quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

A grande viagem








Era um estranho acordar, uma luz intensa tomou conta do espaço e deixou-me numa total paralisia. Tentei mexer o corpo mas era uma luta perdida, o meu pensamento, os meus desejos deixaram de existir, apenas me queria libertar mas, aquela espiral de luz, absorveu-me totalmente e senti-me deslizar num vórtice e, depois, o nada, apenas uma sensação estranha de existência.

Não sei quanto tempo passou, pareceu-me ser muito pouco, quando o canudo de luz me largou num lugar que não existe, num espaço que me custa a descrever, era surreal. Era uma espécie de uma sala onde uma penumbra fumegante não me deixava descortinar, bem, aqueles vultos altos e de aspecto desengonçado. Tinham uns rostos bicudos, uma espécie de cara de peixe, a boca era apenas um bico em fole que abria e fechava em pequenos movimentos. Eram muito estranhos e, muito mais estranho, o facto de estar aqui no meio destes seres.

Começo a perceber. Eles não falam, transmitem o que pretendem através do pensamento e, eu, pareço ser uma espécie de cobaia.
Andam à minha volta e estudam e analisam cada movimento, observam-me como coisa estranha, como se eu fosse algo de bizarro.

Os seres parecem todos iguais e só há uma pequena diferença, os mais altos têm, no meio da testa, uma pequena válvula que abre, e fecha, como se fosse um orifício para respirar mas, o que me confunde é os mais pequenos não terem essa válvula, mas sim, uma pequena protuberância, uma espécie de minúsculo chifre. Pensei que seria uma questão de casta.

Olhavam-me como se fosse um animal raro e tentaram comunicar mas, ao meu cérebro, apenas chegavam como que zunidos impossíveis de descodificar.
 De repente um dos personagens, dos mais pequenos, deslizou numa espécie de pé mecânico e desapareceu no meio daquela espécie de penumbra fumegante. Voltou, passado pouco tempo, com algo pendurado no gancho que lhe enfeitava um dos seis braços, pendentes, naquela espécie de tronco. Era um capacete, cheio de luzes e fios com ventosas que me enfiaram na cabeça enquanto, aqueles tentáculos, iam colando as ventosas em todos os espaços livres da minha testa.
                                                
De repente, fantástico, comecei a perceber tudo o que aquelas cabeças, de pargos mulatos, estavam a pensar e eles, pior ainda, compreendiam todos os meus pensamentos e ficaram baralhados, com essa comparação a pargo mulato.

Queriam saber muita coisa e prometeram devolver-me, ao mesmo local, se eu lhe fosse útil, caso contrário seria largado no espaço sideral.

Prometi, em pensamento, toda a colaboração. Queria voltar ao meu lar!

Começaram as perguntas, como era o sistema que governava a terra, como nos reproduzíamos, quais as classes sociais e um sem número de dúvidas que tive dificuldade em memorizar. Fui concentrando o, meu, pensamento, fui-lhes baralhando as ideias e deixando sair, em catadupa, a estrutura do planeta, países que mal se entendiam entre si.
No meu país, sermos governados por um presidente que tinha deixado a inteligência em Boliqueime, um primeiro-ministro a que só faltavam umas botas para ser igual ao Salazar.

Acho que leram bem o meu pensamento pois sabiam dum Salazar, não sei se o mesmo, mas isso não interessa, há tantos!

Percebi que queriam saber se havia oposição, havia (oh se havia!) mas eram todos iguais, davam tudo quando não tinham responsabilidade e depois era um fartar vilanagem.

Queriam saber se havia um comité de sábios. Tentei explicar que não, nada dos sábios, havia uma cambada de deputados que apenas se iam governando em trafulhices, corrupção e fingindo defender os interesses do povo, mas acabavam só por defender os interesses próprios. De quatro em quatro anos, renovavam mas ficava tudo na mesma.

Olhei para o lado e algumas daquelas figuras bizarras choravam. Nos grandes, as lágrimas, escorriam da pequena válvula, dos mais baixos um esguicho mas sem qualquer emoção.

Um, dos mais reluzentes, aproximou o bico do meu rosto, cheirava a  algo ácido, uma espécie de vinagre, perguntou como era a reprodução no nosso planeta?
Expliquei e, o meu pensamento foi tão real que, senti um suspirante bruaá de aprovação dos mais altos. O da válvula na testa, o que me fez pensar, que eram as fêmeas daquele planeta.

Deixaram-me especado e reuniram-se num círculo, tentei escutar mas os pensamentos não me chegavam. Estavam afastados!
Voltaram, os mais baixos à frente, pegaram-me com dúzias de pinças, enfiaram-me naquele tubo, feito de luz, e despacharam-me, penso que, pelo que pelo caminho da volta.

Senti o repelão, perdi a noção de tudo e acordei quando bati, com as costas, num amontoado de pedras que dividiam os canteiros de um jardim.

***

Era tudo estranho, tinha a noção de ter voltado à terra, mas não sabia onde estava. Era esquisito, não conhecia nada nem ninguém! Fui sugado na porta, de uma pequena vivenda, e era cuspido num jardim que ladeava um arranha-céus que parecia tocar o Sol.
Meu Deus, onde estou eu?

Em frente aos arranha-céus, eram muitos, passava uma avenida com seis faixas de rodagem e um imenso e bem organizado transito, havia carros muito sofisticados, que flutuavam, mas a maioria eram uma espécie de motas, sem rodas, que deslizavam sobre uma coluna de ar, totalmente suspensas sem qualquer contacto com o asfalto.

As pessoas passavam apressadas, roupas de cores de tons metálicos, eu parecia mascarado no meio destas pessoas. Dirigi a palavra a um passante, respondeu um rápido não tenho tempo! Mas foi bom, falava português, sabia que estava no meu país, só me falta saber onde.

Vou procurar um posto da polícia, conto tudo e eles vão ajudar-me, é a sua obrigação.

Vi um hotel com um sujeito, à porta, que parece um general, tantas são as estrelas e galões que lhe enfeitam o casaco.

Com ar humilde dirigi-me e comecei:

-Peço desculpa acabei de chegar da província e ando baralhado nesta confusão, só preciso me indique onde fica, o mais próximo posto da polícia?

Olhou-me, de alto a baixo, antes de com algum sarcasmo responder:

-É evidente que chegou da província, o seu aspecto e o desconhecimento mostram isso. Nem sabe que já não há postos de polícias. Quando precisamos ligamos o XOPT e, algum aparece e trata do resto.

Comecei a ficar um pouco nervoso, mas fingi o melhor possível:

-Mas não tenho telemóvel!

O raio do homem deixou uma gargalhada, que só não me irritou porque precisava dele, se não fosse isso tinha levado um estalo nas ventas.
Ai tinha, tinha!

-Sabe provinciano? Insistiu. Agora todos usam um phonebloks. Mas vou chamar um polícia, estou bem-disposto!

Tirou uma espécie de rectângulo de vidro que se iluminou quando lhe pegou. Não sei o que fez, apenas o ouvi dizer:
-Sou o concierge do Hotel Fairmont e tenho aqui um provinciano em apuros. Escutou o que lhe disseram, do outro lado, agradeceu, tocou no vidro que guardou no bolso.
 Olhou-me com altivez:

-Espere ali na esquina não tarda chega ajuda!

Na demorou, mesmo nada, e apareceu um policia que parecia tirado dum filme de ficção, farda metálica em tons dourados. Montava uma daquelas motas esquisitas que pareciam flutuar.

Perguntou-me:

-Afinal qual é o problema?

Gaguejei e a custo tentei explicar:

-Eu morava aqui, fui raptado e quando me devolveram não existe nada que eu conheça.

Vi pela cara, do guarda, que pensou que tinha um maluco para aturar.
Mandou-me subir para aquela coisa, quando me sentei umas cintas metálicas imobilizaram-me. Saltou para o lugar da frente e flutuamos durante algum tempo, até um edifício enorme. O veículo entrou por uma porta que, automaticamente, se abriu.

As cintas desbloquearam e o guarda conduziu-me a uma sala com paredes gradeadas. Mandou-me esperar. Foi pouco tempo, entrou uma mulher polícia de olhos amendoados.

Mandou-me sentar e pediu:

-Explique bem o seu problema.

Contei tudo desde que me senti sugado até que o tubo me largou nesta cidade.

Vi o olhar incrédulo, o que era normal.

-Bem, disse a senhora, enquanto com um ligeiro toque abriu um ecrã no tampo da secretaria, vamos elaborar um processo.

Perguntou-me nome, morada, profissão e data de nascimento.

Respondi:

-Sou António Policarpo da Silva, moro na Rua dos Eucaliptos na Vivenda Policarpo, sou cortador de carnes verdes e nasci no dia 7 de Maio de 1975.

-Em que ano? Insistiu.

-Respondi em 1975.

Olhou-me com um ar muito desconfiado, bateu com os dedos no teclado virtual, antes de me responder:

-Sabe que não falar verdade, às autoridades, é um crime muito grave e ocupar o nosso tempo com fantasias é muito pior. Estamos em Junho do no 2239, não me diga que tem 264 anos!

Só tenho uma solução, amanhã, será apresentado ao Juiz Comunitário e ao psicólogo, são eles decidem se vai preso ou se é internado no centro de pessoas com deficiências mentais. Garanto que nenhuma das hipóteses é boa!

******

Por vezes acordo com uma ligeira dor de cabeça, mas hoje é de mais! Dor insuportável, parece que vou endoidecer.
É natural depois deste pesadelo tão estranho, nem sei o que aconteceria se não tivesse acordado!
Ufa!






quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Amor para sempre








Já são 10 horas e eu ainda na cama, não é normal, este laxismo está a bulir com o meu pensamento.

Sou, como dizia alguém, o galo da manhã. Gosto de ver o sol a aparecer, timidamente, no cume do monte que se adivinha da minha janela e, digo adivinha, porque quando vou espreitar, para esses lados, o monte não é mais do que uma pequena elevação, porque a minha casa fica no vale e provoca a ilusão de um monte que não o chega a ser.

Mas isto é fugir à questão porque hoje foi diferente, não madruguei e ainda, agora, a vontade de sair da cama não é muita. Antes, quando eu tinha a Luzia, muitas vezes, deixava-me estar para não perturbar-lhe o sono de tão cingida que estava ao meu peito. Hoje estou só, ela abalou, consumida pela doença má.

Lembro o último sorriso na doçura das derradeiras palavras:

-Diogo, meu amor, vou partir mas fui a mulher mais feliz do mundo, só porque te tive para mim.
Vais seguir a tua vida e encontra outra que saiba, como eu soube, ser uma estrela na tua vida.
Sorriu, sorriso pálido, e morreu com os olhos fitando os meus numa, quase promessa, de continuar sempre a olhar por mim.

Foi há 11 meses e eu acordo, sempre, com essa sensação de a ter ao meu lado, enroscada no meu corpo.

Hoje foi diferente, acordei tarde sem qualquer sensação de companhia, só uma sensação de desconforto, que não me é habitual.

****

Há qualquer coisa que me preocupa, a minha lucidez não é a mesma, são dez horas e eu continuo na cama, não me apetece levantar, não me lembro de qualquer compromisso, não tenho nada para fazer só, mesmo, estar aqui deitado à espera nem eu sei bem do quê.

Ontem, foi o mesmo, deixei-me ficar neste torpor, neste preguiçar doce, com o pensamento de não ter nada para fazer e, afinal, tinha o casamento da Raquel e do Henrique. Foi um esquecimento inexplicável, se o Amadeu não tivesse telefonado, à noite, a saber o que se passava nem desculpa teria pedido ao casal.

Vou-me levantar, vou ver o meu monte e imaginar que, às 6 horas e 57 minutos, o sol nasceu, além, naquele sitio. Não vi, mas nasceu!

Levantei-me, não sei bem para que, não tenho nada para fazer! Ou tenho  e não me lembro! Agora ando assim!

Antes levantava-me cedo e ia trabalhar, agora fico em casa não sei porque, eu acho que tenho um emprego, mas não sei qual nem onde.
Um dia vou-me lembrar!

A Minha cozinha está um desalinho, a empregada não tem aparecido.
Ou será que a Guida já não  é nossa empregada?

Não me lembro, quando tiver vontade vou arrumar, deito fora as latas vazias, são de conservas, só tenho comido conservas, quando acabarem tenho que ir comprar mais. Não recordo onde se vendem mas, sou inteligente, vou descobrir.

Não sei se o cão tem comido, mas se calhar a Luzia não se tem esquecido, não o tenho ouvido ladrar.

Eu acho que vou fazer anos um dia destes, tenho que descobrir, é uma vergonha mas não me lembro. Não faz mal é muitas vezes assim, mas a Luzia convida os nossos amigos, faz uma festa e encomenda um bolo, de morango, como eu gosto, com velas a lembrar que é de aniversário, senão as pessoas até se podem confundir.

A casa de banho cheira mal, é dos esgotos, isso passa. O fulano que está no espelho não o conheço, como está aquele tipo, no meu espelho? Despenteado e com uma barba horrorosa. Não me vou preocupar, deve ser alguém conhecido, da Luzia, que veio tratar dos esgotos.

Tenho estranhado a televisão sempre apagada, a Luzia liga-a logo de manhã e fica até irmos para a cama. Se calhar já se fartou das telenovelas, não me admira é sempre a mesma porcaria.

Não percebo bem dessas coisas, mas devemos estar na Primavera, tantos pássaros, lá fora, esse chilreado está-me a incomodar, eu gosto dos pássaros mas podiam andar calados.

Tenho uma dor de cabeça enorme, a Luzia dá-me um café forte com limão e passa, mas ela deve ter ido à escola buscar o nosso filho, ou será filha? Não me lembro mesmo se temos filhos, acho que não!
Deve ter ido a qualquer lado, não costuma ir só, mas como me doía a cabeça quis poupar-me.

Já não tenho nada na dispensa. Será que a Luzia foi as compras? Sozinha? Não é normal!

Vou-me deitar até que ela chegue, não gosto de estar só, sem a Luzia, sem o cão e, até o gato desapareceu.
Acho que tínhamos um gato, mas posso estar a fazer confusão, ando numa fase que baralho tudo. Vou, então, para a cama depois a Luzia acorda-me para o jantar.

Sem ela eu não era nada!


*****


Foi o cheiro que alertou os vizinhos.

As autoridades abriram a porta e encontraram o Diogo, na cama, em adiantado estado de decomposição.

Segundo os médicos estava morto, pelo menos, há dez dias.

Deve ter morrido no dia em que completava 52 anos.