quinta-feira, 15 de abril de 2010

A Gazeta



Dia 15 de Setembro de 1970

Notícia da primeira página do Jornal “A Gazeta do Dia”:

A Doutora Maria Odete Ramalho, a nossa estimada médica, foi encontrada hoje de manhã, morta na sua residência.
Segundo o que nos foi dado a conhecer suspeita-se que tenha posto termo à própria vida.
Os familiares e amigos estão consternados e não vem que motivos a poderão ter levado a este trágico acto.
Só a autópsia poderá esclarecer convenientemente o que se terá passado.
À família enlutada apresentamos as nossas sentidas condolências.


Dia 1 de Outubro de 1970

Notícia da terceira página do Jornal “A Gazeta do Dia”

Um comunicado publicado pela Policia Judiciária revela que, pelas análises e pesquisas feitas, se chegou à conclusão que a causa da morte da Doutora Maria Odete Ramalho foi o suicídio, pela ingestão de um potente veneno que se suspeita ser Estricina.
Estricina é um poderoso veneno para o qual não se conhecem antídotos.
Posta de parte a hipótese de crime a P.J. vai continuar na averiguação dos motivos, que podem ter dado origem a este nefasto acontecimento.

Dia 14 de Setembro de 2000

Página 246 do Diário da Doutora Sofia Pinto Lacerda

Meu querido diário, vão passados 30 anos de insónias, pesadelos e angústias. Pensava que com o desaparecimento da Maria Odete o descanso voltaria à minha vida, mas puro engano.
Durante o dia, com a azáfama da clínica e o carinho dos meus pacientes, suporto mais facilmente mas as noites são grandes e dolorosas.
São os hipnóticos a única solução que encontro para o descanso que me permita levar a minha vida de trabalho. O facto de ser médica tem ajudado mas as habituações são constantes e a minha saúde sinto-a minada e cada vez mais frágil.
Naquela maldito dia 14, há trinta anos, pensei que tinha encontrado a solução e que fazendo desaparecer a causadora da minha infelicidade a vida podia voltar-me a sorrir.
Mas não, o Ricardo não voltou. O Ricardo foi, continua a ser, o grande amor da minha vida. Tínhamos projectado o nosso futuro na base desse amor que fomos alicerçando desde o tempo da Faculdade onde os três cursamos.
Éramos dois mas sentíamos a vida como se apenas fossemos um.
Um dia, ela, roubou-me o amor da minha vida, levou-me a razão do meu viver. Um dia, ela, arrancou-me a outra parte do meu eu, fiquei truncada da maior porção de mim.
Perdi a amiga e perdi o homem que me preenchia. Ganhei dentro de mim o ódio, o rancor e o desejo de vingança.
O entusiasmo deles durou apenas dois anos, pois o Ricardo não aguentou mais, deixou tudo e fugiu para África. Fugiu dela, pensei, quem sabe se um dia não poderá voltar para mim?
Naquele dia 14 fui fazer-lhe uma visita. Nem sequer ficou surpreendida, recebeu-me como se a minha ida fosse, ainda, habitual.
Falamos de nada na confrangedora situação da ambiguidade. Falou do Ricardo, como se houvesse alguma coisa a falar
-Sabes, O Ricardo fez-me a mim o mesmo que te fez a ti. Usou, abusou e quando estava farto desapareceu.
Apeteceu-me perder a calma, mas não.
Ela roubou-mo e sabe que fugiu porque não aguentou as leviandades e as frivolidades a que o sujeitava.
Perguntou, quase cerimoniosamente:
-Queres um chá?
Não queria outra coisa, não pelo chá, mas pela ocasião.
Colocou duas chávenas na mesa e foi buscar os biscoitos. Era a hora para verter o produto na xícara.
Estava nervosa. Bebeu enquanto ia mordiscando o biscoito. Depois foram os espasmos, as convulsões a asfixia. Olhou-me como que a pedir ajuda. Sorri. Lavei e arrumei a minha chávena. Fui embora, Nunca lá tinha estado.
Agora, meu diário, estou a dar-te a conhecer, pela primeira vez, ao fim de trinta anos.
Não estou arrependida, mas estou infeliz porque não valeu a pena e o preço que tenho pago é demasiado alto.

Dia 13 de Dezembro de 1970

Notícia da primeira página do Jornal “A Gazeta do Dia”

Vítima de doença prolongada morreu, esta madrugada, no Hospital Central a Doutora Sofia Pinto Lacerda.
Tinha acabado de completar 56 anos esta eminente cirurgiã a quem, a nossa sociedade, muito fica a dever.
O funeral realiza-se amanhã, pelas 12 horas, para o Cemitério local.
À família enlutada apresentamos as nossas sentidas condolências.


5 comentários:

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Manuel
Triste história...muito bem escrita.

beijinhos
Sonhadora

Unknown disse...

Uau!
Sabe que eu jurava que era verdade?
Manuel, como vc captou bem a situação constrangedora das duas...
E que desenrolar magistral. Nem deu pra ficar triste, tamanha a elegância.

Você está me saindo um contista de marca maior.

Deixa também te agradecer pela amizade, carinho e presença na minha vida. Presença que aprendi a esperar e comemorar.

AFRICA EM POESIA disse...

Andei por aí perto...
...............
Este fim de semana foi uma corrida .
Ontem fui ás instalações do Sporting
o Sporting é o máximo.

Fomos a todos os "cantinhos" da casa...

Academia e estádio.

o museu é algo que não sei definir... quero lá voltar o museu precisa de ser observado com mais calma...


beijos

deixo a minha poesia e um beijo

SORRISO


Sorriso lindo...
Sorriso belo...
É alegria dos grandes...
É o sorriso...
Dos meninos...
Que são netos...
É o sorriso...
Dos que seguem...
O seu caminho...
E têm o sorriso...
Mais lindo...
Do mundo!...

LILI LARANJO

Guma disse...

Caro amigo Manuel,
Excelente narrativa com requintes de malvadez.
Forte e sincero kandando e agradeço a sua companhia na minha cubata.

AFRICA EM POESIA disse...

MANUEL

venho devagarinho deixo poesia e um beijinho

SOU MESMO...


Sou mesmo...
Da mesma terra que tu
Da terra do chão vermelho
Da terra batida cheirando a pó...

Sou mesmo...
Da mesma terra que tu
Onde todos saltamos os rios
Corremos a apanhar borboletas...

Borboletas de cores lindas...
De gafanhotos que saltavam
Que pulavam à minha frente
Como quem brinca às escondidas...

E brincava na palha do café
Apanhava bitacaias nos pés
Comia manga, safú e goiaba
Apenas porque...
Sou mesmo...
Da mesma terra que tu...

LILI LARANJO