quarta-feira, 15 de setembro de 2010

A promessa





Com a ponta do sapato esmagou, contra o chão, o cigarro que acabara de fumar.

Depois ficou esquecido a olhar a vastidão do mar que se alongava no horizonte, os últimos raios de sol davam uma tonalidade única aquele entardecer.

Acendeu outro, mas um súbito ataque de tosse fez saltar o cigarro que tombou faiscando. Pisou, como fazia sempre, não fosse o vento levar alguma centelha.

Olhou as gaivotas que num vozear estranho se aglomeravam numa rocha que as ondas iam fustigando.

Queria deixar este maldito vício, já em tempos tentara e conseguiu estar quase dois meses sem fumar, foi uma luta amenizada com rebuçados e pastilhas elásticas. Andava com um humor de cão em dia de trovoada. Respondão, sem paciência e totalmente amofinado.

Um dia, a vontade venceu, fumou uma cigarrilha. Depois foi o descalabro para a volta ao vício.
****
A noite ia caindo com um manto de neblina que se entranhava dos ossos. Era melhor voltar para casa.

Acendeu um para o caminho, inspirou uma longa baforada e deleitou-se com as espirais que o nariz ia soltando.

Voltou a tossir, toque seca e irritante que o deixava num desconforto feito de receios e dúvidas.

Tinha que ir ao médico para ver se ele lhe receitava um xarope que lhe abrandasse esta rouquidão que, a pouco e pouco, o ia deixando inquietado.

****
Foi para a cama angustiado, não estava habituado à casa vazia, aos silêncios que o invadiam. Tinha saudades da Cristiana a mulher que sempre o tinha acompanhado.

Agora ela tinha ido embora, sem explicações, sem se quer olhar para trás. Foi embora e pronto. Estava farta do nada, da monotonia, de uma vida sem emoção.

Tinha ido embora apenas para respirar, para voltar a encontrar a identidade perdida. Um dia, que sabe, podia voltar e se ele quisesse podiam começar de um novo nada, num renascer sem emoções.

Quando acordou os primeiros raios de Sol filtravam-se pelas frestas da persiana. Ao seu lado continuava um lugar vazio.

***
Foi uma noite angustiante, a tosse, o mau estar e aquela sensação de um peso no peito que o não deixava respirar em condições.

Agora ia para o trabalho e tudo iria melhorar.

Acendeu o primeiro da manhã, deixou os pulmões serem invadidos pela moléstia que lhe saciava o desejo.

***

O dia correu tão mal que foi obrigado a ceder, foi ao médico.

Saiu com uma enormidade de análises para fazer e também uma radiografia. Tudo muito urgente, para ontem, disse o Doutor Meireles,

Desta vez cumpriu e passados poucos dias voltou à consulta munido de RX, relatórios e análises. Também, pensava ele, este médico é mesmo miudinho pois para receitar umas pastilhas e um xarope precisa de todas estas coisas. Mas ele é que sabia.

O Doutor olhou a radiografia presa num grampo contra uma luz. Franzia o sobrolho enquanto ia lendo aqueles palavrões que estavam escritos no relatório. Olhou-o com um ar soturno:

-Senhor Menezes há quanto tempo anda nesta situação? Por que não veio antes a uma consulta? Homem de Deus, vou escrever uma carta para um meu colega do IPO e vai JÁ tratar de arranjar uma consulta.

-Mas, titubeou, é grave senhor doutor?

O médico cofiou o queixo num movimento mecânico enquanto procurava as palavras.

-Caro amigo o que eu penso é grave mas a medicina está tão avançada que hoje em dia há soluções para quase tudo. Não perca tempo, porque não temos muito.

******

Saiu desolado, acendeu um cigarro num gesto mecânico mas o sabor era diferente. Chutou-o para longe.

-Vou deixar de fumar, desta vez vou mesmo! Juro que desta vez deixo de vez.

*******

Já era tarde, a medicina está avançada, mas milagres ainda não.

Foi o desmoronar de uma vida, a quimioterapia, a queda do cabelo o degradar de uma existência.

*******

A morte foi a única cura para tanto sofrimento.

Faleceu serenamente na graça do todo-poderoso.

Mas cumpriu a sua promessa, deixou de fumar para sempre.


10 comentários:

AFRICA EM POESIA disse...

Manuel

SOnhar é sempre magia.

Beijos

Luna Sanchez disse...

Não fumo mas já acompanhei o sofrimento de algumas pessoas ao tentarem largar o cigarro. Penso que, como para livrar-se de qualquer outro vício, é necessário procurar ajuda especializada.

Beijo, Manuel.

ℓυηα

Sandra Gonçalves disse...

O cigarro é como um senhor de escravos...
Amordaçã, cega...escraviza, fere, e até mata.
Beissimo texto meu querido.
Bjos achocolatados

Laços e Rendas de Nós disse...

Mais uma narrativa fluída que prende o leitor apesar de os indícios apontarem para o fim.

Gostei.

Beijo

Solange Maia disse...

as vezes era a necessidade de tantas outras coisas que estava ali, disfarçada na ponta de um cigarro...

triste....

bem triste....

beijo

Guma disse...

Pois é, amigo e estimado Manuel, lá acendi um cigarro para acompanhar a narrativa.
Até me deveria ter sabido menos bem, mas não posso dizê-lo. Tem alturas que é o único companheiro. Diz-se: "Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és".
DEVE SER POR ISSO QUE JÁ SONHEI QUE ERA UM CIGARRO E ME ACABAVA EM CINZAS. Vá lá não acabei esborrachado pela sola do sapato. Quem sabe um dia esse sonho vira uma postagem lá na cubata!!!
Como sempre foi um prazer estar à sua companhia.
kandandos e uma óptima semana que está aí à porta!

AFRICA EM POESIA disse...

Gostei...
Gostei muito...
Senti o que vejo ao meu redor...
Falta de coragem...
E o cigarro vence...

Por isso eu peço...

Fumo do cigarro ...longe mim...
Eu sei o que dói fazer quimioterapia...


beijos

AFRICA EM POESIA disse...

Agora mais...alegre...Deixo poesia...

INFINITO


Longe muito longe...
Tentei ir, cheia de dor...
Para te esquecer...
E fui contemplar-te a ti, mar...
Mar, que tudo levas e tudo trazes...
E olhei-te com dor...
Com muita dor...
E pensei dar-te o que mais me doía...
E serenamente...
Olhei, pensei e doei...
Doei-te tudo o que tinha...
E baixinho pedi-te que me levasses...
Todos os sentimentos...
Que estavam a mais...
E senti...
A sensação de ser livre...
Senti que estava mais eu...
Mas vim e foi mentira...
Os sentimentos não se deitam ao mar...
Nem se atiram às ondas...
Estavam à porta de casa... À minha espera...
Porque... quando são verdadeiros...
São eternos!...

LILI LARANJO

vou ter livro de poesia...em Outubro se quizeres algum diz-me... um beijo

Sandra Gonçalves disse...

Oi amigo vim deixar-te um beijo e desejar-te uma linda semana.
Bjos achocolatados

Sónia da Veiga disse...

Ao menos que a Cristiana não tenha sofrido o mesmo destino por causa do fumo em segunda mão e, se fez mal a alguém, foi a ele próprio.

Fumar é algo que me ultrapassa e, acima de tudo, como é que alguém pode ir fumar para a praia, para o jardim, poluindo e ignorando o cheiro a maresia, o cheiro das flores...

Triste, mas pode ser que acorde alguém!!!