Esta é a primeira
parte de um conto, demasiado grande para um Blogue, vou publicar por fases. Possivelmente
poucos o vão ler e eu compreendo!
Julgo
que era uma sexta-feira mas, passou tanto tempo que é difícil
garantir.
Um
dia ainda vou procurar, num Google qualquer, há sempre alguém que sabe dessas
coisas. Mas para o caso pouco importa, só sei que era um fim de dia, frio e
chuvoso.
As
pessoas passavam,
na rua, apressadas e encolhidos debaixo de enormes guarda-chuvas que o vento
tentava, furiosamente, virar.
O homem entrou em casa, sacudindo a água que lhe ensopava a roupa, mas um pouco incomodado com o reboliço que veio encontrar.
Mulheres
numa azáfama a que não estava habituado. Cafeteiras de agua quente, toalhas e
lençóis empilhados numa cadeira como se alguém se tivesse esquecido de os
arrumar.
Não
se conteve, não era capaz tinha que mostrar, sempre, algum desagrado:
-Mas
que raio de confusão vai nesta casa e será que não tem nada que fazer nas
vossas?
A
mulher mais velha, que parecia chefiar a confusão,
ajeitou o lenço na cabeça e respondeu de maus modos:
-Ou
se senta ai muito sossegado, ou volta para a chuva e volta daqui a umas horas. A sua mulher entrou em trabalho de parto e
aquilo que menos precisamos é de maus modos.
De repente pareceu que todo o silêncio do mundo se quedou naquela casa. O homem ajeitou as pernas altas e desajeitadas, numa cadeira de buinho, com as mãos a cobrir-lhe o rosto, ninguém percebeu se por vergonha ou ansiedade.
As
mulheres desapareceram no quarto, o reboliço era enorme e, alguns gritos, se sobrepunham a algazarra que se
tinha apoderado daquele momento.
De
repente caiu o silêncio, um choro tímido tomou conta do sossego e entoou como
se não fizesse parte do cenário. A mulher, a que parecia coordenar as
operações, sobressaiu aos tímidos vagidos e gritou:
-É um rapaz, um belo rapagão.
O
homem continuou na posição a que se tinha remetido, parecia estar alheado ou
como se nada de bom tivesse acontecido.
****
Foi
um pequeno momento, quase um instante,
mas foi o princípio de um longo caminho, foi o começo de algo que atravessou os
anos como se fosse natural.
**
O
Inverso foi mais rigoroso que o normal, o vento fustigava com violência e a
chuva infiltrava-se pelas desalinhadas telhas,
fazendo regos de humidade nas encardidas paredes do quarto. O rapaz ia
crescendo mas não se notava felicidade, tinha um olhar carregado e nunca
aprendeu a sorrir, as pessoas bem tentavam aquelas aparvoadas habituais Mas o
bico, do beiço da criança, mantinha sempre um taciturnismo que os olhos
espelhavam como reflexo de uma alma.
O
tempo não tem contemplação e é impiedoso na sua marcha e, de repente, a criança
que nunca tal se sentiu era o rapaz, apenas o rapaz, não se lembra de ter sido
chamado de outra forma, era o rapaz, menino nunca foi.
Brincou,
brincou muito, com os brinquedos que a imaginação lhe oferecia.
Dos
outros nunca teve, mas as fantasias criavam os melhores e mais sofisticados
jogos e divertimentos, muitos mesmo antes de serem descobertos.
***
Chegou
o momento, a escola iria fazer parte de uma nova vida que não pediu mas que lhe
estava destinada. Os outros rapazes estavam, tal como ele, receosos do que
estava para vir, uma professora que os olhou do alto de um estrado, descansou-os com a tranquilidade das palavras e com doçura na
voz.
-Todos
sentados! Vamos começar a estudar coisas novas,
vamos aprender a ler e a escrever.
O
rapaz, que agora passou a ter um nome e um número, começou a ter medo.
Não
era a senhora professora, até gostava dela. Não eram os outros meninos, sabia
subsistir.
Tinha
medo do que estava para vir, todos tinham uma mala, livros, uma pedra,
cadernos, lápis e borracha, ele tinha um taleigo feito de pano-cru, um caderno e um lápis Viarco, que o
senhor Domingos lhe tinha oferecido.
********
O
dia prometia chuva, aquelas nuvens que se levantavam, no horizonte, eram pronuncio de borrasca.
***
Hoje
fazia 14 anos, não era que alguém se preocupasse, pois além daquele postal que
recebia da avó, era sempre igual,
um rapaz bem arranjinho fazendo uma, espécie de, serenata a uma beleza num alpendre emoldurado, de rosas vermelhas, letras bem
desenhadas numa caligrafia antiga, com a
mesma frase do ano passado e do outro e, decerto, de todos os anteriores.
Era
o único sinal, mas tão importante que ainda hoje, passados todos estes anos,
neste dia, sente saudades daquele postal colorido, daquele pequeno, mas enorme,
pedaço de amor.
*****
As
nuvens não enganaram, o vento apoderou-se do espaço e o céu abriu as comportas.
A chuva, impiedosa, começou a tornar as ruas em verdadeiras ribeiras, com a
água a saltar, em verdadeiras cascatas, no empedrado das calçadas. Era cedo, poucas pessoas se atreviam
a enfrentar o dia, apenas alguns, mais afoitos, se encaminhavam para os seus
afazeres.
Tinha
prometido que seria
hoje, dia dos 14 anos, pois mais facilmente ficaria na memória.
O
tempo não queria ser cúmplice, a força da chuva era um estorvo, a roupa não era
muita e capa para a chuva nunca teve. Se, como imaginara, se metesse a estrada
apenas iria arranjar uma valente constipação e, possivelmente, mais um castigo.
Passou
a manhã á janela na esperança de um milagre, mas não via o momento de um raio de
sol a quebrar este diluvio.
*******
Acabou
a quarta classe com distinção e
a professora mandou, para casa
num caderno, um recado a pedir a presença do
encarregado da educação, foi um dos maiores sustos da sua vida, não via motivos
pois sempre seguiu e cumpriu todas as regras, mas a mente dos adultos era cheia
de ideias difíceis de perceber.
Afinal
foi apenas uma miragem da senhora professora, se lhe tivesse contado ele logo
lhe diria que era tempo perdido, ele não tinha nascido voltado para a lua.
Ainda
hoje, vão passados mais de 4 anos, se lembra do diálogo:
-Pedi
para falar convosco, pois o moço tem qualidades e capacidade para ir longe, é o
melhor aluno que alguma vez me passou pelas mãos, inteligente, de raciocino
acima do normal, muito interessado em saber e conhecer, podia e devia continuar
a estudar. Até podíamos falar com o padre Severino ele conhece muita gente e
quem sabe se não lhe arranjava um lugar no seminário. No seminário, nem sempre vão para padre, um dia podem sair e levam boas bases
para continuarem na vida.
Primeiro
veio um silêncio que doía, uma lágrima nos olhos de uma mãe que apenas sabia
obedecer, uns olhares agastados e muito, mas mesmo muito, desconforto, depois a resposta ríspida e cortante:
-Eu
não tive nada disso e nunca precisei,
o rapaz fica cá e vai trabalhar, o trabalho é o maior estudo que uma pessoa
pode ter.
Nem
se despediram e, ainda bem, não olharam para os olhos de uma criança onde
enormes lagrimas faziam esforço para não saltarem.
*******
Ninguém
lhe perguntou
nada, como não o consultaram para nascer também não perguntaram se queira ser
abegão e foi isso que escolheram. Abegão é uma profissão com futuro, diziam. Agora
que os automóveis começavam a ser vulgares, construtor de carroças era uma
profissão com futuro? Que ideias!
Passava
os dias a varrer a serradura que, o mestre, ia largando no constante aplainar de tabuas, ou raspando o sebo negro, que pingava das rodas, para evitar aquela chiadeira que irritava quem tinha que a
escutar.
Não
aprendia nada, pois mesmo o varrer ninguém lho ensinou, apenas lhe meteram uma
vassoura artesanal nas mãos e o mandaram varrer. Era triste ser aprendiz de abegão,
contra vontade, e acabar em ser o apanhador do lixo que os outros faziam.
Hoje,
ao fim do dia, fazia 14 anos e ia dar, finalmente, o rumo que desejava para a
sua vida. Tinha reunido, numa bolsa de lona, os parcos haveres e o pouco
dinheiro que foi amealhando ao longo destes quatro anos, não era muito pois o
que lhe iam dando eram as poucas moedas dos trocos dos vizinhos que o
encarregavam de pequenos serviços. Ah!
Ia esquecendo, e uma moeda de um tostão, brilhante
como se tivesse sido acabada de fazer.
Fazia
parte da fortuna mas essa não a queria gastar, tinha um significado e, ao mesmo
tempo, era um símbolo pois foi a única prenda de Natal que, o simpático menino Jesus,
um dia lhe deixou na alpargata, sim foi o menino Jesus, acho que nessa altura o
Pai Natal ainda não era nascido.
Tinha
tudo pensado, ia até à fábrica do papel, julgo que lhe chamavam Fabrica das Celuloses,
mas isso não interessa, para o caso, o que precisa é entrar na zona onde
carregam os rolos e tentar esconder-se no meio da confusão e ficar quieto até
chegar à cidade. Não se podia esquecer do cantil com água, não era porque
bebesse muito mas, quando não temos as coisas é que nos lembramos dela.
Programou para hoje, quarta-feira, mas o dia não deixava, a chuva foi
impiedosa e o vento foi cúmplice dessas forças da natureza.
Tinha
que adiar uma semana, não seria dia de aniversário, mas era quarta-feira e só
podia ser nesse dia, era o único em que a abegoaria estava fechada, o mestre
Crispim não trabalhava à quarta e ao domingo. «Porque?» nunca cheguei a saber.
Alguns rapazes mais velhos diziam que ia ter com uma amante. Mas era o que diziam.
********
Foi
mais fácil do que pensava, a azáfama era tanta que ninguém reparou num rapaz, com uma bolsa a tiracolo, que calmamente ia observando como se apenas tivesse interessado em ver camiões de três rodados.
Os
homens olharam, mas sem interesse, uns pensavam que o rapaz seria filho de um
deles, era comum aparecerem filhos de colegas a olhar esta confusão do carrega
e descarrega.
O
problema, agora, era entrar para debaixo duma daquelas lonas e não ficar
entalado num enorme rolo de papel, estavam demasiados encostados e se algum
deslizasse ficava transformado numa fatia de presunto prensado.
Presunto?
Que coisa para lhe vir a memória, adorava e poucas vezes teve oportunidade de
comer, só quando o levaram a casa de um senhor, que diziam ser seu padrinho,
lhe deram um papo-seco com uma bela fatia de presunto e gostou mesmo daquele
gosto diferente, daquela mescla de sabores que se derretiam no palato.
Alguns
colegas, não muitos, levavam para a merenda fatias de pão recheadas com grossas
fatias de presunto, depois iam comendo o magro e deitavam, aos cães, o gordo.
Olhava de través, não porque os cães não tivessem direito a comer presunto, mas
pelo desperdício da escolha, o presunto era mesmo bom naquela mistura de febra
e gordura. Ainda um dia, pensou, ia ter um presunto só para ele poder retalhar
grossas fatias e comer esticando entre os dentes os saborosos pedaços.
Os
homens gritavam, uns com os outros e ele aproveitou para se esgueirar por baixo
do oleado e aconchegar-se ao fundo da camioneta, no espaço, entre um rolo e a esquina do atrelado. Não era
cómodo, pois mal se podia sentar, mas era seguro pois os lados do taipal
mantinham a bobina segura.
Esperou
algum tempo e sentia o corpo um pouco dormente, tinha que ir esticando, o possível, para o sangue correr e o deixar
voltar a normalidade. Quando começasse a andar já podia ajeitar-se melhor.
Finalmente
sentiu, alguém, dar à manivela para
a camioneta começar a trabalhar, o motor pegou e num repelão começou a marcha.
O terreno era muito irregular e os solavancos faziam doer o rabo, em constantes
saltos, no fundo duro, enquanto as costas iam sendo marteladas de encontro ao
taipal. A custo mudou a posição e ficou com as costelas protegidas pelo rolo do
papel, sempre era melhor que a madeira dura.
Começava
a ter fome mas o farnel era pobre e tinha que ser comedido, pois o dia era
longo. Comeu um marmelo que tinha apanhado no quintal da dona Cacilda, foi
mesmo ela que o mandou tirar um ou dois marmelos, sabia que ele gostava. Ficou
com a boca áspera, mas como demorou muito a come-lo o estômago acalmou.
Apesar
do incómodo julgou que tinha adormecido. Pensou na mãe e no desgosto que ia
sentir, embora ela tantas vezes tenha desabafado que se tivesse para onde ir há
muito tinha abalado, mas os tempos eram outros e o remédio era aguentar e ter
esperanças que as pessoas mudem, mas não mudam nunca. Deixou-lhe um pequeno
papel onde lhe dizia para não se preocupar com ele, tinha ido à procura da vida,
e que um dia voltava para a levar. Sabia que ia chorar mas, tinha a certeza,
que ia compreender.
A
camioneta parou no caminho, espreitou pelo buraco onde passava a corda que
segurava o oleado, e viu os dois homens entrar na taberna para almoçar. Sentiu
a saliva a inundar-lhe a boca, comeu o outro marmelo e a acidez que lhe engrossou
a boca foi um lenitivo para o buraco que sentia no estômago.
Não
tinha relógio, embora lhe tenham prometido um quando fizesse a quarta classe,
não soube que tempo passou mas mais de uma hora, de certeza, quando os dois
homens voltaram. Um deu à manivela, quando o motor começou a trabalhar
recomeçaram a marcha.
Quando
se estava a preparar para fazer a quarta classe, um dia que lhe pareceu
diferente, prometeram-lhe que se passasse ia ter um relógio de pulso.
Acreditou, nunca lhe tinham prometido nada, por isso, acreditou, e ficou a
remirar o pulso a imaginar um Butex, gostava desse nome e sabia que o senhor
Armindo, da drogaria, os vendia trazidos de Espanha. Havia uns que precisavam de
corda e outros que não precisavam, era preciso dormir com ele porque era a
gente a mexer que lhe dava a corda, não sabia qual lhe iria calhar, teve
vontade de ir falar com o Senhor Armindo, sem ninguém saber, e pedir para
ajudar na escolha mas teve medo, pois se soubessem não havia relógio e, se
calhar, as orelhas eram mais esticadas.
Fez
a quarta classe, nessa época era o ensino obrigatório, passou com distinção,
até ouviu dizer que foi o melhor desse ano. Não era fácil, pois tinham que ir à
cidade fazer exame. Não estava nervoso, sabia tudo o que a professora lhe ensinou
e tinha lido todos os livros que ela lhe ia emprestando, até aqueles de poesia
que às vezes não percebia bem, mas que o deixavam com uma sensação de conforto.
Ainda, um dia, ia escrever um para, os outros, poderem saber tudo o que sentia.
Quando
a professora lhe deu um beijo e os parabéns porque a tinha deixado orgulhosa,
ele sentiu que ia ganhar o relógio. Foi aí que ela lhe pediu o caderno para
mandar para casa o recado para lhe irem falar e, se calhar, foi por isso que o
relógio nunca chegou a poisar no seu pulso.
Ainda
fez um, recortou num cartão branco, desenhou os números e os ponteiros e
enrolou à volta do pulso, mas nunca acertou nas horas, quando olhava ou já
tinha passado a hora ou, então, ainda não tinha chegado. Tirou do pulso e
guardou, era um dos tesouros que levava na sacola.
****
Estavam
a entrar numa grande povoação, se calhar tinham chegado à cidade grande, havia
carros nas ruas e as pessoas, nos passeios, caminhavam em roupas mais elegantes
do que aquelas a que estava habituado. Os homens todos de chapéu, não viu
nenhum de boina como na aldeia, as mulheres em roupas coloridas e sem lenços na
cabeça. Alguns rapazes corriam, com uma gancheta de arame, controlando uma roda
de aço que saltava nos socalcos do empedrado.
A
camioneta fez algumas manobras e entrou, de marcha atrás, num armazém enorme.
Sentiu
arrumarem as coisas, fechar o portão e abalarem para o escuro que começava a
cair na rua.
Saltou
do esconderijo, esticou as pernas e os braços, na tentativa de fazer voltar ao
lugar os ossos e os nervos que estavam todos fora do sítio, totalmente
dormentes.
Apeteceu-lhe,
então chorar, não propriamente por medo mas pela frustração de ter nascido
diferente, ou talvez, por ter nascido numa família que não sabia o que era ser
família.
Agora
tinha que pensar como ia sair dali, havia uma janela lá em cima, estava alta e
tinha umas grades apertadas. O portão estava bem fechado.
O
melhor era passar ali a noite, estava abrigado e podia descansar num daqueles
montes de sacas que se encontravam encostadas à parede. Comeu um pedaço de pão,
estava duro mas sabia bem, com a maçã vermelha que antes poliu, contra a
camisola, que a tia lhe ofereceu um dia em que os foi visitar. Foi ela que a
fez com umas lãs que tinha lá em casa.
A
maçã era boa mas, deu-lhe um peso na consciência, não lha tinham dado, tirou-a do prato da fruta que
estava em cima da mesa da cozinha, tinha a certeza que a mãe ia compreender e
não ia dizer a ninguém que tinha roubado uma peça de fruta.
Adormeceu,
totalmente, com o cansaço do corpo a ajudar, mas com a preocupações de
acordar antes da chegada das pessoas, tinha que se esconder e tentar sair
passando despercebido.
Correu
tudo bem, a confusão que reinava, naquele armazém, era um bom cúmplice para
sair sem ninguém o notar.
Na
rua estava um pouco de frio, não tanto como lá na terra, mas a roupa era pouca
e tinha que se encolher para poder aguentar melhor. Parou junto à montra de uma
casa de bolos, dizia em cima pastelaria! E lembrou-se que ainda não tinha
comido, tirou um pedaço de pão, já duro, e foi comendo enquanto ia olhando os
bolos, como se isso mudasse o sabor da côdea, mas o pão estava bom e não podia
deixar que qualquer tentação o desviasse dos objectivos, um dia ainda havia de
provar de todos aqueles bolos.
Agora
ia arranjar emprego, sabia que ia ser difícil, havia muitos, mas um qualquer
rapaz, sozinho, entrar num qualquer sítio e dizer se tinham um lugar para ele
trabalhar. Não sabia fazer muita coisa a não ser varrer e ter muita vontade de
aprender.
Foi
difícil, calcorreou, a cidade, na busca de uma ocupação mas as pessoas olhavam desconfiados e
iam deixando desculpas, és muito novo, és fraco para carregar o cesto, não tens
prática ou se tens vindo antes!
Tinha
esgotado as provisões e sentia muita fome, não queria pedir, não foi para isso
que enfrentou nesta aventura, tinha que aguentar. Pensou rezar mas não valia a
pena, sabia que o único Deus era dos ricos, os pobres não tem direito a essas
coisas. Um dia, quando fosse rico, ia ter um Deus mas, nessa altura, se calhar já não
precisava pois ia ter dinheiro para comprar o que lhe fosse necessário.
Estava
nestas cogitações olhando para a montra farta de uma pastelaria, quando um
homem lhe perguntou:
-Tens
fome?
Ficou
engasgado, um tremor tomou conta do corpo e um rubor transformou-lhe o rosto.
Acanhado respondeu:
-Obrigado
senhor, só estava a olhar!
O
homem percebeu a vergonha, pegou- lhe no braço e com um sorriso descansou-o:
-Sabes
rapaz, eu já passei por aí por onde estás a passar. Anda, vem escolher alguma
coisa para comer, não te acanhes, um dia farás o mesmo a outro que tal, como tu,
esteja a precisar.
Comprou-lhe
uma sandes de presunto, calculem de presunto, um bolo enorme com creme e uma
garrafa de gasosa. Deu-lhe uma ligeira palmada no ombro e desapareceu para donde
tinha aparecido.
Afinal,
se calhar, pensou, também há um Deus dos pobres.
********
Ele
ainda tinha os 25 escudos e o tostão, mas os escudos não os queria gastar podia
precisar de comprar alguma coisa se arranjasse emprego e a moeda, essa, era
sagrada.
Tinha
passado, as noites num portal do adro da Igreja, era abrigado do vento e
ninguém tinha embirrado
com ele, mas acordava com o corpo dorido e com muito frio. Lavava a cara no
chafariz e puxava os cabelos, para o sítio, no reflexo de uma montra.
Estava
há três dias e não queria começar a desesperar mas, pensou que ia ser mais
fácil.
Hoje
ia mudar de sítio, ia apanhar um eléctrico, afinal eram só alguns tostões e ia
experimentar o centro, a baixa como aqui diziam, podia ter mais sorte.
*****
Bom,
era diferente, muito comércio e muita gente janota nas ruas. As mulheres, nas montras, e ficavam a olhar e
a comentar as coisas bonitas que estavam expostas.
Os
homens passavam, olhavam as mulheres enquanto fingiam olhar as montras.
Os
cafés eram diferentes, maiores e com uma imensidade de guloseimas que ele nem
sequer imaginava que pudessem existir.
****
Estava
com sorte, na montra daquele café, estava um papel a dizer:
“Precisamos
de um marçano, mesmo sem prática”.
Não
sabia bem o que era um marçano, mas devia ser qualquer coisa a ver com
pastelaria.
Alisou
o cabelo, passou os dedos pelos olhos, endireitou a roupa e entrou.
-Faz
favor, disse um senhor, de casaco branco, que estava ao balcão.
-Desculpe,
balbuciou o rapaz, vinha pelo papel do emprego.
O
senhor esqueceu o sorriso, postiço, que tinha afivelado, indicou-lhe uma porta ao fundo da sala.
Bateu,
timidamente e quando ouviu entrou.
Era
um pequeno cubículo, com uma secretaria apinhada de papéis, Um senhor gordo olhou-o
de alto abaixo antes de perguntar:
-Vens
só? Onde estão os teus pais?
Corou
antes de responder:
-Não
vivo com os meus pais, estão longe, vivo com uma velha tia que não tem muitas posses e
preciso de trabalhar.
O
homem limpou a testa, fechou os olhos como que a conciliar o pensamento e com
um sorriso, quase carrancudo, terminou:
-Começas
amanhã às 8 horas, duas refeições por dia, trabalhas até as 5, dormes no
armazém e 100 escudos por mês. Está bem assim?
Só
conseguiu acenar que sim, mas o contentamento estava bem visível nos olhos
tristes.
Perguntou
então:
-Já
posso ficar cá, esta noite, para estar cedo ao serviço?
-Podes,
respondeu o patrão, logo, às 9 horas, vais ter com o Senhor Godinho que ele explica o que há para
explicar.
Entregou
o bilhete de identidade, assinou um papel com as condições e saiu a assobiar,
coisa que não se lembrava de alguma vez ter feito.
Ia,
finalmente, gastar um pouco do, quase nada, que tinha, precisava de uma camisa, de meias e se, possível, de
umas cuecas.
***
Albino
raramente sorria mas tinha um ar que cativava, era uma espécie de doçura que
inspirava confiança.
Ouvia
tudo com muita atenção e mostrava, num ligeiro aceno de cabeça, que tinha assimilado, mas fazia duma forma cortês, sem enfado e
dando confiança a quem o mandava sem deixar transparecer submissão.
Rapidamente
foi aceite e, não tardou, estava ao balcão, sabia atender e ser delicado sem
perder dignidade, aconselhava e as pessoas aceitavam porque transmitia
confiança e um certo profissionalismo.
Os
clientes já o procuravam, gostavam do modo como os atendia. O patrão também se
apercebeu e deixou, a pedido, que fosse estudar, de noite, no liceu.
Começava
a ter a vida organizada era tempo de ir buscar a mãe, voltou à terra.
A
casa estava diferente, tinha mais um andar com varandas floridas e estava
pintada de cores alegres, aqueles cinzentos doentios tinham desaparecido.
Os
novos moradores, não conhecia, nem o conheciam a ele.
Soube
pelo senhor Domingos, da drogaria, que a mãe deixou o pai e foi viver para a
cidade, com um homem que ninguém sabia quem era. O pai desapareceu e nunca mais
souberam nada, pensam que tenha ido para Espanha, mas ninguém tem a certeza.
Voltou
desiludido, quis cumprir a promessa, mas a mãe depressa se esqueceu e fez como
sempre, escolheu o mais simples.
******
(continua em breve)