quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Todos os dias




Não foi fácil tomar esta decisão, mas há muito que Emília o pensava fazer.

Veio para esta casa tinha seis anos, aqui casou, aqui nasceram os três filhos, daqui saiu, para o cemitério, o único homem que conheceu e a quem amou acima de todas as coisas.

Agora as coisas estavam diferentes, o Ernesto acabara de fazer 22 anos e ia casar, a Alzira estava a fazer os 18 e ia comprar uma casa, e não tardava a Célia com 16 também iria querer seguir o seu caminho.

Como se lembrava da primeira vez em que pela mão do pai foi á escola, metida naquela vestido branco com florinhas que a madrinha lhe tinha oferecido na Páscoa, e na fita que lhe prendia os fartos caracóis que lhe desciam pela nuca. O pai enfiado no seu melhor fato, apertado na frente e parecendo que os botões a todo o momento podiam rebentar.

O pai engordou mas a roupa continuava na mesma, embora a mãe tentasse fazer os impossíveis para remediar o que não tinha forma de ser remediado.

Foi um momento inesquecível quando me entregou á Dona Laura, a minha professora, com um sorriso de felicidade porque a sua menina, como dizia, ia começar um novo ciclo da vida.

Quando o pai morreu, tinha acabado de fazer 10 anos, foi como se o mundo desabasse de repente. Não sabia como a vida seria possível dali para a frente.

Foi difícil, mas a mãe com uma determinação que ninguém lhe conhecera, conseguiu desempenhar os dois papéis, trabalhou como nunca ninguém pensou, de dia na fábrica a fazer calças e á noite a lavar e a passar a ferro a roupa de quem a procurava.

Foram tempos difíceis, mas mesmo assim foi muito feliz.

Tinha 16 anos quando conheceu o Amadeu. A princípio não o tomou a sério, não estava disposta, mas as coisas acontecem sem que nós nos apercebamos.

Foi tudo tão de repente, e a forma como começou a amar aquele homem, a beber as suas palavras, a ter ciúmes das raparigas que falavam com ele, era verdadeiramente inacreditável. De menina insegura tornou-se uma mulher decidida e foi mesmo ela quem lhe propôs viverem juntos.

Os pais bem tentaram contrariar aquela asneira, assim diziam, mas estava determinada e nada a faria demover. Por fim aceitaram e depois de um casamento pobre, mas feliz, foram viver para casa dos criadores.
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Agora, que já fizera 40 anos, olhava para o espelho para ver as pequenas rugas que se adivinhavam nos cantos dos olhos, mas ainda gostava da imagem que tinha na frente.

Tinha uma pele rosada, os grandes olhos cor de avelã brilhavam com a mesma juventude de sempre, os fartos caracóis louros já deixavam perceber alguns fios brancos que ficavam camuflados nos cachos de ouro que lhe emolduravam a testa.

Sentia que e menina se transformava depressa demais e não iria tardar para sentir que a velhice não estava muito longe.

Desde que o Amadeu morreu, daquela forma tão trágica, nunca tinha pensado que ainda estava a tempo de começar de novo, mas havia vezes em que começava a pensar que estaria a tempo de encontrar um novo rumo para a sua vida.

Ainda tinha presente quando lhe trouxeram o marido moribundo, trucidado pelo rodado do tractor. Nunca se chegou a saber como aconteceu, pois foi encontrado na vereda que levava á horta que os ajudava no sustento da casa.
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Tinha que pensar na sua vida, os filhos estavam criadas e não tardava iriam seguir o seu rumo. O Ernesto acabara o curso e ia trabalhar para o Porto como engenheiro numa fábrica de coisas eléctricas. A Alzira sempre foi uma menina difícil, descontente com tudo e todos, com uma cabeça cheia de sonhos. Namorava um rapaz, filho de boas famílias, e estavam dispostos a ir viver juntos. Ia ser uma relação difícil.

A Célia era a mais chegada á mãe. Ainda, hoje, não adormecia sem que não lhe desse um beijo de boas noites. Mas estava uma linda rapariga e os moços já começavam a rondar a porta.

A sua velha mãe cansada de trabalhar, deixou que o Alzheimer se apoderasse do que restava, e recolheu a um lar onde esperava, alheia a tudo, que a vida acabasse.

Agora estava decidida e ia ser difícil mudar de opinião.
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Ela bem notava a forma como o Heitor a olhava. Quando passava sentia os seus olhos percorrerem-lhe o corpo numa análise gulosa, sentia um formigueiro na nuca e havia como que um prazer que a invadia, de uma forma tão doce que ficava com vontade de voltar a passar.

Ainda o Amadeu, que Deus levou, era vivo e já ela notava que o Heitor a olhava e lhe falava de uma maneira diferente. Havia como que doçura na sua voz e os seus olhos brilhavam de uma forma que a deixava deslumbrada. Reparou, mas pensava que era a maneira de ser cortês, e, se calhar era mesmo assim. Inclinava sempre a cabeça com uma delicadeza a que não estava habituada.

Ainda se lembra daquela vez em que foi comprar uns elásticos para os calções do Ernesto e na altura de pagar reparou que não levava dinheiro. Ficou tão envergonha que nem teve coragem de o dizer. Saiu a correr para pegar na carteira que ficara esquecida na prateleira onde guardava as bilhas da água. Quando voltou ia corada, como se tivesse cometido um pecado. Quando ele lhe disse:

-Dona Emília que coisa tão grave fez com que fugisse de forma tão apressada?

Se estava corada, ainda mais ficou e apenas lhe saiu

-Senhor Ernesto, por amor de Deus, apenas deixei o porta-moedas em casa.

-Mas não valia a pena cansar essas lindas pernas, depois pagava.

Ficou tão envergonhada que saiu e deixou o elástico. Teve que pedir à Alzira para o ir buscar.

A partir desse dia sentiu que alguma coisa tinha mudado, e que Amadeu a perdoe, mas o Senhor Heitor passou a fazer parte do seu imaginário.

Hoje estava mais madura e, também, perdera muita da ingenuidade que sempre fizera parte da sua personalidade. Já não corava quando sentia que algum homem olhava aprovadoramente para o seu corpo, pelo contrário, lançava um olhar capaz de desconsertar o mais descarado.

Passou a tirar partido daquilo que Deus lhe tinha dado, e ficava vaidosa quando lhe diziam que as filhas mais pareciam suas irmãs.

Acabara de fazer um ano que o Amadeu foi enterrado e sentia que a vida sem um homem a seu lado era mais vazia. Não era só pela necessidade física, mas também pelo conforto de ter alguém para compartilhar as mágoas e alegrias.
***
Heitor não era filho da terra, nasceu num monte alentejano. Filho de uns abastados agricultores que tinham, ninguém sabe como, amealhada uma considerável fortuna, que com a mesma facilidade com que a construíram também a conseguiram esbanjar.

Dona Alzira, a mãe, para esquecer as loucuras do marido vivia embrulhada em todos os trapos que os costureiros da moda punham no mercado. O pai, José Romão, passava os dias com as meninas que o adulavam, lhe satisfaziam os caprichos e lhe iam esvaziando a carteira com as ricas prendas que lhes comprava.

Á noite o casino fazia o resto. Quando deu por isso, tudo o que restava era um pedaço de terra e uma pequena casa, sobra de uma herança dos pais.

Dai em diante foi o desabar de uma família. José Romão foi encontrado certa manhã pendurado num chaparro, com um palmo de língua negra a sair da boca escancarada.

Dona Alzira nunca mais disse coisa com coisa e acabou por ficar no lar das freiras que acudiam a estes casos de misericórdia. Amadeu, na altura com 19 anos, apresentou-se como voluntário na tropa,
***
O dia começou, de repente, a escurecer. Os pequenos cirros que há pouco cobriam o céu, começaram a tornar-se em nuvens escuras.

O vento abateu-se com fúria e a chuva desabou copiosamente, inundando tudo e todos.

O pequeno ribeiro saiu do seu leito e invadiu tudo como se fosse um oceano em fúria, arrastando árvores, invadindo as casas e deixando um rasto de morte e desolação.

Choveu copiosamente durante horas.

Houve quatro mortes a lamentar.
***
Heitor lutou com todas as suas forças. A água invadia a loja e a fúria da corrente arrastou-o para a rua. Esbracejou, tentou agarrar as paredes, as árvores. Deixou as unhas vincadas no chão por onde o corpo se rebolava e se arrastava. Foi impotente, a fúria era maior. Tentou gritar, chamar Emília, apenas a imagem de Amadeu com o terror nos olhos, como quando o atirou para debaixo do tractor, lhe parecia acenar. A lama invadiu-lhe a boca, a faringe. Queria respirar mas já não conseguiu. Sentiu a vida a fugir no emaranhado de terra, da água, do frio.
***
Emília fez as malas. Nada mais a prendia aquela terra.

Desapareceu. Ninguém sabe para onde foi.




10 comentários:

Ludmila Ferreira disse...

Para que palavras diante de uma situação dessa?

Para você o meu mais pesaroso silêncio...

Manda teu msn ou email para mim...

beeeijOdalua!

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Meu querido Manuel

Só pergunto...para quando um livro?
As suas histórias pulsam vida.
Adorei.

Beijinho
Sonhadora

Vivian disse...

Olá!Bom dia!!

Que texto incrível!!!Me envolveu,encantou,me emocionou!!
Ah!!Sei que na vida é assim, as vezes, nem tudo dá certo...
Mas queria tanto que tivesse um final feliz...uma mulher de fibra, honesta e corajosa...
Pode,ter uma continuação?
Beijos

Menina do cantinho disse...

Um final completamente inesperado.
Que diria que o Heitor....

Adorei Manuel.

Beijinhos

Magia da Inês disse...

Olá, amigo!
Doeu ler o seu texto... tão trágico!
Beijinhos.
Brasil.
•♥•..•♥•.

AFRICA EM POESIA disse...

MANUEL
Como A Rosita pergunto;Para quando o livro???







BEIJOS


RIA





Ria de Aveiro

Tão pouco te tenho cantado

Tão pouco te tenho escrito

E tu Ria...

Cheia de beleza

Cheia de canais

Com águas azuis e belas

Vais esperando que te cante

Que fale ao mundo

Da tua beleza sem fim

Dos teus barcos moliceiros

Coloridos e acolhedores

Do teu Rossio...

Da tua gente...

E da tua beleza...

Linda Ria de Aveiro.


LILI LARANJO

Solange Maia disse...

Manuel...

gosto desse seu excesso de realidade, dessa falta de finais felizes, dessa imprevisibilidade...

gosto de seus textos... de todos !

beijo carinhoso

Sónia da Veiga disse...

Antes do livro... já concorreu com o conto?!?

Adoro as suas reviravoltas e quero uma editada e autografada!!! ;-)

Vivian disse...

Olá!!Bom dia!!

Passei para deixar um abraço!!
Boa semana!!
beijos!
Aprecio muito seus comentários!
És sempre Bem-Vindo!

Dina Vieira disse...

Por vezes há que fazer mudanças na vida..e se partir for uma boa solução, então que assim seja!