Iam passados três anos e o regresso era um misto de alegria e de angústia, uma incógnita e algum medo pela incerteza na forma como ia ser recebido.
No dia em que me foram prender estava a sofrer pela morte misteriosa da Vera, o meu grande amor, mas não acreditaram na minha inocência e fui condenado por um crime que não cometi. Três anos passados, por falta de prova, devolveram à vida um homem desiludido e destroçado.
Hoje vou voltar à casa que me viu nascer, vou rever as lembranças dum passado que me manteve agarrado à esperança deste regresso.
Os nossos País já tinham morrido e a Matilde, minha única irmã, casou com o Gilberto e foi para Lisboa.Enquanto estive na prisão foi ela a minha força e o meu amparo, graças à sua persistência e às diligências, constantes, do meu advogado conseguiram a minha liberdade.
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Nada tinha mudado e tudo parecia diferente, as mesmas ruas, as mesmas tascas e até os homens que se sentavam às portas pareciam os mesmos.
A casa estava ainda mais bela, imponente nas suas seis empenas, nas janelas rasgadas em molduras de pedra cinzelada, mantinha um ar senhorial que a tornava diferente de todas as restantes, mais térreas, com janelas simples e com ombreiras caiadas de branco. A nossa casa era diferente, dizem que foi uma extravagância do avô Geraldo com o dinheiro que ganhou no contrabando do volfrâmio.
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Quando meti a chave à porta senti um mundo de emoções, as minhas pernas tremeram e o meu coração disparou.
Estava tudo como quando o tinha deixado mas, ao mesmo tempo, tudo parecia diferente.
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Foi no mês de Junho, de há três anos, que eu e a Vera tivemos um dia muito especial, em enlevos de palavras bebidas, olhares de mel e beijos que nos alimentavam como divinas ambrosias. Corremos felizes pelas areias quentes da praia, enchemos de ais as dunas, rebolando os corpos fundidos em suspiros que se deixavam diluir no encanto da entrega e na loucura do desejo. O mundo era todo nosso, só nosso, o Sol brilhava apenas para nós os dois.
O jantar na esplanada, à beira-mar, foi feito de olhares e sorrisos.
Quando lhe ofereci o anel e lhe perguntei se queria casar comigo, as lágrimas tornaram mais brilhantes os olhos que por magia me abraçaram e me responderam.
Ficamos noivos.
Eram duas horas, da madrugada, quando a deixei à porta de casa. Deu-me um beijo fugidio e disse:
-Eu não te mereço.
Tapou o rosto e desapareceu no escuro da noite.
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Foram uns pescadores que encontraram o corpo junto à vereda que leva ao rio. Grotesca, descomposta e com o rosto desfigurado, irreconhecível. Foi violada, barbaramente agredida e por fim estrangulada de forma violenta.
Ninguém viu ou ouviu nada, apenas restava eu.
Fui acusado, detido, julgado e condenado por um crime que alguém cometeu.
Matilde, a doce Maltide, esteve sempre certa da minha inocência moveu céu e terra na procura da verdade e passados três anos estou de volta, libertado mas com o estigma da dúvida e sem provas da minha inocência.
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As pessoas da terra nunca mostraram qualquer dúvida, sempre acreditaram que eu seria incapaz de crime tão hediondo mas parecia-me que aquela fluidez de palavras de antigamente era diferente, encurtavam o diálogo como se estivessem apressadas, assim me parecia.
Antes procuravam-me, contavam os factos das suas vidas, pediam opinião, falavam do Sol e da chuva, comentavam as colheitas, diziam da vida e contavam da morte. Agora era o sorriso e o bom-dia, ou boa-tarde, senhor doutor.
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Foram três anos feitos de esperas, dúvidas e rancor.
Os dias eram maus e as noites plenas agonias, sonhos perturbados pela última imagem da Vera, estática na disforme mascara da morte.
O meu pensamento procurava o porque e quem?
Quando fechava os olhos parecia ver a alegria de Vera contemplando o anel brilhando, no seu delicado dedo, mas a policia não quis acreditar no pedido de casamento e na oferta do anel. Diziam, eles, que não havia nada e que o pedido era uma encenação que eu arranjara para os tentar iludir.
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Estamos no Verão, as tardes passam dolentes.
Remodelei o meu consultório, reactivei todas as convenções e mandei colocar alguns autocolantes a informar que iria reabrir no próximo dia 1 de Setembro.
Passei os dias olhando para o computador e a folhear o Simposium, na esperança de voltar a ver novamente a sala de espera cheia de pacientes a aguardar uma consulta, mas os meus antigos doentes não regressaram, não voltaram a acreditar, o que aumentava o meu desgosto e frustração.
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No segundo mês as coisas começaram a sorrir, alguns começaram a surgir nas consultas.
O professor Matias, a Dona Zulmira viúva do Camilo Farmacêutico, a Esmeraldinha, o Zé da Moca presidente da Junta, o Chico da Aparecida e até, o meu amigo, o Padre Querubim.
Não era propriamente o ganho que me fazia falta, felizmente não precisava, mas motivação de ver que as pessoas voltavam a confiar em mim, no médico que sempre os serviu e continuava a estudar para poder prestar melhor serviço ao cuidar da saúde de todos.
A pouco e pouco a animação voltou ao consultório e, a Zefa, retomou o seu lugar de minha assistente no consultório.
Voltei a sorrir.
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Era uma quinta-feira quando me apareceu na consulta a Isabelinha, filha do Zé Inácio, aperaltada como se fosse para um casamento.
Quando me estendeu a mão direita fiquei petrificado, num dos dedos brilhava o anel que eu tinha oferecido à Vera.
Gelei, fiquei estarrecido, não tinha dúvida porque tinham-me garantido, na compra, que era exemplar único.
A custo fui recuperando e tentei disfarçar:
-Então Isabelinha, quais são as tuas queixas?
-Sabes, disse ela, eu nunca me preocupei do que diziam de ti, sempre soube que eras inocente,mas só hoje arranjei coragem para vir, preciso de falar com o amigo e também preciso do médico.
Contou-me dos problemas já antigos, dos pruridos nos cotovelos, na descamação das unhas e do mau estar que sentia.
Observei as unhas, mais interessado em ver o anel do que no resto, e arrisquei um diagnóstico que pensei estar certo:
-Penso, Isabelinha, que tens Psoríase.
Olhou-me com os olhos marejados de lágrimas, a custo conteve o choro, estendeu a mão e agarrou-me o braço.
-Sabes, Rogério, o que tenho parece grave, mas não é o que mais me preocupa neste momento. Sei que me vais tratar e que vou ficar boa, tenho confiança no teu saber.
-Vou sim tratar de ti mas, não te quero enganar, a tua doença ainda não tem cura, vamos controlar e arranjar maneira de te manteres confortável. Mas, desculpa a pergunta, donde te veio esse anel?
-Pois era ai que eu queria chegar, reparei na tua mudança quando o vistes no meu dedo. Não é meu, é teu, vinha para to devolver.
Ia dizer qualquer coisa mas ela não deixou:
-Como sabes a Vera era a minha melhor amiga, éramos confidentes, como irmãs. Quando aconteceu aquilo, deu-me este anel e pediu-me para to entregar. Disse-me que não teve força para não o aceitar, porque tu não merecias, porque eras o melhor homem que se podia desejar, ela quis mas não teve coragem.
Aqui tens o anel, é teu.
-Mas Isabel, como é possível a Vera está morta. Tu sabes!
-Não Rogério, a Vera abalou para o estrangeiro, não sei para onde, foi ter com alguém que conheceu na Internet.
Não foi capaz de te decepcionar, pediu-me para te devolver o anel e só hoje encontrei coragem para o fazer, Espero que me saibas perdoar.
Mas, perguntei.
-E o cadáver?
-Não é de ninguém conhecido, foi apenas uma boa coincidência!