! Porque não tiramos uns dias de férias e vamos para um lugar, calmo e
sossegado, retemperar forças? Tu precisas muito, tenho notado o teu cansaço.
Sabes que até penso que já não és feliz comigo!
Olhou-me com tanta ternura que os olhos pareceram ter o brilho que ultimamente
tinham perdido, deu uma pequena gargalhada antes de responder:
-És mesmo tonto, tu és a minha vida, sem ti não existo. Gosto dessa ideia de
umas férias, vou falar com mister Larsson e vamos. Preciso muito, a minha
cabeça dói o dia inteiro e, nunca tinha dito, por momentos perco um pouco a
visão, são flashes mas preocupam-me!
Encostei-a ao meu peito e senti como estava frágil, tentei parecer tranquilo:
-Vamos fazer as férias depois, mas agora mesmo vamos ao hospital, falamos com o
doutor Salema e ele vai tratar de ti. As férias esperam, primeiro a saúde.
Ainda
tentou argumentar:
-Mas querido, na Companhia, precisam de mim.
Afaguei-lhe
o rosto enquanto a tranquilizava:
-Não
penses no trabalho, eu trato disso.
Felizmente o doutor Salema estava de serviço, ouviu, muita atentamente a Luiza,
perguntou se, além das dores da cabeça, das perdas de visão se tinha também
náuseas e problemas com leitura.
-Tenho, respondeu, agora que fala nisso lembro-me de uma certa descoordenação
com a leitura, pensei que seria das perdas de visão momentâneas e da possível
falta de uns óculos.
Náuseas não e ainda bem! Às tantas pensava que estava grávida!
O médico franziu a testa, Luísa não reparou mas, eu fiquei muito apreensivo.
O doutor Salema acabou de escrever. Depois, continuou de modo muito
profissional:
-Eduardo preciso que a Luísa faça uma Ressonância. Eu vou tratar disso e depois
telefono. Tens o mesmo número?
Apenas abanei, afirmativamente, a cabeça.
Saímos sem soltar uma palavra, não sabia o que dizer. Foi ela que quebrou o silêncio:
-Desculpa amor, não te queria preocupar!
Apertei-a contra mim, sustive o soluço, mas as minhas palavras disfarçaram o
que eu sentia:
-Não penses nisso, não vai ser nada, apenas um susto para recordarmos quando
estivermos velhinhos.
Senti o
sorriso e as palavras:
-Sabes,
amor, não tenho medo de morrer mas não quero pensar que te posso perder.
*****
O doutor telefonou, tinha tudo tratado, era preciso estar amanhã cedo no
hospital.
Luísa não estava com muita vontade, julgo que era receio do que pudesse estar
por detrás. Ainda tentou:
-Amor, achas que vale a pena tudo isto? Penso que duas semanas de férias, os
dois, sozinhos era o melhor, tu és a minha cura e a tua companhia é o meu
remédio.
Dei-lhe um beijo, puxei-a contra o meu peito, anichou-se como tanto gostava.
Olhei de frente nos olhos antes de lhe perguntar:
-Onde
está a mulher que eu amo tanto? Onde está a Luísa lutadora? Vamos tratar de ti,
depois fazemos as nossas férias no nosso lugar secreto. Vá vamos à luta, minha
princesa!
*******
Foi tudo tão rápido que nem deu tempo para me preparar e, o doutor Salema foi,
penso, demasiado directo:
-A Luísa
tem um tumor no cérebro, que designamos por Glioma, têm já algumas metástases.
Vamos cuidar dela, um tratamento multidisciplinar, uma acção conjunta de
neurocirurgião, um radioterapeuta e eu como oncologista.
Vamos tratar do internamento, não pudemos perder tempo.
Depois olhou-me, apertou-me o ombro e disse-me baixinho:
-Se
sabes rezar pede por ela, se não sabes chegou a altura de aprenderes.
*********
Foram tempos difíceis, Luísa foi enorme na coragem, foi ela que alimentou a
minha.
Pegava na minha mão com tanto carinho, encostava a cabeça no meu ombro, tinha
perdido os cabelos, mas nunca ouvi um queixume.
Hoje estava mais sensível, pareceu-me ver alguma tristeza e notei que estava a
ganhar coragem para falar:
-Sabes, Eduardo, eu sei que o fim se aproxima, não te preocupes, estou
preparada. Fui a mulher mais feliz, Deus deu-me o homem mais maravilhoso que
alguma mulher pode desejar. Não foi muito tempo eu queria mais, mas foram
quatro maravilhosos anos.
Não quero que sofras por mim, eu vou estar bem, mas com muitas saudades, se é
que as saudades são permitidas nesse lugar para onde vamos. Não quero ser
cremada, não deixes que me façam isso.
Ela sentiu as minhas lágrimas, não as consegui conter. Enxugou-me, com as mãos
os olhos, deu-me um beijo:
-Amor não quero partir com esta imagem, quero levar no pensamento o homem
especial que me amou, tenho a certeza disso. Vamos deitar, estou cansada e
amanhã é um dia daquele tratamento doloroso.
*****
Foi fazer a quimioterapia mas estava tão fraca que os médicos acharam que era
melhor ficar internada. Tentei animar mas as palavras soaram-me a falso, bem
tentava mostrar calma e confiança, mas apenas consegui dizer:
-Querida é melhor, ficas e os médicos vão ajudar. Vou estar contigo todo o
tempo que me deixarem e, amanhã, serei o primeiro, aqui, ao pé da minha mulher!
Os
olhos não brilhavam da mesma maneira, notava muita conformação e, eu, não
queria isso.
-Sabes,
minha querida, que preciso muito de ti, és a minha vida, quero que reajas e que
acredites. Sabes que sou agnóstico mas, hoje aqui, juro que quando voltares
curada, para nossa casa, vou a pé a Fátima.
Notei-lhe os olhos húmidos, a sua mão apertou com mais força a minha, deu um
sorriso e com voz cansada, deixou quase como num murmúrio:
-Não vais só, vou contigo, vamos os dois agradecer!
-Agora tem que sair, disse-me a enfermeira. A senhora vai dormir, tomou um
calmante, precisa descansar.
Saí, não sabia para onde ir, nem o que fazer. Entrei numa Igreja, não sei
rezar, mas pedi com tanta fé e sinceridade que, acredito, se houver alguém para
me ouvir vai ajudar.
***********
Fui, como prometi, o primeiro. Quando me viu os olhos brilharam como há muito
não via.
Estendeu-me os dois braços e pediu:
-Dá-me um abraço, preciso tanto de sentir o teu corpo.
Abraçamo-nos
com tanto amor.
-Sabes
querido, disse Luísa, hoje sinto-me melhor. Tinhas razão ficar aqui ajudou, os
médicos têm sido tão queridos. Talvez Deus, ainda, nos possa ajudar!
A
enfermeira interrompeu o nosso enlevo:
-Tenho
pena de estorvar este momento, mas tenho que a levar para o tratamento. Vai
demorar é melhor o senhor voltar ao fim do dia.
Voltei às seis horas, não me deixaram entrar, disseram que ela precisava
descansar e a minha presença a iria deixar mais agitada e não era bom.
*******
Fui,
outra vez à Igreja, precisava acreditar, necessitava da esperança.
Fiz as minhas próprias preces, pedi que aceitassem a minha vida em troca
daquele que sentia fugir. Afinal, sem ela, a minha existência não fazia
sentido.
Levantei-me muito cedo, aliás, não consegui dormir, era impossível dormir
naquela cama vazia, nos pensamentos que queria rejeitar mas de que não me
conseguia libertar.
Só às
onze me deixavam fazer a visita, ia tentar arrumar algumas coisas que andavam
dispersas pela casa.
O telefone
tocou, olhei o relógio, quem seria às oito horas, algum engano, mas fui
atender:
-Bom
dia, diga por favor!
********
Luísa tinha morrido nesta madrugada.
-Morreu, disse-me o doutor Salema, com muita dignidade.
Não me aguentei, foi mais forte do eu. Chorei toda a dor, toda a mágoa,
reneguei aquele Deus que apenas fingiu ouvir mas nada fez.
Se
pedisse para mim eu compreendia, não mereço, mas a Luísa porque?
Sim
porque? Foi para castigar a minha descrença? Se foi conseguiu!
Não queriam que eu visse o cadáver, mas quem me ia impedir, era a minha mulher
e tinha que me despedir.
Mesmo sem o cabelo, que emoldurava a doçura daquele rosto pálido, sem o brilho
daqueles olhos que me prendiam, continuava linda e tão suave e serena que
pensei que apenas dormia e, não tardava ia acordar.
Teve o funeral como desejava, numa campa rasa com os amigos de quem gostava.
*******
Faz hoje 15 dias que me deixou.
A minha vida foi com a dela, sinto a sua presença, mas é só o meu pensamento,
ela já está muito longe.
Não consigo aguentar a solidão, os nossos amigos tentam, mas nada mais pode ser
igual.
Não sei como é, ou se há outra vida, onde possamos continuar do ponto onde
ficamos.
É muito difícil! Não posso, nem quero, continuar assim, vou ter com o meu amor.
Vou escrever, ao Diogo, uma carta simples, sem muitas explicações, apenas para
saberem que vou ter com o meu amor, sei que ela me vem buscar, sinto a sua
presença.
*******
Sou o Diogo e nenhum de vós me conhece.
Fui o maior amigo do Eduardo e, como é normal, também da Luísa. Acompanhei o
amor que os uniu e sofri, com eles, todo o amargura que, de forma tão trágica
terminou.
Hoje estou aqui a cumprir o desejo do Eduardo.
Faz um ano que o meu amigo desapareceu, sem rastro, sem qualquer pista. Foi
como se tivesse evaporado.
Pois, como disse, o carteiro entregou-me, faz hoje um ano, deixo-a aqui para
todos, tirarem as devidas ilações:
Amigo
Diogo
Não sei como começar, é difícil esta espécie de despedida e este pedido que te
deixo, mas és o único capaz de o fazer.
Sei,
porque te conheço, que vais aguardar um ano para rasgares este envelope, para saberes
o que sempre, tenho essa convicção, esteve no teu pensamento.
A Luísa precisava de mim e, eu não saberia estar longe dela, por isso, voltámos
a juntar os nossos destinos para todo o sempre,
Vamos
ser felizes na eternidade!
Vais
sentir a minha falta, terás que arranjar outra companhia para ires a Alvalade, porque
eu, deixei de ter interesse pelas coisas terrestres.
Adeus, amigo, a Luísa já não tarde, vem aqui para me levar.
Deixa
passar um ano, depois podes dar a conhecer, se assim o entenderes, estas
palavras que te deixo.
Até
sempre amigo, ou até um dia, quem sabe!
Eduardo