terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Aconteceu?








Não sabe como aconteceu um dia, de repente, acordou naquela cama, naquela casa, naquela terra mas não sabia como.
Não conhecia nada do que o rodeava, era tudo tão estranho.

Nunca teve tal cama, fofa, cheia de cor e de grandes almofadas fofas, lençóis de seda e edredão de penas suaves e macias.
 O quarto era imenso, paredes de uma cor pérola, na parede, a encimar a cama, uma bela pintura, "A Maja nua" de Delacroi.
O tecto, em abóboda, era um enorme fresco de uma reprodução de um céu estrelado, imenso e profundo que o deixava numa grande pequenez.

Espreitando, pela imensa janela, via uma cidade que lhe era, totalmente, desconhecido
Ruas largas, transito muito ordenado, pessoas passando apressadas e aconchegadas, em grossos casacos, para se defenderem do frio que se adivinhava nos restos de neve, ainda visíveis, nos passeios.

****

Era tudo tão estranho. Beliscou as maçãs do rosto, doeu, era sinal que não estava num sonho, era real.

A casa, a sua casa, tinha um quarto miserável, com um cama asseado mas com lençóis já amarelados, pelo uso e uma manta cor de rato. Paredes desbotadas, onde a humidade tinha pintado manchas escuras de bolor, a janela era um postigo, a precisar de pintura, com um vidro martelado no centro.
Na parede um velho quadro, herança da avó,  de um anjo protegendo duas crianças junto a uma fonte. A porta, que dava para o corredor, era uma cortina presa por esticadores a dois camarões de latão amarelo.

Espreitando pela janela apenas campos, verdejantes, e árvores apontando ao céu.

***

Agora acorda assim, num cenário quase irreal, no desconhecido, numa terra com prédios onde cabia, de certeza, a sua aldeia.
Já se beliscou e está bem acordado, se não fosse um leve torpor na cabeça diria que se encontrava totalmente bem.

Estava com receio, diria mesmo com medo, de deixar o quarto, não sabia o que estava para além da porta que o dividia do mundo lá fora.

Vestiu a roupa que estava pendurada, não se lembrava mas, se calhar, era dele.

Saiu.

Era um corredor imenso, chão brilhante, com uma passadeira vermelha, presa com grampos dourados.
Nas paredes quadros, com paisagens, e alguns espelhos em molduras trabalhadas numa espécie de talha.
Ao fundo um elevador, marcou o piso 0. Saiu num enorme átrio, onde um sujeito, de farda azul com botões doirados, o saudou com um:

-Good morning mister Russell!

Olhou para todos os lados. Era para ele, o senhor deve estar enganado, fez confusão, falou numa língua estrangeira e chamou-o de um nome que não era o dele.

Sabia que era inglês, não sabia falar mas percebeu, que ele tinha dito bom dia senhor Russell, já tinha ouvido em muitos filmes, mas começava a ficar preocupado.

Onde estava? Porque e como veio parar aqui?

Ainda se soubesse falar inglês, mas só conhecia palavras dispersas.

Olhou o edifico donde acabou de sair e pela placa no frontispício "The Ligth Hotel", ficou a saber onde passou a noite.

Até há pouco estava, apenas, preocupado mas agora começava a entrar em pânico, o terror começou a infiltrar-se nos ossos e a percorrer-lhe o corpo, como se lhe tivessem injectado uma dose de qualquer droga.

Começava a ter fome. Verificou os bolsos, se tinha uma roupa também devia ter carteira e, quem sabe, até documentos.

Tinha um cartão, pelo aspecto, era uma carta de condução.
Será que tinha carro?
Também encontrou diversos cartões, mas não sabia bem para o que eram.
Bilhete de Identidade não encontrou, mas tinha bastantes notas de Libra, mesmo muitas, e também cartões multibanco de três bancos. Mas não sabia códigos.

Tinha dinheiro, ia comer, o resto deixava para mais tarde.

Foi espreitando até que reparou num restaurante onde se iam servir e à saída pagavam, sem necessitar de muita conversa, era um Garfunkel's.
Ia fixar.

Andou toda a tarde, o dia estava muito frio, andar ajudava a manter o corpo a funcionar.

Ficou a conhecer um pouco da cidade, era grande e muito ordenada.

Só tinha pena de não perceber o que diziam, sabia que era inglês, lembrava dos filmes de televisão os yes e uns good's que ia escutando aqui e ali.

Ia voltar, ao mesmo restaurante, e depois ia tentar o mesmo hotel.
Devia ser o seu poiso.

Quando cruzou a porta, o mesmo porteiro, com a mesma farda, muito solicito aproximou-se com um:

-Your key, mister Russell!


Estendeu-lhe o cartão, da porta, do quarto.

Bom, hoje, já, tinha onde pernoitar.

Estava um pouco nervoso, sempre se chamou Ernesto e, agora, era mister Russell, como se isso fosse nome de gente.
Russell imaginem!

Estendeu-se na cama e ficou e admirar aquele imenso céu, estrelado, era uma pintura mas até parecia que algumas das estrelas cintilavam.
A matrona da pintura também não estava nada mal.

O grande problema era saber como tinha vindo aqui parar, quem era, como tinha estas roupas chiques, a carteira recheada, uma carta de condução se nunca tinha pegado num carro, só na motorizada ou na bicicleta, mas carro e nesta terra, onde andam ao contrário.
Isso era impossível.

Adormeceu, enquanto os olhos passeavam naquele mar de estrelas, que pareciam querer brilhar naquela imaginada dimensão.

*******

Acordou, esfregou os olhos tentando lobrigar, por entre o lusco- fusco, o que o rodeava.
Estranho! O quarto era diferente, sem quadros,  sem abóbadas pintadas, sem edredão de penas.

Estava numa cama articulada, um tubo enfiado, com um cateter, no braço. Estava ligado a um saco de soro, pendurada num suporte, tinha os braços imobilizados por ligaduras e um tubinho com uma cânula de dois pinos enfiados no nariz.

Uma menina de uma bata branca entrou no quarto e exclamou:

-Bem vindo senhor Ernesto, finalmente acordou. Esteja calmo! Vou chamar o doutor.

Saiu ligeira, reparou que era muito jeitoso, mas foi um mero notar.

Voltou acompanhada por um sujeito, devia ser o médico. Simpático, com um sorriso a rasgar o rosto. Um fino bigode dava-lhe um ar de David Niven, voz suave e aspecto de muito competente.

Olhou Ernesto com um sorriso:

-Então, caro senhor, conseguiu dar um exemplo de como lutar pela vida, foi formidável nunca desistiu.
Chegamos a recear muito, mas mesmo muito. mas conseguiu ser muito forte.
Como se sente?

-Senhor doutor, ainda ontem eu era uma pessoa diferente, a viver num país distante, num hotel especial, com boa roupa e muito dinheiro no bolso. Tinha um quarto que me aproximava do firmamento e, de repente, acordo todo estropiado, ligado por tubos, enrolado em ligaduras, com dores em todos os sítios. Não sei se sonhei ou se estou a sonhar!

O doutor não conseguiu evitar um sorriso, mas respondeu:

-Deve ter sonhado e teve sorte! Podia ter sido o seu maior pesadelo.
 Já a sua motorizada não pode dizer o mesmo, essa morreu de verdade, não tem conserto!
Agora descanse, vá!








segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Reflexos










Inspirado pela Sónia, que adoro, e que está encontrando o seu espaço……




Ela queria ser normal, igual a tantas outras, mas havia algo que a tornava diferente, um lirismo, um inventar de desejos, quase como se o mundo fosse feito de poesia.

Tinha sonhos, afinal todos temos, mas os dela eram diferentes, eram sonhos feitos de imaginações inimagináveis, de desejos nascidos de fantasias que se enleavam num emaranhado de coisas do que devia e, não era, ou não podia ser.

Olhava a vida de forma diferente, o futuro era hoje, o amanhã era, apenas, a continuação do presente.

Tinha planos, todos temos, mas eram diferentes, nasciam onde os outros acabavam.

Vivia num palácio de fantasias, onde pintava de cores fortes os desejos feitos sonhos.

Nasceu numa primavera, num dia em que o Sol brilhou e a encandeou, de tal forma, que não foi capaz de conhecer as mãos que da corola se ergueram quando a cegonha a entregou, depois adormeceu no recobro do cansaço da viagem.

Agora vive na incerteza, só lembra o bico da ave, mas não as mãos que a receberam.

Talvez, pensa, a cegonha a tenha deixado  na corola errada. Tem, quase a certeza, que a flor branca não era o seu destino. Seria na flor amarela, da cor do Sol, o seu verdadeiro lugar. As flores amarelas são o símbolo da amizade e do sucesso.

Foi, está convencida, um engano que lhe ditou este destino, não o pode mudar, tem que viver nele.

Às vezes procura o amor e vai em ilusões, feitas na imaginação do amanhã que ia modificar, mas o amor é mais do que um sonho colorindo uma existência. Não é apenas a doce ilusão  de uma fuga à vida que não se quer, é também o sacrifício de ideais e o perder dos valores que não se querem transferir.

Depois são os regressos, penosos pela angústia, frustrantes pelo desengano, felizes na necessidade de voltar ao princípio das coisas.

Os anos passam, o murchar das pétalas não se nota, mas os traços invisíveis anunciam que a mulher já não é menina, o conformismo vai roendo, devagar, os impulsos e os sonhos arrebatados que davam movimento à vida.

Agora pensa num aconchego que lhe mime a alma e alimente o espirito de caricias, que a faça sentir, menina/mulher, na procura incessante do sonho tão próximo, mesmo ali, mas tão distante que não sabe se, algum dia, o poderá encontrar.

Ainda não perdeu a força mas, os traços de cansaço deixam marcas.

Pensa que a vida não tem sido vida, pouco lhe deu e tudo o que era importante lhe foi roubando, de forma cruel, deixando marcas que o tempo não consegue disfarçar.

Mas segue, há uma força interior, talvez um lirismo que lhe diz que o caminho está ali, mesmo ao voltar daquela esquina, tão próxima mas, ao mesmo tempo, tão difícil de lá chegar.

Agora é esperar uma nova primavera e, que outra flor, da cor do Sol, lhe abra a corola num abraço para a acolher e lhe ensinar, finalmente, o caminho certo.

A vida é assim e, na esperança, tudo é possível.

Assim vai ser!





terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Desenraizado













Hoje vou deixar um pequeno conto com uma final, quase, feliz.




Nem sempre pensou desta maneira, tinha até as ideias um pouco destorcidas, quase, retrogradas, pareciam doutras eras. Foi a educação que recebeu, muito conservadora arreigada a conceitos puritanos e cheia de  parece mal, tudo era pecado. Se olhava para as pernas de uma rapariga era-lhe logo prometida uma passagem para o inferno. Só muito mais tarde descobriu que o enganavam pois as pernas de uma rapariga conduziam, precisamente, ao céu.

Cresceu assim, numa espécie de medo, na promessa de um inferno, ou dum purgatório, se os pecados fossem menores.
Foi crescendo num sentimento de revolta, azedo e com dificuldade de se socializar.

Os rapazes nunca o convidavam para os jogos de futebol, era um coxo como diziam.
Ele bem tentava apanhar a bola e fazer uma finta mas não saia nada. Ficava no jogo mas a redondinha nunca mais lhe passava por perto, evitavam-no. Jogava sempre, a bola era dele, até ao dia em que, o Inácio, apareceu com uma nova, de couro ensebado, linda.
Nunca mais teve lugar nas equipas!

As raparigas eram esquisitas, cochichavam umas com as outras, risinhos parvos, passavam os recreios a mandar mensagens nos telemóveis, depois mostravam às amigas as respostas em frases tão encolhidas e metaplasmos que só elas, mesmo, conseguiam entender.

Olhavam para os rapazes mais excêntricos, as tatuagens, pircings e penteados malucos eram uma espécie de atracção que lhe davam o primado entre todos.

Ele, ainda tentou alguns avanços, mas a sorte nunca lhe sorriu.
Não percebia porque, era o mais alto e o mais forte, os outros pouco lhe ligavam mas tinham um respeito muito especial pois, como diziam, tinha um grande caparro.

Mas não estava muito preocupado, a sua vocação era ser artista, cantor, actor de novelas ou até, quem sabe, galã de filmes românticos.

Já tinha pedido à mãe para o inscrever numa escola de representação, ou ir para o Conservatório mas estava difícil, a velha, fazia uma cara mesmo feia, o que lhe era fácil, mas ele não ia desistir, não queria ser advogado como o pai.

Hoje a mãe, Senhora dona Isaura, como gostava de ser tratada estava, para variar, com um ar um pouco mais bem-disposto e o Afonso aproveitou:

-Mamã, eu quando acabar o liceu quero ir para o conservatório!

A senhora dona Isaura, franziu  o sobrolho de forma um pouco característica, mirou o filho, admirada, antes de responder:

-Mas Afonsinho, como quer o menino ir para o conservatório se apenas tem jeito para tocar no rabo das empregadas? Não diga que não, que eu já o vi a acariciar o traseiro da Rosete!

Afonso corou até as orelhas, era verdade a Rosete gostava e não se importava, agora a velha ter visto não estava, propriamente, nos seus desejos. Agarrou coragem, fingiu não perceber, e voltou à carga:

-Não é nada disso mamã! Eu não quero aprender musica, quero estudar representação para ser actor famoso, assim como Sir Laurence Olivier ou, mesmo, Sir Donald Sinden.

A velha soltou, talvez pela primeira vez na vida, uma sonora gargalhada, tão estridente que as empregadas vieram, muita à socapa, espreitar à porta da sala.

Voltou e empertigar-se antes de responder:

-O menino não quer ser como nenhum desses exemplos que falou, quer ser desses, das telenovelas, para se enrolar nas sem vergonhices de se lamberem em beijos e delirarem em apalpões, o menino sonha com essas coisas pecaminosas que o levam direitinho ao inferno.
-Mas não se importa, pois, enquanto cá andar vai-se consolando com os vícios desses pobretanas.
-Não! Um Castelo Branco nunca irá manchar a família nessas tristezas.
-Vá continue no seu tocar no rabo da Rosete, que eu finjo não ver e, ela parece gostar.
Por hoje chega de palermices!

Afonso ouviu sem mostrar qualquer  mudança e, quando retorquiu, não se lhe notou nenhuma emoção:

-Sabe, senhora minha mãe, que é verdade que eu brinco inocentemente com a Rosete. Sim, faço isso! Mas será que quando o seu motorista a leva para os estábulos a apalpa, de alto a baixo, lhe beija o pescoço e depois se embrulha, com a senhora na palha, tem a mesma inocência que o meu toque na Rosete?
-Não me diga que não, porque eu já vi!

Dona Isaura teve um chilique, abriu os olhos desmesuradamente, esticou as pernas em pontapés no ar e caiu, redonda, num bem dissimulado desmaio.

Acudiu todo o pessoal, dona Emília, a cozinheira, foi rápida a fazer um chá de camomila para lhe acalmar os nervos.

Afonso saiu de mansinho e foi refugiar-se no sossego do seu quarto. Ficou à espera que o mundo desabasse.

********

O ambiente, na casa, mudou de forma radical.
O pai há muito que era uma figura de corpo presente, não se dava por ele. Vivia num mundo muito próprio, estava com as pessoas mas não as conhecia.

Tudo começou em Maio, há três anos. Foi com a filha, Mafalda, a um Centro Comercial, no regresso, um cão, atravessou-se na estrada, tentou travar mas vinha com alguma velocidade e, o carro, só parou com estrondo contra um posto de betão.

Quando os desencarceraram estava uma jovem, acabada de fazer 18 anos, já cadáver, e o pai com lesões que deixavam algumas reservas.

Foram oito meses de hospital, primeiro em coma induzida depois, a pouco e pouco, foi abrindo os olhos para a vida embora, o cérebro, tenha continuado adormecido num buraco negro.

Quando voltou para casa era um estranho, não reconhecia nada nem ninguém, deambulava como um estranho nos enormes corredores, sentava-se num banco no jardim e, levava as tardes, a olhar as mãos como se elas fossem um livro.

Um dia o Afonso sentou-se ao seu lado, segurou-lhe as mãos e segredou-lhe:

-Paizinho, eu, amo-te muito!

Olhou o filho e acendeu um leve sorriso, depois, voltou a contemplar as mãos como se nada se tivesse passado.

Por vezes dava um assomo, de conhecimento, e entrava no quarto que fora da Mafalda, olhava como se estivesse a ver algo que só ele conseguia, sorria para as bonecas que continuavam colorindo a cama, depois voltava a contemplar, as mãos, e voltava tão calado como tinha entrado.

****

Afonso, desde que confrontou a mãe, passou a fazer parte da plebe, que a Dona Isaura tão abominava, deixou de ter  direito a refeições na sala, passou a comer na cozinha, com os empregados. A sala era para os senhores, os empregados e os traidores, como dizia Dona Inácia, já tinham sorte em ter refeições.

Afonso, não ficou incomodada com isso, era bem tratado e tinha companhia, deixou a presença do pai, que amava muito, e do nariz empinado da mãe, sempre mal disposta e recriminativa.

Nunca foi um rapaz feliz mas, passava bem pela vida, não lhe faltava nada, só os afectos mas a isso já se tinha habituado.

Agora estava como um estranho na própria casa, o pai deslizava pelas memórias apagadas, passava por ele e nem sequer se apercebia, a mãe no alto da sua falsa moralidade, nunca lhe perdoou por ter ficado em vez da irmã. Sim ela achava injusto perder a filha, de que gostava, e ficar com um rapaz de que nem tinha a certeza se era filho do marido.

Afonso, estava triste mas determinado, respeitava a mãe, porque era o dever de filho, mas não gostava dela, nunca sentiu qualquer afecto, mesmo quando muito pequeno já sentia essa espécie de rejeição, não tinha culpa era quase genético, nasceu com ele.

Agora que, a dona Isaura, abriu as hostilidades, do alto do seu falso moralismo, desprezou o filho como se desprezam os sapatos que pensamos nunca mais calçar.

Ia ser difícil, uma luta muito desigual, por um lado uma loba implacável, ávida dum poder quase régio, do outro, um falso cordeiro que se ia camuflando numa ingénua aparência à espera do momento certo.

A Rosete passou a ser a sua guardiã, que o despertou para os prazeres da vida, que ele já imaginava, mas de que agora tinha a certeza, pela grande experiencia, que estava acumulando.

O pior era doença do pai, não sabia bem se era doença!

Se o pai se libertasse daquela, espécie, de hibernação, as coisas seriam diferentes, pois ele era o único que conseguia manter a fera dominada.

O dinheiro, aliás, toda a fortuna era do pai, que além da herança que recebeu dirigia, também, um dos mais importantes escritórios de advogados do país, talvez fosse essa a razão de conseguir liderar e manter a fera no sítio certo.

Agora, a única esperança, era que aquela apatia e alheamento que o tolhia um dia o deixasse voltar à vida.

Amanhã, dia 23, se ainda fosse viva a Mafalda completaria 21 anos, mas o pai, o cão, o poste, o carro e quem nos governa não deixaram.

Tinha muitas saudades e, em silêncio, tinha feito o seu luto. Nunca se manifestou muito, pois, para ele, ela continua viva bem dentro do coração. Muitas vezes, no escuro do seu quarto, sente a sua presença, sabe que vem ver o mano de quem tanto gostava. Ao princípio ficava arrepiado mas agora sente um bem-estar que não sabe explicar, porque compreendeu que é, apenas, o desejo e as saudades que fazem que imagine essa presença.

Sabe, sente, que ela reprova este mau estar entre o irmão e a mãe e, se estivesse cá, já tinha terminado esse mau estar.
Era tão suave e subtil a resolver as pequenas desavenças que, tem a certeza, que está muito triste com tudo isto.

Esta noite sentiu a sua presença, acordou assustado, acendeu a luz mas apenas um suave fragância a Crystal Noir se sentia no ar. Era o perfume que a Mafalda usava.

Tinha a certeza, a irmã havia deixado um sinal, era preciso dar o primeiro passo.

Amanhã, bem cedo, vai colher uma bela rosa amarela, são  dessas que a mãe gosta muito.

Depois? Bem depois, seja o que Deus quiser!

*******

Estão na sala a tomar o pequeno-almoço ao lado, muito aprumada, a Rosete vai servindo, quase adivinhando os desejos.

A mãe, com os dedos esticados, segura uma torrada que, em pequenas dentadas, desaparecia no meio dos lábios que hoje, talvez por respeito, não estavam horrorosamente vermelhos.

Ao lado, o pai, alheio ao que o rodeava ia comendo um prato de cereais.

Entrou na sala, com algum receio, o pai olhou com doçura e a mãe mirou-o com a maior indiferença.

A custo as palavras saíram-lhe:

-Mãe, hoje a nossa Mafalda completaria 21 anos, queria dar-te esta rosa e pedir para perdoares a minha insensatez, ainda não cresci o suficiente para controlar as minhas palavras!


O momento foi muito intenso, Afonso, ficou um pouco sem jeito no meio de um mundo quase irreal.

A mãe, pela primeira vez na vida, levantou-se para o abraçar, borrou um pouco a pintura dos olhos, deve ter vertido alguma lágrima.

Mas o milagre, o verdadeiro, estava para acontecer.

O pai deixou o prato, daquelas papas, e veio juntar-se ao abraço, tinha um brilho diferente nos olhos.

Olhou a mulher, segurou no braço do filho e  com emoção rematou:

-Tens razão Afonso, basta de viver no passado, vamos os três à Igreja!
-Vamos rezar e dizer, à Mafalda, que estamos aqui, unidos e assim vamos continuar, para sempre!


-Vamos voltar à vida por ela e, também, por nós.