domingo, 9 de maio de 2010

Último olhar




As imagens são longínquas e encontram-se muito esbatidas no álbum da memória.

Fogachos iluminam, a curto espaço, a dormência de um cérebro confuso num emaranhado de emoções que morrem logo que tentam nascer.

Por vezes, parece querer sorrir e a boca desdentada faz um ligeiro esgar numa procura de articulação, que teima em não responder ao fraco estímulo de um cérebro já meio parado.

O olhar, difuso, vagueia como chama a bruxulear num sopro, numa aparente tentativa de encontrar algo que já não sabe bem o que é.

Os olhos piscos, deixam antever fogachos de uns recônditos flashes de memória que logo se esbatem em ténuas imagens pardacentas.

Esteve, até ontem, num pardieiro a que chamavam lar. Depósito de velhos que estiolam no recôndito de lembranças, olhos parados no tempo. Abandonados em recordações que os povoam e na tristeza em não descobrir o motivo. Largados, quase esquecidos. A filha, doutora, é a recompensa duma vida de lutas e sacrifícios.

O coração cansou e deu o primeiro alerta.

Hoje na cama o hospital espera, não sabe bem o que, mas espera.

Sabe que o fim não tarda já soam, ao longe, as trombetas que ribombam, já vislumbra o anjo negro que se aproxima.

Ainda olhou num olhar desbotado mas a filha não apareceu.

6 comentários:

Guma disse...

Olá Manuel, estimado amigo:
Houve tempos em que a dignidade de ser velho passava pelo testemunho de uma vida repleta de conhecimento e traquejo a passar aos mais novos. as famílias eram um núcleo, hoje são estilhaços que dificilmente se conseguem juntar para completar o puzzle.
O que será que nos vai calhar é uma incógnita. Até por não termos direito a decidir se queremos ou não ser depositados e esquecidos, vegetando até que alguém lá de cima se lembre de nos bater à porta.
Kandandos amigo Manuel e até já!

VASCODAGAMA disse...

Oi AMIGO
verdades duras ....eu não consigo aceitar, mas sei que é verdade.....A FILHA NÃO APARECEU....que triste, eu jamais irei depositar minha mãe; meu pai já fez a viagem, e ela tem 90 anos, quero fazer tudo o que poder pra ela se sentir feliz; essa é a palavra certa DEPOSITAR...estou de bem com a vida,faço aos outros o que quero pra mim;
Obrigada pelo comentário, fiquei feliz por saber que alguém gosta de ler meus desabafos;
Vou voltar
Beijo

AFRICA EM POESIA disse...

Manuel
uma grande inquietude esta tua mensagem...

um ditado antigo: mãos que não dais que esperais...


UM beijo e obrigada pelos parabéns...

Milhita disse...

Boa noite amigo, senti este texto como se as palavras fossem apenas gestos de uma mensagem tão cheia de sentido.
Um abraço, meu amigo!

Milhita disse...

Boa noite amigo, senti este texto como se as palavras fossem apenas gestos de uma mensagem tão cheia de sentido.
Um abraço, meu amigo!

Luz disse...

Amigo Manuel,
Esta é uma mensagem que me tocou muito, pois algo que me apavora são os lares. Conheço a realidade porque acompanhei uma pessoa que foi colocada num lar pela sua filha e, que ali ficou, ali foi o seu fim bem mais rápido se não lá estivesse. Não esqueço que eu e a minha família fomos as últimas pessoas que viu como se esperasse por nós, a quem tanto pedia para de lá a tirarmos, mas não podíamos, afinal a filha é que podia decidir. Marcou-me, faleceu no mesmo ano do meu querido pai, que se cá estivesse sei que tudo seria diferente, mas o meu pai partiu antes. Costumam dizer-me que os filhos por vezes têm de tomar estas decisões, não o nego..., mas eu recuso-me, caso contrário após a morte do meu pai não teria ficado 5 anos a cuidar da minha mãe e, empenhada à família e, foi uma opção, ninguém me pediu. Não me arrependo, se fosse hoje fazia o mesmo, tanto por um como por outro, sou assim e, podem até criticar-me e, fui criticada, mas não abdico de retribuir tudo aquilo que recebi, o mais que me for possível e,sei que nunca conseguirei retribuir tudo, o sentido de gratidão, solidariedade, o amor, os valores que me foram transmitidos.
Lamento que hoje os filhos abandonem os pais assim, os familiares, sendo a opção mais "fácil" colocar num lar. Temos de saber "abdicar" de nós próprios, somos humanos e, não sabemos o que a vida nos reserva, como dizia o meu pai "estamos começados, mas não estamos acabados", é uma verdade.
Como sempre atento e sensível nas palavras, nos temas que aborda.
Obrigada amigo Manuel :)

Um beijinho da Luz