terça-feira, 27 de maio de 2014

Devaneios
































Era apenas uma pequena nesga, quase despercebida entre duas enormes dunas, que pareciam borbulhar com a brisa que lhes agitava a areia mas talvez, mais, a minha imaginação do que a minha vista parecia enxergar um vasto oceano. Muito calmo, de um azul que cintilava pintalgado de reflexos de um sol intenso.

Não tinha a certeza, mas os meus sentidos pintavam, no meu pensamento, essa brecha de desejo e vontade. 

Perguntei aos outros, não tinham a certeza, eu estava com miragens, talvez houvesse qualquer coisa mas mar era impossível.
 Os oito camelos, aliás dromedários, faziam trejeitos com a boca mastigando uma baba, peganhenta,  com a cabeça muito levantada como, tal como eu, estivessem a tentar descobrir a tal língua de mar que habitava nos meus olhos. Talvez fosse, como diziam os outros, a minha imaginação a desejar outra imensidão, para além do deserto, mas era fantasia a mais, pois eu sentia o cheiro, o murmúrio e a espuma branca das ondas a desfazerem-se.

A noite é serena e fria, o céu é uma explosão de estrelas, tão brilhantes e intensas que nos deixam num êxtase, numa espécie de boca aberta de admiração.

Agora o resto não existe, o mar que adivinho,  a areia que se perde no horizonte dos nossos olhos, os dromedários que ruminam no escuro e, até, o calor que nos cobre a pele numa viscosidade, desconfortável, deixaram de existir, ficaram insignificantes perante a imensidão de astros que tomaram conta do tempo.

Sinto-me pequeno e só numa redoma, de vidro pintada, de um miríades de pontos que brilham ou cintilam intensamente.
Adormeci no arrebatamento.

Manhã cedo, ainda o Sol não aquecia  e começava o regresso. Ainda espreitei a nesga, que estava ligeiramente modificada e, juro que estava lá, talvez só no meu pensamento, mas estava.

Galgamos quilómetros, o deserto era uma enorme mancha que ia desaparecendo num horizonte longínquo. Paramos, antes do Parque, numa espécie de restaurante onde nada abundava, nem uma simples cerveja, ficamos por umas coca-cola e uns Kefts, espécie de almondegas muito aromatizadas, enquanto os ''rabos'' descansavam das sequelas dos balanços.

Muito agradável o acolhimento e a simpatia, pagamos o preço sensacional de 53 dirhans (cerca de 5,30 Euros).

O Parque de campismo era pior de tudo o que podíamos imaginar, o espaço era agradável, mesmo com as ovelhas a passear no meio dos campistas, mas a higiene dos sanitários fazia fugir qualquer um. Indescritível!


A nossa salvação foi a auto-caravana, que tinha todas as condições.

Partimos cedo, a semi-aventura estava a chegar ao fim.


Quando entramos no barco, um pouco de nós, continuava naquela terra, na mistura de berbere, francês, espanhol, de gestos e de uma simpatia imensa.

Um dia volto.

Prometo!



(Escrito em 13 de Maio - Khouribga - Marrocos)



segunda-feira, 19 de maio de 2014

Pinceladas







O cão estava desinquieto, cabeça no ar e, de vez em quando, acoitava-se espreitando por baixo das caravanas enxergando algo que só, mesmo, ele lobrigava.

Umas vezes, eram os gatos vadios que  se colavam aos muros, outras  as rolas que, entre uns “curucucus”, vão debicando os pequenos nadas de que se apercebem, ou os melros que em voos, desafiantes, passam num risco de asa e desaparecem por entre a folhagem de alguns pinheiros.

O calor é muito, as pessoas refugiam-se nas manchas das sombras das árvores percorrendo as paginas que, timidamente, a Internet deixa chegar, outros fecham os olhos e deixam embalar os pensamentos, numa espécie de modorra, que os possuem numa pachorrenta suavidade.

Muito raramente uma brisa, quente como o Sol, tenta amenizar o efeito mas é tão ténue e ligeira que, quando nos apercebemos, já passou sem mitigar um pouco a escalmorreira que nos abafa.

Estou debaixo de uma espécie de laranjeira brava, assim me parece, que me conforta com a sombra aconchegante, embora o meu desconforto e desassossegado, na cadeira, esteja a quebrar a quietude que encontrei.

Peguei no IPad e tentei tornar real a surrealidade deste quadro mas a inspiração, tal como o dia, deixa embotar as ideias e, uma espécie de letargia convida mais a uma sesta que a devaneios sobre o tempo, as aves, as sombras e até sobre o impaciente cão que sonha em voar para partir, com as rolas, ou compartilhar os ziguezagues dos melros negros onde umas pinceladas de amarelo, nas patas, quebram a monotonia desse luto eterno.

Finalmente o Sol encontrou o horizonte e deixou-se banhar nas águas distantes de um oceano de areia.

O calor, agora, foi enxotado por um vento que vai arrefecendo os corpos.

Ao longe descortino um Saará, a quem o sol vai dando os últimos retoques de um estranho dourado.

É o deserto que se vai escondendo nas sombras da noite.


(Escrito em 8 de Maio 2014 em Mirleft-Marrocos)