domingo, 27 de julho de 2014

A casa das Açucenas







Amanhã, finalmente, acabam os oito longos anos que passei nesta prisão. Vou, novamente, sentir no rosto a chuva miudinha que faz lá fora, vou ser, outra vez, gente por entre as gentes, vou finalmente ser LIVRE.

Fui acusado e condenado por um crime que não cometi, fui vítima de um erro da justiça mas, eu era o elo mais fraco.

Foram oito anos de angústia e de raiva. De angústia porque me acusaram de ser o assassino da mulher que, depois da minha mãe, mais amei. Era o meu Sol, a minha existência a minha outra metade.
Aquecia-me o coração, dava sentido à minha vida.

Um dia, que quero esquecer, encontraram o corpo barbaramente esfaqueado, numa posição grotesca nas traseiras da sua casa.

De raiva pela vingança que tardava!

****

Eu tinha uma pequena oficina de reparações de automóveis, era toda a fonte dos meus rendimentos e, confesso, não tinha razão de queixa o negócio corria bem.
Um dia, estava já a lavar as mãos para os preparativos do fecho, quando ela entrou, com ar de aflição e com voz quase chorosa pediu:

-Preciso de ajuda, o meu carro parou mesmo aqui ao pé e por nada deste mundo quer pegar, estou aflita moro mesma no fim da estrada e ainda são 8 quilómetros.

Era uma mulher muito interessante, não propriamente bonita, mas tinha um encanto especial. Não sei se o olhar gaiato ou a graciosidade  da figura frágil mas, ao mesmo tempo, determinada.

Fui ver o carro e não havia dúvidas, tinha um problema no injector, coisa simples, mas impossível de arranjar no momento.

-Sabe, disse eu, duas noticiais uma boa, a avaria não é grave outra menos boa, só amanhã pode ser arranjado, precisa uma peça da marca.

Mostrou algum desalento antes de responder:

-Pode rebocar o carro para a sua oficina, arranjar e eu amanhã invento maneira de o vir buscar?

-Certo, respondi, amanhã ai por volta das cinco temos carro. E tem alguém que a possa vir buscar agora?

Com um sorriso lindo respondeu:

-São oito quilómetros, devo aguentar, vou a pé.

-Nem pense, disse eu, é muito e a estrada é perigosa. Se quiser esperar, 15 minutos, eu deixo-a onde quiser, afinal vou para esses lados.

-Agradeço muito, disse Clarice!

Levei-a à porta, despediu-se com um muito obrigado. Deu-me o contacto do telefone para avisar quando o carro estivesse pronto.

***
Foi assim que nos conhecemos!

Nunca tivemos uma relação, apenas amizade. Íamos ao cinema, almoçávamos e jantávamos juntos muitas vezes, chegamos mesmo a ir à praia, Clarice sempre insistiu que era apenas amizade e o prazer de estar com alguém que a entendia, não lhe pedia nada em troca e, lhe dava espaço, sem a sufocar.

Para mim era um pouco mais difícil, deixei-me levar pelos sentimentos e estava totalmente apaixonada, vivia o ar que ela respirava, bebia as palavras que me deixava, morava nos olhares, nos momentos e na esperança.

*****

Foi num sábado, num dia que prometia ser mágico, estávamos num café próximo da sua casa quando me atrevi:
-Clarice! Penso que chegou a altura de assumirmos que a nossa relação é mais do que amizade, eu amo-te e não consigo continuar neste faz de conta!

Não esperava a reacção, não lhe conhecia esta faceta, levantou-se e colocou as mãos da mesa, aproximou o seu rosto do meu e gritou:

-Afinal és igual aos outros!

Deu meia volta e desapareceu porta fora.

******


Só quando dois agentes me forem deter, fiquei a saber da tragédia, tinham assassinado a minha Clarisse, tinham tirado sentido à minha vida.

Clamei a minha inocência, jurei, chorei e sofri mas, tudo apontava para mim, não tinha álibi e havia testemunhas a afirmar que tínhamos discutido no café, Deus sabe que não discutimos  apenas, ela, me deixou pendurado na mesa de uma esplanada.

De nada valeu, fui condenado, disse o juiz, apenas a oito anos porque não havia provas materiais.

Faz amanhã 3.100 dias que alguém, que eu vou descobrir, me roubou o amor da minha vida.

*****

Fui visitar o local, a casa estava na mesma, só a pintura um pouco desbotada e todas as janelas fechadas. Apenas os canteiros à volta se encontram arranjados.  Alguém a deve habitar!

Na pequena mercearia, quase paredes meias, fui perguntar quem habitava a casa.

-A casa que era da Clarisse! Exclamou a mulher. Ninguém, ninguém a quer, bem tentaram vender mas casa assombrada ninguém compra!

-Assombrada? Mas assombrada como? Perguntei.

A mulher olhou-me um pouco agastada, mas respondeu:

-De noite luzes que acendem e apagam, coisas que arrastam. Os canteiros, ninguém os arranja, vá ver com eles estão!

Agradeci e fui-me sentar, numa pedra, junto à casa a pensar no que foi e no que podia ter sido a minha, nossa, vida.

Nos passeios à beira-mar, nas tardes no cinema com as lagrimas de Clarice nas cenas mais românticas. Pensei nos jantares, onde por vezes nos esquecíamos de comer, pois tanto tínhamos para dizer.

Fiquei esquecido do tempo e a noite, quase, de repente encheu o espaço. Queria ir embora mas havia um fascínio que me prendia, não sei se o ténue odor que me impregnava os sentidos se a musica, quase inaudível, que me embalava os pensamentos.

De repente, como projecção, Clarice apareceu mais bela o que nunca, a mesma figura mas um pouco mais frágil, os mesmos olhos mas sem o brilho que eu conhecera.

Senti um frio imenso, começava no alto da cabeça e descia em espirais, que me iam paralisando e me deixavam num torpor doce e suave. A custo balbuciei:

-Meu amor afinal estas viva!

A voz era suave, quase um eco distante:

-Já não  sou o teu amor, estive à tua espera para me despedir e pedir perdão pelas minhas últimas palavras. Perdoa-me para poder partir tranquila!

Fiquei sem resposta, quis falar mas um nó na garganta apenas deixou um suave pedido:

-Clarice eu é que te peço perdão diz-me só quem te fez mal?

Pareceu-me ver, outra vez, o olhar ladino.

-Já não sou Clarice e  não há nada a fazer, já perdoei a quem me fez mal. Agora… vou tranquila!

Vai, vive a tua vida, eu espero por ti.

Sai dali em passos ébrios, não sei se sonhei ou se aconteceu mesmo.

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Voltei passado um ano, a casa estava reconstruida, já não era a casa assombrada, canteiros de lindas açucenas davam-lhe um novo nome.






terça-feira, 15 de julho de 2014

Pergaminhos







Já confunde a idade, pois os anos passados têm-lhe desgastado o corpo e a memória.

Olhos fundos e encovados têm um brilho de memórias, encerradas, num cérebro gasto pelos anos decorridos.

Na cadeira do lar, olha um infinito de reminiscência e recordações e sorri, com um sorriso desdentado.

Olha em volta e fita um longínquo horizonte, de lembranças, que o tempo vai apagando. As mãos, pergaminhos de seda, entrelaçam-se em gestos delicados.

Fala, com voz suave e pausada, de coisas da vida, coisas de um passado, distante, que guarda e que vive.

Esquece o momento, baralha as refeições, não sabe o agora, mas tem presente um tempo afastado, de recordações, que baralha ao sabor das suas fantasias.

Sente-se como, quando a mãe lhe arranjava as tranças, e o pai, pela mão, a levava a ver o circo montado no Largo da Igreja.

Sabia que era a rapariga mais bonita nos bailes da aldeia.

Lembra o dia do casamento, brilhando nova, num velho vestido de noiva que já fora da mãe.

Lembra os momentos em que os filhos nasceram, como cresceram e como um dia abalaram.

Tem, no pensamento, as desventuras de uma vida difícil, amargurada mas cheia de recordações, que alimentam uma velhice que se vai diluindo nos intermináveis dias de um lar.

Foi uma princesa, quiçá uma rainha.

Teve brilho nos olhos e na pele, rosada, a maciez do pêssego.

Foi invejada por muitas mulheres, muitos homens a olharam com admiração.

Agora, como vela bruxuleante, vai-se apagando lentamente, dia a dia.

Na boca, desdentada, o sorriso velho, e apagado, vai iluminando o que resta de uma vida longa e desgastada. 

Mas sorri, sorri sempre como se o amanhã fosse eterno.


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quinta-feira, 3 de julho de 2014

Mulheres!











Juro que não aguentei mais, alcei a mão e espetei-lhe um bofetão, nas ventas, que o deixei a ouvir o pipilar de milhentos passarinhos.

Sabem que eu tentei aguentar, fiz mesmo esforço e, quantas vezes mudei o caminho, para não me cruzar com o bandalho.

Mas hoje o tipo passou, com andar gingão, quase provocador, foi a gota. 

Ainda tentou levantar-se e tirar desforço mas, o bico da  bota, deixou-o a sonhar por muito tempo.

Já fomos amigos, mais propriamente, quase família, porque amizade é algo de diferente.

Ele é, ou era, casado com a minha irmã Matilde, que devido aos maus tratos e não querendo denunciar o canalha, pegou na filha e desapareceu sem dizer nada, nem ao próprio irmão. Teve receio, não sabia que ia estar, aqui, do seu lado, que a iria proteger com a própria vida.

Agora ela, e a minha sobrinha, está sabe Deus onde! Tudo, por causa de brutamontes que a enganou, com falinhas mansas, até casar.

Depois começaram os maus tratos, agressões físicas e psicológicas. Os vizinhos bem me alertaram, mas ela negava sempre, o medo tolhia-lhe a fala.

Comecei a guerra, não ia dar paz aquele sujeito, chegou a hora de evitar cruzar-se no meu caminho, porque eu, juro, que dou fim à sua vida.


Hoje, de manhã muito cedo, dois polícias bateram à minha porta, mostraram-me um papel, que não cheguei a ler, e com voz simpática pediram para os acompanhar à esquadra.

Mas, perguntei:

-Acusado do quê?

O mais alto dos polícias, respondeu:

-Está aqui no mandato, mas é acusado de agressão a um indivíduo do sexo masculino. Está no hospital, com o nariz e duas costelas fracturadas. Será que não se lembra?

Já sabia, aquele bastardo ficou marcado. Ainda bem, não se iria esquecer nunca mais!

Passei a noite na esquadra, na manhã seguinte mandaram-me em paz, não foi muito grave, a vítima, como eles diziam, não apresentou queixa, só tinha que pagar, possivelmente,  a conta do hospital.

Sou um pouco impulsivo, nada de violento, apenas me deixo levar pelas emoções. 

Não estou arrependido, ele merecia, só que talvez, tenha abusado um pouco da minha força.

Ando na dúvida, não sei se devo ir ao hospital, afinal é o pai da minha sobrinha, ou esperar que o tempo passe e confiar que tenha aprendido, duma vez por todas, a lição.

No fundo, eu, até sou um coração mole. Capaz de partir a louça toda e no momento seguinte estar, totalmente, arrependido.

Vou, mesmo, ao hospital saber como está o gajo, no fim acabo por ser eu a pagar a estadia!

A menina da recepção, pelo nome, informou-me que já tinha saído, o médico deu-lhe alta.

Parece que não foi assim tão grave, só ficou uma noite e um dia.
Penso que, no fundo, até fui meigo devia ter-lhe amachucado o canastro mais um pouco.

Vou lá a casa, vou ver se o traste precisa de alguma coisa.

Quando toquei, à campainha, estranhei o resfolgar de uns passos de criança a correr no corredor, ouvi igualmente, a voz da Matilde a gritar:

-Espera Ritinha, não abras sem a mãe ver quem é!

Espreitou e abriu a porta, com maus modos, foi dizendo:

-Que queres desgraçado? Vens acabar a tua obra? Desaparece que eu trato do meu marido!

Fiquei sem saber o que fazer, não queria acreditar, só lhe consegui dizer:

-Posso dar um beijo na minha sobrinha?

Sem, sequer, me olhar respondeu:

-Dá e desaparece!

Mulheres!

Nunca as vou compreender!