quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

A travessa do Salgado

 

Foi há muitos anos, tantos que não os sei contar, apenas sei porque o contava o meu trisavô, depois o meu bisavô repetiu e, muito mais tarde, ouvi da boca do meu avô. Depois deste deambular pela tempos é natural que os factos e, acontecimentos tenham alterado, umas vezes por omissões ou  esquecimento, ou enriquecidos por uma imaginação mais fértil.. 

Nessa altura, dizem, quando um avião passava vinham todos à porta embasbacados, olhar o céu na esperança que alguém, lá de cima, deitasse uns confetes para colorir o espaço. Nunca aconteceu, que se saiba, mas as pessoas sempre ficavam à espera.

Eram tempos difíceis, as raparigas namoravam à janela com a guarda da mãe, ou de uma avó, que adormecia para alegria dos namorados. Muitas vezes, apesar desta guarda apertado, algumas das moças apareciam grávidas mas, tal como nossa senhora, era por graça divina.

 Casavam à pressa, antes que o gaiato ou gaiata se lembrasse de fazer, o baptizado em conjunto.

O mundo girava à mesmo velocidade, mas ninguém se apercebia, o tempo era calmo, sem atropelos, sem nada de importante, que pudesse quebrar a doce quietude da pequena aldeia, perdida num recanto da planície alentejana.

Havia fome e o trabalho não abundava mas, sorriam e saudavam-se, sempre, que se cruzavam nas ruas. Era seguro, fosse a que hora fosse, ir até à venda ou onde fosse, ninguém falava em roubos ou assaltos, também não os havia, era tão seguro que quando saiam, mesmo à noite, as portas ficavam no trinco e as janelas, apenas encostadas.

Foi sempre assim até que o Januário, um dia, deixou em polvorosa a pacatez da aldeia. Deviam ouvi-lo em pleno largo da Igreja, parecia um político, daqueles que apareceram mais tarde, gesticulando e com um certo terror nos olhos:

-Acreditem porque é verdade, na Travessa do Salgado, mesmo ao lado da horta do Afonso, há uma assombração, coisa medonha, nunca vi ou ouvi coisa assim.

O Zé Alegria não conseguiu ficar calado e perguntou:

-Mas ouve lá Januário, estavas bêbedo, como de costume, ou ninguém te tinha pago um copo?

-Bom...bom, a conversa já esteve melhor! Não digo mais nada e, quando um se borrar de medo, como eu, logo ficam a saber.

O facto é que logo que a luz do dia ia desaparecendo, a travessa e seus arredores ficavam desertas, mesmo quem morava perto, ia dar uma volta para evitar passar por lá.
.
A travessa só tinha uma casa e desabitada, pertença do padre, herança dos pais que faleceram, já, há alguns anos. O padre nunca  a usou, estava ali abandonada, nunca ninguém mostrou vontade de a alugar, pois o local era pouco atractivo, apenas os muros, das traseiras das hortas, eram a sua companhia.

Na sexta-feira,  o Celestino, e um primo beberam um pouco mais do que o costume e, a noite tinha tomado conta da aldeia, quando se meteram à rua a caminho de casa, toldados pela bebida procuraram o caminho mais curto, na ânsia de chegar ao conforto da casa,  começaram a descer a Travessa do Salgado sentiram um arrepio que em vez de os deixar paralisados, lhes deu corda às  botas para fugirem a bom fugir, só pararam em casa.

No outro dia não se falava noutra coisa, o Celestino e o primo Onofre foram assombrados, tiveram a péssima ideia de passar na travessa, e ouviram os gemidos, as correntes a arrojarem no chão, uivos que só podiam ser sobrenaturais, coisas que batiam nas paredes e luzes fugindo, de um lado para o outro, algo que só podia ser do outro mundo. 

Parece, até, que o Onofre ficou meio apanhado, não diz coisa com coisa.

-Mas do que estavam à espera? Brincar com as almas é coisa que não se faz, sentenciou Isidoro das Tretas.

-É verdade há coisas que temos que respeitar, gritou Chico Baldosas, mas isto assim não pode continuar. As coisas só acontecem quando anoitece, por isso durante o dia a casa não deve ter assombrações, logo podíamos, dois ou três com mais coragem, fazer uma sortida à casa durante o dia. 
A casa tem uma janela para a horta do Melicias, não deve ser difícil de  arrombar.

-Comigo não contem, disse logo, José Fonte. Ainda as coisas correm mal e temos a guarda e, o padreca, à perna e ele não é flor que se cheire, ainda somos acusados de um assalto.

Chico Baldosas, não se conteve:

-Então o que queres fazer, deixar andar o povo cagado de medo, os putos assustados e os homens encolhidos, para se fingirem valentes? Se è isso que queres tudo bem, mas eu alinho na ideia do Chico, e se ninguém quer arriscar vamos os dois.

Mestre Simão na sabedoria dos seus setenta anos pediu calma:

-Pessoal com ditos e palpites não vamos a lado nenhum, o Chico e o Zé, cada um a seu modo, tem razão, mas temos um problema para resolver, e isso é o mais importante.

Estamos aqui oito homens, pudemos votar e a maioria ganha, e faz o que tem a fazer, os outros não se metem e cada um vai à sua vida. Que acham?

Não foi preciso votar, mesmo os mais renitentes, se mostraram prontos para avançar.

-Bom já que estamos de acordo, insistiu Chico Baldosas, temos que fazer as coisas da forma certa. Eu falo com o Melícias, para nos deixar ir pela horta, e o Zé pede ao Orlando que é latoeiro para abrir a janela sem causar estragos.

-Estamos todos de acordo?

-Tá combinado! Responderam.
 
-Então, continuou Chico, cada um trata da sua parte e amanhã, que é sábado, encontramo-nos aqui, às oito.



Cada um foi á sua vida, uns preocupados outros, pareciam, mais tranquilos.

****

Ainda não eram oito horas e estavam todos, agora eram já eram dez homens, o Meliciais e o Orlando serralheiro tinham engrossado o grupo.

De seguida , o Melicias abriu o portão e entraram todos sorrateiramente.

Encostaram uma escada à parede, junto à janela, com paciência. o Orlando  desenroscou uns parafusos, tirou o fecho e a janela de guilhotina, abriu facilmente.

Quatro dos mais afoitos, galgaram a escada e saltaram para o interior da casa.
A janela dava para uma casa de banho bem apetrechada, com uma celha para banho, lavatório com bacia e balde e com um espelho na moldura, a seguir um quarto pequeno mas, impecável de aspecto, cama de casal com dois almofadões da cor da colcha florida, na parede um grande crucifixo, dava um ar mais sacro.
A seguir uma sala rústica que  simultaneamente  era cozinha, com uma grande chaminé, onde se viam umas varas atravessadas, onde  punham os enchidos ao fumeiro.
Um grande jarro para aquecer as agua,s para os banhos, estava sobre uma trempe na chaminé. 
O armário bem fornecido de chouriços, presunto e outras iguarias.
Numa prateleira improvisada, um razoável abastecimento de bebidas, depois a sala de entrada mobilada de forma muito moderna, chão de baldosas cor de cereja, estante com muitos livros, bem encadernados, Zé bem os olhou mas, livros não era a sua especialidade. Dois sofás claros, com uma mesa de vidro ao centro onde repousava um cinzeiro e duas molduras vazias.

Na parede, em frente, uma espécie de aparador, da cor da estante, encimada por um quadro a óleo de uma paisagem com dois cavalos de patas erguidas. 

Em cima do móvel uma grafonola, de corda, alguns discos de 78 rpm e um velho rádio, mais algumas molduras vazias e diversos objectos decorativos. 

Na parede, por cima da porta, um tabuleiro com diversos candeeiros a petróleo, no chão, junta à porta de entrada, um monte de correntes de metal.

Emanuel, não se conteve, e em surdina desabafou:

-Porra que estas almas penadas tratam-se bem!

*****
Voltaram a sair por onde entraram, Orlando voltou a colocar a fechadura e pouco ou nada se notava.

*******
Juntaram-se cabisbaixos, cabeças confusas, pensamentos baralhados.

Foi então que o Gilberto pareceu ter uma ideia brilhante:

-E se formos falar com o padre?

-Estás doido ou que? Ouviu-se a uma só voz. Vais e dizes senhor prior, eu e mais 9 parvos, como eu, assaltamos a sua casa, não roubamos nada, mas arrombamos uma janela e andamos a cheirar tudo. É isso que vamos dizer? 

Mais uma vez a experiência do mestre Simão veio ao de cima. 

-Vamos pensar com clareza, nada de precipitações. Eu não pulei a janela, já me falta agilidade para isso, mas pelo que me contam os espíritos devem ser de carne e osso e tratam-se bem.

Andam a caçoar com o pessoal. Sabem o que eu penso? É a canalha, sabem que a casa está abandoada, que o padreco não lhe liga, arranjaram uma chave e vão, como eles dizem, curtir a noite.

Sabem que o pessoal respeita essas coisas de medos, arranjaram as luzes, os barulhos e as correntes e estão descansados.

-E então que vamos fazer? Perguntou Gilberto.

-Bom! Respondeu mestre Simão, tenho uma ideia mas é melhor esquecer, porque é mesmo maluca.

-Talvez não seja, responderam, diga o que está a pensar!

-Vou dizer o que estou a pensar, se calhar estou a pensar asneira, mas vou dizer.
Essas coisas das assombrações, são sempre as sextas-feiras ou sábados, à noite, logo é farra de fim de semana. 
Na próxima sexta-feira e, se for preciso no sábado, vamos estar à espreita em todas as ruas, que vão ter à travessa, quando dermos por eles, deixamos que vão para a animação e a seguir, com uns varapaus, nas mãos, aparecemos para a festa e que festa vai ser! Num instante acabam as almas penadas!

O Jeremias chegou mesmo a bater palmas.

-Boa ideia mestre, sexta-feira vamos à caça!

*******

Sexta-feira, muito antes da hora, distribuíram-se, muito discretamente, de tocaia, nos locais de passagem para a travessa.

O acesso à travessa tinha três possibilidades, subindo ou descendo a rua da Restauração, a travessa ficava mesmo a meio ou, então, vindo do largo do Moinho Velho.

O Jeremias, o Chico e o Gilberto esconderam-se, de olhos bem aberto, no largo. 

Mestre Simão, Orlando e Onofre ficaram no principio da subida, da rua, e os restantes, escondidos na escada do Melícias, tinham a seu cargo a vigilância da descida da rua.

Tomaram conta dos postos de vigia, eram oito horas, evitaram fumar ou fazer qualquer barulho.  Mas 
chegadas as 11, da noite fria, e nada de nada. Como tinham combinado desistiram e foram juntar-se aos colegas que estavam no largo.

Juntaram-se, via-se um ar de desanimo e frustração, estavam  convencidos que tudo ia correr bem, e poderem desmascarar os brincalhões, que aproveitando a crendice popular, se divertiam e faziam as suas farras. 

Iam espreitar a casa, eram 10 homens cansados e num total desconforto pelo fracasso.
 
Parecia, ao longe, tudo calmo e sossegado mas quando entraram na curva, foi o descalabro, os urros eram lacinantes, o barulho das correntes a arrastar, enquanto  luzes acendiam e apagavam ao compasso de gemidos doloridos.

Onofre foi o primeiro, largou em debandada, levando na sua peugada o Jeremias e o Gilberto, pareciam ter asas, desapareceram como se um mar de demónios fosse no seu encalço.

Ou outros sete olharam-se, num misto de medo, de desanimo e na procura  dum pouco de coragem que ainda lhe sobrava.

Chico Baldosas, num assomo de coragem, gritou para os seis companheiros que lhe restavam:

-Eu não fico assim, vou arrombar a porta e as almas, ou o que seja, tem que se haver comigo.

Foram sete ombros, que de repente, levaram de vencida a porta que os separava do desconhecido, o estrondo foi enorme, a fechadura saltou.

No meio da sala o padre, em pelota, dançava com a Sofia, mulher do Morgado, emigrado na Suíça, que totalmente nua, se embalava dengosa, nos braços do pároco.


Agora o povo voltou ao seu sossego, o padre mudou de ares, a Sofia foi continuar a sua dança na Suíça, mas com um par diferente, o seu marido, que não sabia  que também tinha um par diferente, mas de cornos. Coitado! 



segunda-feira, 25 de novembro de 2019

                                            
 
 
 

 
 
                      Saudades
 
 
 
Partistes, sem um beijo na despedida
Apenas a tristeza, que li, no teu olhar
Disseram que tinhas desistido desta vida
Que não tinhas mais forças para lutar
 
Sem ti, fiquei perdido entre os demais
Procuro e apenas encontro a solidão
Olho o céu, nas estrelas, procuro os sinais
Da luz, que desejo, só me resta a escuridão
   
Agora, aqui, perdido, não sei o que fazer
Chorar não consigo, as lágrimas secaram
As orações não saem, esqueci o que dizer
 
Sinto a saudade e tento viver com esta dor
Mas espero, como sempre combinamos
Que me leves, para estar contigo, meu amor

terça-feira, 24 de setembro de 2019


 

Tinha parado este meu Blogue, mas o desfortúnio, por duas vezes, fez-me voltar.

Primeiro a morte da Leninha, minha amiga destas lides.

 

Agora uma pequena homenagem ao amor da minha vida, que depois de 2 anos e meio de sofrimento, partiu em paz.

Perdi metade de mim, a vida nunca mais será a mesma. Os dias são longos as noites escuras, imensas e vazias.

 

Minha querida Ilda, onde estiveres, acredito que nos está a ver e, decerto, feliz por saberes que um dia vou estar, aí, novamente contigo. O nosso amor é intemporal, a morte só consegue criar um hiato, mas Deus um dia, vai-nos deixar caminhar outra vez de mãos dadas. Até breve amor.

 

 


 

 

 

 

UMA VIDA

 

 

 

Tinha acabado de fazer 23 anos e parecia já ter vivido uma eternidade. Não tinha rugas no rosto mas tinha, dentro do corpo, as marcas de uma existência difícil.

Ficara órfão, de mãe, aos 7 anos e o pai, homem simples, perdeu todo o interesse pela vida e procurou, no álcool, o refúgio para a perda da mulher que, sempre, tinha sido a verdadeira razão da sua existência.

Perdeu a mulher, o emprego, a dignidade e estava próximo de perder o amor do filho.

 

                                               ******

 

O dia estava lindo e o ribeiro corria em turbilhões, pois a chuva dos últimos dias tinha aumentado consideravelmente o caudal.

Gustavo ia atirando pedras, que em saltos iam deslizando sobre as águas. Havia três dias que não ia à escola, não se sentia bem junto dos outros rapazes, com os calções tão delidos que a cada momento tinha receio de ficar com o rabo à mostra e ser o motivo da chacota dos colegas. O Fernando era o único, verdadeiramente, seu amigo e que com ele, muitas vezes, dividia o lanche. Outras vezes era a dona Alzira que o chamava e, lhe aconchegava o estômago, com uma tigela de sopa e uma bela fatia de pão untada com manteiga.

 

                                                              *****

 

Quando tentava olhar para o passado, apenas via um rapazinho que lutava contra a adversidade, que se alimentava da generosidade das vizinhas, com um pai de grande coração que vivia anestesiado, nos copos de vinho, que os amigos lhe iam pagando nas tascas da aldeia.

 

Quando fez 14 anos o senhor Arlindo deu-lhe um lugar na mercearia, a troco de umas poucas moedas e por lhe encher o estômago em duas refeições diárias.

 

Aos 18 anos arranjou emprego, na vila, na cooperativa.

 

Era difícil, ao fim de um dia de trabalho a pisar uvas, a girar o engenho para esmagar as azeitonas ou a carregar as sacas dos cereais, voltar a uma casa vazia, onde apenas o "mandrião", velho rafeiro amarelo, escanzelado e brincalhão o vinha receber com grandes festejos, num alegre abanar de cauda.

 

Por toda a casa as recordações andavam de mãos dadas, com as saudades de uma mãe de quem já, quase, esquecera o rosto e a imagem de um pai, arrastando um desgosto afogado no álcool.

Era difícil olhar as paredes tão vazias e, ao mesmo tempo, tão cheias de lembranças.

 

                                             *******

 

Neste domingo soalheiro, como habitualmente, procurou as margens do ribeiro onde, as suas pedras, faziam as melhores e mais longas derrapagens, deixando círculos que suavemente iam morrendo nas margens. As libélulas, quais maquinas aladas, pousavam suavemente nos caules que emergiam das águas. As aves, em voos rasantes, deixavam um risco de asa antes de mergulharem na superfície ondulada na procura de alimento. Em lado nenhum se sentia tão calmo, parecia que o murmúrio da aragem lhe sussurrava os conselhos, com que a mãe o acompanhava. Por vezes, era tão nítida que parecia que a voz não era trazida pelo vento, mas que a mãe estava tão presente que até doía

.

Ao princípio tinha medo mas agora até ficava mais tranquilo. Fechava os olhos e imaginava-se aconchegado, nos braços macios, e banhado no perfume que nunca esqueceu e que entrava no seu corpo, tomava conta dos seus nervos, embebia os seus músculos, entrava no seu sangue e percorria-o todo numa doce sensação de paz e de tranquilidade.

Chegou a adormecer embebido nessa doce sensação de tranquilidade e, quando acordava, sentia, mas sentia mesmo, no ar aquele aroma que o corpo da mãe exalava e que lhe dava aquela paz que o tornava, por momentos, o mais feliz menino de mundo.

 

Ainda hoje, e já vão decorridos tantos anos, quando pousa a cabeça na sua almofada, sente a mão da mãe aconchegando a dobra do lençol.

 

Fecha os olhos e tenta imaginar aquele rosto, mas a imagem esta um pouco difusa, não consegue descodificar os pontos, que na sua mente, tenta compor o todo que aos poucos se tem desvanecido. Quando contempla a amarelecida foto que, religiosamente, guarda entra as páginas da Bíblia parece que o sorriso se abre mais, mas está cada vez mais esbatida. A mãe está sempre com ele, o seu cheiro, toda a sua essência mas o rosto estava a fugir, cada vez mais desbotado, como se quisesse envelhecer e não ficar na idade do filho que ia crescendo.

 

Naquela manhã a ribeira corria tranquila, no ar sentia o cheiro das flores de loendro que florescem nas margens.

 

Gustavo estendeu-se numa pedra e ficou a contemplar o horizonte e, a imaginar o que seria a vida para além daqueles montes, que ao longe, pareciam encostar ao céu e fazerem a fronteiro entre a sua existência e o outro mundo que um dia ia descobrir.

Sempre desejou fazer a trouxa e apanhar a carreira que o levasse para esse desconhecido da cidade, mas não podia deixar o pai.

Se ele partisse quem  o iria recolher, ao fim do dia,  à tasca do Onofre?

Voltou quando a fome o começou a apertar mais e as amoras não eram, já, suficientes para a enganar.

                                                                    *********

 

Não demorou muito que uma cirrose levasse o pai, que até à hora da morte continuou sempre a reclamar pela sua Lena, que tão cedo tinha partido.

Gustavo, ficou sozinho neste mundo onde o colocaram, sem lhe pedir opinião, e com poucas condições para poder lutar pela sobrevivência.

Agora não tinha mais ninguém a não ser aquela, desconhecida e longínqua, tia que diziam ter na cidade.

A casa podia ficar fechada e de certo que a vizinha não se importaria de ficar com o velho rafeiro, que desde a morte do pa,i deixara de abanar a cauda e ia definhando lentamente, deitado na soleira da porte.

Era uma decisão difícil, tinha medo do mundo que desconhecia, receava toda a confusão que via quando espreitava as notícias, da televisão, na taberna.

Agora já nada havia a fazer, já dissera ao seu chefe, senhor Pica, que deixaria de trabalhar na cooperativa e que ia abalar para a cidade.

 

A cabeça andava num turbilhão, as ideias estavam baralhadas, o medo tinha-se apoderado de todos os seus sentidos. Como ia enfrentar o desconhecido, como se iria orientar na cidade grande? O bulício, o frenesim, o trânsito louco e toda a voracidade, que o iriam tragar numa loucura a que tinha que se habituar.

 

Tinha tudo programado, amanhã cedo apanhava a carreira que o levaria ao comboio, depois seria a grande aventura.

 

Foi uma noite de insónias, em todo o sonho via homens, sem rosto, que o perseguiam e quanto mais fugia mais se aproximavam, queriam à força que ele entrasse num comboio sem janelas, pintado de negro e donde saiam sons e gemidos que o arrepiavam. Acordou encharcado, corpo dorido.  Teve medo, há muito que o não sentia.

 

Voltou a adormecer e viu a mãe que, tal como os homens, tinha o rosto coberto por uma névoa, mas o perfume era o mesmo, doce, suave e reconfortante. Ficou inebriado e tranquilamente dormiu em paz o resto da noite.

 

                                      *********

 

A cidade era enorme e a confusão ultrapassava tudo o que tinha imaginado, pessoas para a direita e para a esquerda num atropelo sem respeitarem nada nem ninguém.

Gustavo estava deslumbrado e confuso.

Quando agarrado à mala, enfrentou a rua ficou perdido sem saber o que fazer. Estava inquieto, baralhado e o seu olhar andava perdido ao tentar abarcar tudo o que o que o rodeava, aqueles prédios altos, os carros que se cruzavam e que só por milagre passavam sem nunca se baterem.

 

As moças de pernas altas e descobertas, que se equilibravam em saltos, tão altos, que pareciam, mesmo, as andas que um dia o senhor Zé Adelino lhe tinha feito.

 

Uma, por sinal bem jeitosa, até lhe disse:

-Então filho hoje não queres nada?

 

Ficou ruborizado, tinha ouvido falar delas, mas sempre pensou que eram fanfarronices de quem vinha à cidade, afinal era mesmo verdade.

 

Teve vontade de falar com a menina, mas não sabia, mesmo, o que lhe dizer.

 

Arranjou um quarto numa pensão barata, num terceiro andar, com uma escada íngreme e malcheirosa. A cama era pior da que deixara na aldeia, lençóis manchados e com cheiro a azedo de gordura e sexo. As paredes do quarto tinham manchas, de humidade, que aos seus olhos se tornavam em fantasmas, que o iriam prosseguir ao longo da noite e logo aqui, tão longe, na cidade grande onde a mãe não o podia ajudar.

 

Precisava descansar, amanhã fazia 25 anos e tinha reservado, como presente, um dia de descanso para uma visita à cidade.

 

O cansaço foi seu aliado e a noite foi rápida. Quando acordou pensou que tinha que aproveitar o dia, e depois tinha que procurar uma ocupação pois o dinheiro que tinha depressa ia acabar. O quarto imundo era caro, o preço de uma refeição estava acima das suas possibilidades.

 

                                                       *******

 

Vagueou pelas ruas cheias, encheu os olhos de coisas que sabiam que existiam, mas que ele nunca vira. Passeou por avenidas que pareciam não ter fim, andou ao acaso e, de repente, tinha a impressão de estar de volta a sítios por onde já tinha passado.

Encontrou o rio, que tal como a cidade, era enorme, sujo, com barcos que deitavam fumo das chaminés. Teve saudades da sua ribeira de águas limpas, que corriam ligeiras, saltando de fraga em fraga, com as margens enfeitadas de juncos.

 

Este rio era triste, as águas espraiavam-se contra as margens onde os barcos baloiçavam acompanhando a cadência dessa ondulação.

 

Esteve horas olhando ao longe e a imaginar para onde iriam todos os barcos que o sulcavam.

Estava a entardecer e a fome obrigou-o a entrar numa tasca, onde se ofereceu uma refeição acompanhada de uma cerveja, afinal era o seu aniversário.

 

Começou a pensar no regresso e nas voltas que teria que dar até encontrar a rua da sua pensão, tinha escrito num papel os nomes, embora tivesse a certeza do a encontrar.

 

Seguindo o seu sentido, atravessou o largo e seguiu a avenida, tinha a certeza, donde viera.

 

Ao fim teria que voltar à esquerda e seguir até encontrar, aquela praça, com a estátua de um cavaleiro.

Já a estava a ver ao longe e sorriu satisfeito.

 

Levava a cabeça cheia de sonhos e projectos, arranjar um emprego, alugar um quarto com uma cozinha para poder preparar as suas refeições, ter uma vida diferente.

 

Embrenhado nos seus pensamentos saiu do passeio.

 

Ouviu um guinchar de travões, sentiu uma pancada bruta, viu-se a voar passou por cima carro e ficou estatelado na calçada. Sentiu uma dor aguda, que parecia subir pelo seu corpo, mil estrelas brilhavam no seu cérebro, um liquido viscoso corria da sua cabeça, um doce torpor ia tomando conta do seu corpo. Tinha muito sono e não queria ouvir o que diziam, as pessoas, que o rodeavam, só lhe apetecia dormir.

Junto a ele a mãe sorria, desta vez o seu rosto era tão nítido, estava rodeada de uma luz tão brilhante e a musica era tão suave.

 
A aldeia estava linda com os campos cobertos de flores, o ribeiro corria manso, a sua casa estava rodeada de açucenas, o " mandrião" abanava a cauda de alegria.

A mãe, delicadamente, segurou as suas mãos.

Pela última vez sorriu.


 

 

 

quarta-feira, 15 de agosto de 2018


Quando parei este Blogue, pensei que seria para sempre.
Era a minha ideia, mas há coisas que não prevemos.
Um dia, alguém que me olha lá de cima, tenho a certeza que sim, pediu-me 
para continuar, por ela e para mostrar que não tinha perdido a esperança.
Voltei, não sei se para ficar, mas cara Leninha como desejavas, para ti, este pequeno conto. 
A esperança, graças a ti, não a perdi.
As saudades são muitas.






Josefine


Penso que era Josefine, pelo menos foi o que me pareceu ouvir, mas não tomem como certo, pois eu, por vezes confundo as coisas. Não é assim muito importante, pois foi uma aparição fugaz, só o momento e o olhar que me deixaram, assim, nesta confusão.

Se não fosse a voz rouca do homem quando gritou: 

-Josefine, allons-y. 

Se calhar nem reparava, mas o tom perentório despertou a minha adormecida atenção. Olhei e não estou arrependido, os olhos eram lindos, dois rubis encastoados, num rosto onde a tristeza não conseguia esconder a obra prima do criador em dia de muita inspiração. Parecia pedir socorro, num gesto mudo, quando se voltou e seguiu à frente do homem.

Acho, mas não tenho a certeza, que ela ainda me olhou num soslaio muito subtil. 
Confesso, talvez seja vaidade ou uma certa presunção, mas penso que  o meu ar paternal tem um efeito positivo nas mulheres.


Passei o resto da tarde com o pensamento enredado em futilidades. 
Seria que a menina de olhos de rubis, estava sequestrada vivendo debaixo de ameaças ou, o homem da voz rouca era apenas um pai que não queria ninguém a rondar a porta?

Às vezes penso que não fui corajoso, poderia ter abordado, saber se necessitava de ajuda, mas o homem, da voz rouca, tinha um aspecto muito dissuasor, cabeça rapada no cimo de um pescoço quadrado, tronco redondo, donde saíam dois braços que pareciam troncos com dois pilões nas pontas.


Acho que não foi covardia, foi bom senso, pois um homem morto nunca iria ser útil.





Mas, para ser objetivo, vou contar tudo. Eu sou um citadino puro habituado ao bulício e ao desassossego da cidade. A minha irmã mais velha, atreita a bucolismo e a essas coisas da natureza, casou com um transmontano que foi até Lisboa cursar agronomia. 
Foi bom, pois,  juntaram o útil ao agradável. 

Ela, a Luísa, queria fugir da cidade e respirar o ar puro do campo e ele, o Júlio, sonhava em fazer das terras dos pais uma grande quinta, criar gado e explorar a vinha. 
Foi o par perfeito, realizaram os desejos e vivem felizes com um par de rebentos, uns tantos cães e, nem sei quantos, mas pelo menos meia-dúzia de gatos.

Em Agosto é a festa da aldeia, a população triplica, os emigrantes voltam e a terra parece uma grande urbe.

Eu, também ajudo, não sou de cá mas nesta data venho visitar a família e fico uns 
dias. 
Já conheço muitos, tenho que beber e conversar com os demais, percorrer a feira, assistir aos arraiais e, pasmem com isto, cantar e dançar com os grupos folclóricos, dizem que tenho jeito.

Acho que era capaz de me habituar a esta vida, mas a profissão não dá, quer cidade.

Pois foi num desses momentos em que, no meio do pó, descia a rua onde as barracas vendiam toda a espécie de guloseimas e artesanatos, que eu ouvi aquele “Josefine, allons-y”.

Olhei mais pelo tom da voz e, pela curiosidade, estou arrependido.

Não me sai do pensamento, bem olho na esperança de a ver por aí, se a encontrar não sei o que fazer mas, vou arranjar uma maneira, sou perito em arranjar soluções para assuntos difíceis, ou tenho essa pretensão, embora me pareça que o acompanhante, pai ou guarda-costas, não deve ser osso fácil de roer, mas pode haver uma solução. 


Se for o pai apresento-me e peço a mão da filha, ele só tem duas soluções pensa, que sou maluco, e aceita ou, não pensa nada, dá-me um soco e deixa-me a dormir. Sou perito em soluções fáceis para assuntos difíceis, o problema é raramente resultarem.

Estava a entardecer, fui para casa. Juro que não sonhei com ela, sou uma pedra, é 
cair na cama e vai até de manhã, de seguida.

************

Hoje é outro dia, levantei-me com uma fome danada, a mana tinha um pequeno-almoço como o dos filmes, não me fiz rogado.
Ela, o meu cunhado e os meus sobrinhos, iam a Bragança. Insistiram comigo mas prefiro ficar, tenho algo a descobrir.
Não contei nada, dei a desculpa da festa, e resultou.
O Júlio até se atreveu:

-Se não fosse a chata da tua irmã, deixávamos a ida para outro dia e 
fazia-te companhia. Mas sabes como ela é!

******
Ainda bem que o Júlio não pode vir, é uma grande companhia, mas não me convinha nada. 

Voltei e fui até ao final do caminho, comi um frito no Zeca das farturas, comprei um colar de pedrinhas coloridas para a minha sobrinha e uma flauta para o Luis, meu sobrinho. 

Num palco enfeitado com fitas, três bailarinas bem despidas abanavam os rabos, enquanto um cantor, com uma concertina, ia entoando uma velha canção. 

Pensei voltar, quando de repente me surgiu uma ideia peregrina, sou assim, a minha cabeça está sempre na procura de soluções e não é que acabei de ter uma possibilidade de descobrir algo.

Foi num momento que passei o filme na minha mente, ontem quando o voz rouca berrou a frase, eu estava na barraca da dona Zulmira, até já conheço os feirantes pelos nomes.

Aqui, onde os frascos de mel e outros produtos ligados à apicultura se encontram alinhados em prateleiras e no balcão pratinhos para os passantes poderem apreciar a qualidade dos produtos, garanto que são ótimos porque os provei e, foi no momento em que estava a saborear queSe eu ouvi, a Dona Zulmira também se deve ter apercebido. Vou falar com ela, compro um frasco de mel para adoçar a conversa, não preciso a Luísa têm muitos, mas eu quero arranjar uma espécie de introdução.

A Dona Zulmira iluminou o rosto com um sorriso, aliás tinha um riso bonito, e perguntou:

Então é hoje que vai levar uma das minhas especialidades? Melhor não encontra em lado nenhum as minhas abelhas são especiais.

-Vou mesmo, respondi, um daqueles de urzes.

-Boa escolha, foi dizendo enquanto metia o frasco num saco de papel.

Antes de pagar perguntei:

-Lembra-se, ontem quando aqui passei, um senhor grande, como um sobreiro, chamou uma tal Jaqueline e disse qualquer coisa em francês. Sabe quem são?

-Sei, se sei, respondeu, são uns imigrantes em França. É o senhor Isidoro, jóia de pessoa, e o filho Jaquim.

-Não são esses, exclamei, era uma menina linda com uns olhos verdes que até pareciam brilhar.

A Dona Zulmira deu uma saudável gargalhada, colocou os cotovelos sobre o balcão e disse, quase em sussurro:

-Nada disso! Era mesmo o senhor Isidoro e o filho Jaquim, o rapaz é meio amalucado, diz que nasceu no corpo errado e outras parvoíces assim, anda sempre vestido de mulher e pintado como essas, o senhor sabe às que me refiro, e quer ser Josefina. O pobre homem não sabe o que fazer, coitado, o que lhe havia de calhar, tão boa pessoa.

-Não posso acreditar, disse eu, está a brincar comigo?

-Eu a brincar? Antes fosse, para bem dos pobres pais e descanso daquela cabeça amalucada. A pobre da mãe, com a vergonha, já nem sai de casa. O pai vem com ele com receio que saia sozinho e seja maltratado pelas pessoas. Sabe como esta gente é? Com o pai ninguém se mete com ele, é uma joia, mas não o virem do avesso.

A estas horas, já devem estar muito perto de França, pois partiram hoje bem cedo.

******

Volto amanhã para Lisboa, afinal o campo não é para mim.