terça-feira, 16 de agosto de 2011

Encanto




Para ti Sónia, minha sobrinha, pelo carinho da tua presença e magia das tuas palavras nos momentos em que mais precisei.




Quando abri a porta senti a golfada de ar quente.

Na taberna, defronte, os homens pareciam hipnotizados pela mini gelada que emborcavam em goles pequenos.

As moscas, em voos simétricos, martirizavam as caras tisnadas dos bebedolas que iam matando o tempo, em total indolência, nas sombras da esplanada do Chico Cocho.

Abarquei, com nostalgia, este quadro do quotidiano e retive, na minha mente, todos os pormenores desta cena, quase bucólica, onde os personagens pareciam retirados de um quadro do Malhoa.

Os homens moviam-se em movimentos lentos, num sincronismo natural, onde o levantar ritmado da mini parecia a batuta da própria essência, como se não existisse, como se esse movimento fosse fruto do deslizar do pincel do pintor.

Hoje eu estava sensível a todos os movimentos, a tudo o que estava no meu horizonte, o próprio bailado das moscas parecia fazer parte de um momento que acompanhava o mundo que ia dentro de mim.

***

Alzira, quando a desafiei para vivermos na aldeia, longe do bulício da cidade, ficou radiante e garantiu-me ser o que mais desejava no mundo.

Os primeiros tempos foram um sonho, foi a descoberta diária de novos encantos, o coaxar das rãs, o manto de grilares que enchiam de magia a planície.
Era o sentir do grito vermelho das papoilas a salpicar, de sangue, o tapete colorido das marcelas.

Vivemos intensamente os frios do Inverno junto aos troncos que na lareira se desfaziam em ondas de calor, que nos aqueciam o corpo, pois a alma ia sendo aconchegada por um ponche "caliente" e reconfortante.

O Verão quente, tão quente que até as próprias aves se deixavam cair com o bico aberto na procura de uma vida que a canícula lhes ia roubando, era passado no remanso de uma casa onde a frescura das abobadas ia atenuando a escalmorreira que fazia lá fora.

Ia-mo-nos amando nos intervalos de uma vida feita de casualidades e de momentos parados na doçura do tempo.

De repente, como se as ideias se deixassem esfumar em doses de indiferenças, Alzira deixou de respirar o encanto da procura, deixou de sentir o enlevo da descoberta.

Amorfou, a tristeza entrou de repente na pintura, as formas deixaram-se diluir nas saudades do bulício, dos cinemas, dos centros comerciais.

Alzira perdeu o espaço, os movimentos ficaram tolhidos na imensidão da campina, os horizontes perderam-se nas saudades do trânsito, no atropelo dos transportes cheios.

Alzira não aguentou a imensidão e com o mesmo encanto com que chegou, apanhou a carreira numa manhã, no Largo da Igreja, e abalou sem querer olhar para as saudades que me ficaram.

Pensei seguir com ela, não deixou, precisava da distância para respirar, como se o espaço pudesse ser encontrado no desconforto da civilização.

****

Abro a porta de manhã, vejo os homens parados no tempo de uma mini fresca e penso na Alzira, nas gargalhadas que deixou perdidas na imensidão dos meus sentidos.

Já não sinto o encanto dos coaxares, os grilos perderam a entoação que refrescavam as tardes quentes, o pão arrefeceu e já não aceita o sabor do presunto que acabei de cortar no alto da vara.

Ainda é Verão e já sinto esse frio que se entranha nos ossos e que nos faz tiritar.

A lareira está apagada não a irei acender para que as labaredas dos chamiços não consigam apagar o cheiro de uma partida, na carreira no Largo da Igreja, numa manhã que nunca foi dia.

Hoje vejo o desconforto da paisagem que o tempo secou, não quero ver mais a paleta onde o pintor deixava em traços lavados o encanto do meu pensamento.

Aprendi, agora sei que saudade se escreve com A, com A como se escreve Alzira, que abalou numa carreira que saiu do Largo da Igreja.





18 comentários:

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Meu querido Manuel

Bem vindo...e vieste com a sensibilidade em alta...e não comento para não estragar o momento.
Fizeste-me voltar no tempo e acabei de ler com as lágrimas nos olhos.

Era o sentir do grito vermelho das papoilas a salpicar, de sangue, o tapete colorido das marcelas.

Saudades de mim...dos cheiros...das cores.

E deixo um beijinho
Rosa

Magia da Inês disse...

°º♫
°º✿
º° ✿♥ Amigo,
Que texto lindo, lírico...
Alzira é mesmo uma ingrata.
Beijinhos.
Brasil°º♫
°º✿
º° ✿♥ ♫°

chica disse...

Maravilha,Manoel.Lindo presente à tua sobrinha...Linda forma de agradecer...

abraços, tudo de bom,chica

AFRICA EM POESIA disse...

Manuel
Um beijo
senti a tua falta.
Férias á assim
Flor de Porcelana é mesmo ARTE..

Arte como a tua que nos encantas com o que escreves.

Obrigada pelo teu coração enorme.
..
(Sabado fui Comer a Setubal sardinhas assadas de maravilha )

Jacque disse...

Muito lindo, amigo Daniel...

Obrigada pela visita...

Manuel disse...

Recebi por Email e não podia deixar de publicar aqui:

Tio... está magnífico. O tio escreve demasiado bem para não ser publicado. Gostaria muito de ler a sua selecção - e não só. O tio nem imagina o quão bem escreve. Eu sei que enquanto imbuídos no que fazemos temos muita dificuldade em ver, como quem virgem se aproxima das palavras. Mas acredite no que lhe digo. É publicável. Os três contos que me enviou são mais do que publicáveis e já tive essa confirmação de terceiros - porque eu própria tenho de suspeitar das avaliações que faço.

E receber este seu conto a mim dedicado, tem um valor incalculável. Não duvide de si. Eu não duvido.

Elabore essa sua selecção. Há quem esteja à espera dela, para lá de mim.

Um dia, quando a magia me bater à porta, escrevo eu um para si. Há muito tempo que não consigo escrever. Estou há algumas semanas a juntar um "conto" que iniciei no PC e continuei num bloco. Está demorado.

Um beijinho muito grande! E muito obrigada! O tio também esteve lá sempre para mim! :)

Sónia

Vivian disse...

Nossa,Manuel!!!

Lindo meu amigo!!E lendo o que recebeste por email de sua sobrinha me deixou perplexa!! Mas como meu amigo, não sabes o valor que tens??!!
Escreve com maestria, e lhe disse isso com toda a sinceridade!!!És perfeito!!!E se publicares um livro faço questão de adquiri-lo e com autógrafo!!
BEM-VINDO DE VOLTA!!!Senti muito sua falta!!!Fique bem!
E realize!

Guma disse...

Estimado amigo Manuel!

Como a Rosa disse e muito bem, comentar seria estragar um momento que exige depois da emoção sentida, a devida reflexão.

Completamente de acordo com a sua sobrinha e algumas vezes o disse aqui. O Manuel tem nas suas publicações "peças" de valor que será uma pena não as publicar.

Receba meu kandando e a admiração que sabe tenho pela sua pessoa e obra.

Ubunto para todos!

Luna Sanchez disse...

Lindo o texto e também o comentário da tua sobrinha.

Um beijo.

MARILENE disse...

Você homenageou e recebeu um e-mail maravilhoso e verdadeiro. Suas palavras dançaram linda música, na qual senti a saudade que A (Alzira) deixou.
Bjs.

Laços e Rendas de Nós disse...

Manuel

Primeiro, dizer-lhe que a sua presença me fez falta.

Depois, que este texto me emocionou.

Um beijo

Sandra Gonçalves disse...

Que lindo teu texto amigo. Como todos que vc escreve e nos presenteia.
Bjos achocolatados

Dina Vieira disse...

Ola,espero que as férias tenham sido boas!
Fiquei emocionada ao ler este texto...
Desejo-lhe tudo de bom,beijinhos.

Sônia disse...

Por favor...posso ficar??rs...

Flor de Lótus disse...

Olá meu caro Manuel!Eu entendo Alzira acho uqe ela é humana e só por isso somos uma contradição, queremos paz e agitação, campo e cidade grande, nos entediamos com uma absurda facilidade.
Uma ótima semana!
beijosss

Smareis disse...

Oi Amigo Manuel que lindo, eu concordo com o Guma.Comentar seria estragar um momento que exige depois da emoção sentida, a devida reflexão.Desejo um ótimo começo de semana cheio de coisas maravilhosa pra você. Um Abraço e muito beijim!
Smareis

Sónia da Veiga disse...

E eu que pensava que Coxo era com x...

Triste de tão lindo.
Mas acredito que a Alzira voltará em breve e não será necessária lareira para aquecer os pés no Inverno! ;-)

P.S.: Esta e a acima tinham-me escapado, mas eis que as apanhei e comento - mais vale tarde que nunca! ;-P

Boa semana! :-)

P.P.S.: E parabéns à sobrinha, que mereceu e que tem bom gosto! Ficamos todos à espera da selecção e da publicação!!! :-)

P.P.P.S.: Eu quero uma cópia da 1ª edição autografada!!! Mas pago, que o artista tem que viver da sua arte! :-)

Sónia da Veiga disse...

Obrigada pelo esclarecimento! :-)

"O meu personagem não era coxo.
Cocho é um termo alentejano para um utensílio que os pedreiros usam para transportar água.
São as minhas raízes de Sherlock Holmes alentejano."

:-D