Acordou
com o estrondo do morteiro seguido do estrelejar de meia dúzia de foguetes, era
o anunciar do princípio da festa anual, a alvorada era sempre às sete horas da
manhã, ele sabia mas tinha sempre aquela sensação de susto. Este ano mais do
que nunca queria estar bem longe, nos outros anos ainda andava por ali, ouvia a
fanfarra que percorria as ruas em actuações monocórdicas de rufar de tambores e
bombos, o tremer das pandeiretas e de vez em quando um saxofone já desafinado,
não pelo artista mas pelo desgaste das varas e das pequenas fugas do ar no
instrumento que, apesar de tudo, e graças ao limpa-metais brilhava em reflexos
de ouro ao sol. O mestre Gualdim bramia com vigor a batuta, que os músicos
seguiam mais por intuição, pois nunca viu nenhum a olhar para o maestro.
Mas
este ano era diferente, ainda sentia o vazio, não era propriamente um luto mas
uma necessidade de fugir ao bulício e à animação que se apoderava do povo. Os
filhos da terra voltavam dos países onde deixavam o suor e uma parte da pele,
mas voltavam todos os anos, em carros alugados e com ar de abastança e falando,
entre eles, num francês com pronúncia própria da aldeia onde nasceram.
Sentia
no ar o cheiro quente da terra, a algazarra ia tomando conta da povoado, os
rapazes em trajes domingueiros juntavam-se em pequenos ranchos nas esquinas dos
largos para mirar as moças que, em vestidos coloridos, se iam pavoneando nos
caminhos da Igreja para a missa das oito, o senhor Padre Alcides veio de propósito
da cidade, para presidir a este acto solene, que era como que o cortar da fita
para os três dias em honra da padroeira.
Armindo
ia remoendo estas lembranças enquanto se preparava para uma abalada, quase
furtiva, não porque não sentisse o apego à tradição, mas as saudades de Josefa
estavam, ainda, muito presentes e, ele sabia o quanto representava para ela
esta tradição. Era das primeiras no arranjar da igreja, no peditório a favor
dos festeiros e, na generosidade do angariar o necessário para o almoço dos
mais necessitados, era uma tradição mas, a cada ano que passava mais difícil, o
número de pobres aumentava e as ofertas diminuíam, era a crise diziam muitos,
era a desculpa exclamava ela.
Bastaram
três meses para que a doença, de forma galopante, a levasse, sem nunca lhe
terem ouvido um queixume.
Armindo
arrumou de forma ordenada o necessário, colocou no porta-bagagem e partiu
evitando as ruas principais.
Rapidamente
tomou a estrada principal, não olhou para trás, nada ou quase nada, o prendia àquela
terra.
****
Há
mais de um ano que anda adiando o regresso à terra, a festa deste ano acabou no
domingo e Armindo tem que voltar. Tem mesmo! A casa está há tanto tempo
abandonada que as teias de aranha já devem ter tomado conta de todos os
recantos, para não falar das terras, porque essas, há muito estão ao deus dará.
Está
decidido, no próximo fim-de-semana, vai regressar embora no seu pensamento
pense, apenas, em ir tratar de por a casa, e a terra, à venda e voltar à
cidade.
Não
tem nada que o prenda ao lugar, os pais já partiram há muito e a Josefa, sua
companheira de muitos anos, também o deixou depois de três meses de muito
sofrimento. Estão todos no cemitério da terra, mas ele não tinha o culto dos
mortos como um dogma, por isso onde andasse o pensamento estava com ele e,
esse, nada nem ninguém o ia alterar.
*****
Foi
um voltar quase doloroso, os quilómetros eram galgados quase como se o tempo
não existisse.
Quase
por encanto, lá no fundo da descida a povoação aparecia num policromado de
vermelhos dos telhados e no imaculado branco da cal das paredes. A Igreja
sobressaia no aglomerado, com o sino em reflexos de bronze esverdeado.
Entrou,
como saiu, torneando o povoado pelos arrabaldes, não queria falar por enquanto
com ninguém, não estava preparado para explicar o inexplicável, depois iria
falar com os amigos e tinha a certeza que o compreenderiam.
Era
a hora do calor e as pessoas estavam recolhidas. Chegou a casa e apenas a dona
Alzira lhe acenou, um adeus, debruçada do postigo.
O
jardim que circundava a casa estava impecavelmente tratado, as hortênsias todas
floridas e com a terra com aspecto de ter sido regada há bem pouco tempo.
-Coisas
do amigo Aníbal, pensou.
Quando
meteu a chave na porta foi invadido por um desencadear de emoções. Foi aqui que
passou os melhores momentos da sua vida, foi desta casa que viu partir a mulher
que era uma das razoes do seu viver.
Entrou.
A sala estava vazia, nada de móveis. Fechou a porta e como sortilégio uma luz
iridescente encheu o espaço, uma música de uma suavidade, que doía no encanto
do momento, tomava conta dos sentidos e subia em espirais de doçura.
No
meio da sala, sentia-se, um túnel formado por uma luz tão suave. No meio,
Josefa sorria vestindo uma imaculada túnica branca, pura como a neve.
Estendeu-lhe
a mão, afagou-lhe o rosto e murmurou com uma doçura de mel:
-Amor!
Porque demorastes tanto?
******
Nunca
mais souberam do Armindo, desapareceu como se o espaço o tivesse engolido.
A
casa, essa, continua lá, ninguém a quer, dizem que está assombrada.
Nas
noites escuras ouvem-se músicas gregorianas e, pelas frestas das portas e
janelas, assoma uma luz mais brilhante que o Sol.
Todos
a conhecem pela Casa da Hortênsias.
Ninguém
sabe explicar quem as rega, nunca ninguém viu, mas continuam a florir como se
uma mão invisível lhes alimentasse a seiva.
20 comentários:
Belissimo conto, a foto da casa das hortencias tambem esta linda!
Gd beijo
Boa NoiteAnjo Lindo.
Hoje venho agradecer o carinho deixado no meu blog pelo meu aniversário.
Agradeço a Deus por ter sua amizade e carinho muito tem me ajudado a romper
muitos momentos difícil pelo qual tenho passado.
A amizade é tudo nesses momentos conhecemos o carinho da amizade Sincera.
Beijos no seu coração.
Meu eterno agradecimento,Evanir..
Meu Amigo estou encantada com as flores são lindas tinha muitas delas sem condições de cuidar acabou todas.
Um regresso e um desaparecimento. Muito bom este texto, Manuel. Talvez um dos de que mais gostei, pela riqueza dos pormenores. Parabéns!
Beijo
Laura
Os mistérios do Amor trazem coisas destas, mesmo num Conto tão bem elaborado.
Parabéns, Manuel.
Abraços
SOL
O lugar dele era ao lado da sua Josefa que, não aguentando com as saudades, veio buscá-lo. Mais um bonito conto.
Beijinhos
Que maravilha e sempre tens inspirações assim, que nos carregam junto, imaginamos, voamos contigo. E, eu também não iria querer essa casa, ainda que as flores fossem sempre lindas! abração,chica
Manuel
A MAGIA DA HORTENSIAS...
.....
obrigada pela visita e um beijinho.. sabado vou jantar a Castelo Branco
jantar das mulheres sportinguistas...
LINDO
um beijo
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Muito bonito!
Bom fim de semana!!!
Beijinhos.
Brasil.
Bom dia Amigo
Uma bela história com início e sem fim. Ninguém mais saberá do Armindo e do seu grande amor.
Lembrei-me dos meus pais. Eram assim.
Primeiro foi a mãe e depois foi o pai.Ainda hoje se sente aqui em casa e no jardim o seu cheiro e os seus cuidados.
Olá Ma nuel, bom dia!
Mais do que os outros contos, a sua alma de poeta, somada a de escritor se revelou nesse teu conto de grande beleza.
A medida que fui lendo, eu não sabia se lia um poema ou um conto. Mas uma coisa eu pressentia: que o teu conto/poema, traria ao final um desfecho surpreendente como característica marcante dos teus escritos...
Espiritualista como sou, eu arrisco o palpite de que o encontro do personagem com a mulher amada se realizara mas em outro plano de matéria: no mundo astral. Lindo demais!
Agradeço a sua visita, sempre esperada e desejada por mim, lá no Sementes Preciosas.
Beijos da Lu...
Que texto lindo meu amigo, são coisas da vida e a casa das Hortencias vai
ficar na lembranças de quem leu e gostou, eu pelo menos adorei ler
Abraços com carinho
Rita!!!!
Meu querido Manuel
Em cada texto que leio te superas, simplesmente maravilhoso e prende desde a primeira à última palavra.
Deixo um beijinho com carinho e agradeço a presença no aniversário do meu blogue.
Sonhadora
Manuel
E agora???
beijos
Muito bonito. Fiquei a pensar que ...em certos aspetos est´
a em sintonia com os sentimentos do meu último post.
Por outro lado ergueram-se memórias da minha infância ao começar a ler. A casa dos meus pais era a 100m da pequena Igraja,que fica a 1Km do povo. E todos os anos a meados de setembro há a festa da Srº de Cervães. então, todos os anos nesse domingo o acordar era um SUSTO,....com os foguetes. E era tradição , ao outro dia depois da festa, eu e meu irmão, irmos à "cata" de moedas perdidas. Uma vez achamos uma nota de 20 escudos o que naquele tempo era um tesouro.
Gostei de saber do Arlindo que não " não tinha o culto dos mortos como um dogma, por isso onde andasse o pensamento estava com ele e, esse, nada nem ninguém o ia alterar."
Manual, estou em falta para consigo! Peço mil perdões. O início do ano letivo, as idas ao IPO a Coimbra (ontem fomos saber os resultados dos exames que o meu marido fez no dia 3 de setembro e felizmente estava tudo bem)e a falta de saúde de minha mãe me t~em trazido arredada do contacto com os amigos. Meu pedido de desculpas, sim? Sei que já me comentou imensas vezes e eu nada respondi. Perdoe.
Aceite um beijo e um abraço,
Isabel (também conhecida como BlueShell)
Sua amizade e muito importante para
mim .
Tenho vivido nos últimos tempos
muitas dificudades para fazer visitas.
o tempo vai passando nada melhora
para ,que possa digitar.
O fato de não poder comentar não significa,
que deixei de ler sua postagem ela é
minha bagagem para meu segundo livro.
Quando lemos bastante adquirimos mais sabedoria
na escrita tornando maior nossa bagagem.
Cada blog visitado representa a história de uma vida.
Na minha postagem tem sorteio de dois livros
de um amigo escritor.
Ficarei feliz aceitando e convite
para participar do sorteio.
Já conheço a grandeza das obras do livro dele.
Uma linda noite te espero para viagem beijos,Evanir.
Olá,Manuel!!
Ah!Meu amigo!Um amor tão verdadeiro que supera até a morte...arrepiei-me com o final!Estão afinal,juntos novamente.
Beijos!Meu carinho e admiração sempre!
Por destino ou por condão? Diga-me o amigo se me puder responder...é seu destino ou seu condão escrever assim? Li, reli e saio deliciada. Como sempre, nunca consigo prever o final, mas os seus finais são sempre surpreendentes. Amei demais. Beijos com carinho
Tão emocionante!
Chorei mesmo!
Vc é um mágico com as palavras.
Gosto muito de vc!
Bjs.
Muito bonito e romãntico!
Fica bem meu amigo escritor! :-)
Manuel
Outono folhas secas e castanhas que são assim porque morrem para voltarem a nascer
e nascemm ...VERDES...
é o ciclo da vida a partir desta semana a vida vai ser linda acredita.
um beijo
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