Qualquer semelhança com personagens ou factos existentes
pode não ser pura coincidência.
1
-Mãe os
meninos da minha escola só gozam comigo! Chamam-me caga-tacos e padre!
-Não ligue Gaspar, é inveja! Tu não és caga-tacos, és pequenino mas muito
inteligente e a tua voz é especial. É verdade que, às vezes, quando te oiço
fico com sono! Mas é contemplação!
Não ligues querido, estuda e, ainda, um dia os
vais castigar.
Agora vai dar de comer ao teu coelho e, de caminho, trás um cavaco para a
lareira.
2
-Mãe,
eu, sou o melhor a fazer contas e a minha professora diz que me engano muito.
-Não ligue, é inveja! Tu não te enganas, ela é básica e não tem inteligência
para te acompanhar. Estuda filho que um dia, eles vão engolir isso tudo!
Lava as
mãos e vamos comer, já dei uma ração ao teu coelho e, hoje, não preciso de
nenhum cavaco.
3
-Mãe,
hoje, um menino disse que eu, para ser parvo não me falta nada. Achas que eu
sou parvo?
-Não ligue a esses pés rapados, não tem onde cair mortos. Continua a estudar e
ainda os vais meter a todos na ordem!
O teu coelho tem que levar nas orelhas, anda a abusar, só faz merda, não tarde
vai para o tacho. E cavacos já não são precisos mais, comprei um aquecer a
óleo.
4
-Mãe
vou para a faculdade, vou estudar para ministro das finanças!
-Mas Gaspar também se estuda para isso? Vais tirar Economia. Para ministro das
finanças qualquer parvo serve, não é preciso estudar.
Mas mãe, eu quero ser especial, quero ser diferente e para isso tenho que
estudar muito!
Quando entrar para a faculdade, vamos fazer um sacrifício para alegrar os
Deuses. Vamos imolar o coelho, não é matar, e vai para o forno com bacon e
cogumelos. Tem que ser, este já fez a merda que tinha a fazer, outro virá a
caminho, que adora relvas e que nos vai fazer esquecer este!
5
-Afinal, mãe, os gajos da faculdade são a mesma coisa, não são tão directos,
mas já os ouvi comentários sobre um caga-tacos e a voz de padre. Não sei se
será por minha causa, sou pequenino mas essa da voz é que não compreendo.
-Oh Gasparzinho, são invejas por ser o melhor, o mais inteligente e o mais capaz
para um futuro ministro das finanças. Quando à voz não te preocupes, sais à tua
avó paterna, também falava assim, nesse jeito clerical.
6
-Mãe já
sou doutor, acabei a faculdade agora vou tirar meia dúzia de mestrados e pós
graduações. A seguir vou fazer parte de muitas coisas, vou ser chefe de
Comissões, Delegações e tudo isso. Sou pequenino mas vou chegar lá a cima.
-Mas como sabe essas coisas todas, Gasparzinho?
-Não
digas a ninguém, mãe, mas foi uma cigana no Jardim da Estrela que me leu a
sina.
7
-Sabes mãe, o meu coelhinho deve ter ressuscitado, telefonou-me a convidar-me
para ministro das finanças. Vou aceitar, toda a vida estudei para a vingança,
agora vão ver quem é o caga-tacos e o vózinha de padre!
A maioria dos meus ex-colegas são funcionários públicos estão bem lixados vão
pagar pela má-língua. Vou esmifrá-los com baixas de ordenados e impostos. Vão
ficar a saber quem eu sou! Vão pagar com língua de palmo e se pensam que os
pais os vão ajudar, que tirem o cavalinho da chuva, vou lixar as reformas dos
velhos, não há ajuda para ninguém, que imigrem. Malandros!
-O Gasparzinho já está a abusar um bocadinho?
-Não mamã, eu já expliquei aos gajos, não sei se perceberam, pois quando acabei
de falar, metade tinha abalado e a outra metade dormia profundamente.
-Mas filho assim, qualquer dia, as pessoas deixam de gostar de ti!
-Cada vez gostam mais, uma loucura total, onde vou estão à minha espera e
cantam-me uma tal Grândola Vila Morena, não sabem outra. Gostam muito, se
não fosse a polícia vinham para cima de mim para me abraçar, mas não deixo, não
gosto dessas manifestações de carinho.
-Mas filho o povo está queixoso!
-Não tenho culpa, se o Benfica tivesse ganho e se chovesse, todos os dias,
seria diferente, mas assim tenho que carregar nos gajos.
Parece que já me estou a ouvir:
-Gaspar mais um roubito para compensar!
Tem que ser assim, não lhe posso chamar impostos senão esta cambada vai para o
Tribunal Constitucional e, eles lá, não são muito melhores.
-Sabes uma coisa Gaspar, já começo a estar arrependida de te ter parido!
8
-Sabes mãe que aqueles cavacos que punhas no lume, também ressuscitaram?
-Não diga asneiras rapaz, aquilo eram cepos!
-E o que pensas que este é ? Mas é um gajo porreiro, nós fazemos tudo e ele
fala no Facebook. Mas quem lê essas coisas se tem um BigBrother?
Até eu
vejo muitas vezes, ando a estudar uma maneira de cobrar uns impostos, impostos
não, umas massas àquela palhaçada.
-Ai
Gaspar, estás cada vez pior!
9
-Sabes uma coisa mãe, o nosso coelhinho, o que ressuscitou, agora é primeiro-ministro,
é um espectáculo como se lembra de mim. Faz o que eu quero e digo. Tem cá um
respeitinho!
-Porque não deixas isso e vais para Bruxelas como sonhas?
-Tudo a seu tempo, mãe! Ainda há gajos que respiram, ainda não acabei a minha
missão.
10
-Houve filho de um comboio, a partir de agora não me chame mais mãe, não sou
tua mãe! Eu pari um rapaz e não um monstro!
-Houve lá velha, não é assim! Se deixas de ser minha mãe tens que pagar umas
taxas, não penses que te safas. Vou mandar aí os fiscais da finanças para cobrar
e, não penses que fazes como o Viegas, que mandou os desgraçados a levar no cú.
Há
muitos dias que a ideia lhe bailava na cabeça, era um pouco estranha mas
era uma ideia que ia crescendo. Primeiro surgiu quase por acaso, foi um pensamento
subtil, quase tímido mas cresceu e agora fazia parte do seu quotidiano.
Tentava pensar numa solução e, por mais voltas que desse à cabeça, não
lobrigada uma maneira de se libertar. Por vezes até parecia gostar da situação,
tal o amorfismo e um certo deixa andar, como se o tempo, que tudo resolve,
pudesse vir em seu auxílio.
De repente, foi como se uma luz se tivesse acendido no seu cérebro, um fogacho
e a ideia instalou-se como uma lapa. Primeiro devagarinho, para ganhar espaço,
depois grudou de tal forma que parecia fazer parte da própria cabeça.
****
Ao princípio
não se importou muito, pareceu-lhe quase natural mas, com o decorrer do tempo,
uma certa estranheza foi-se instalando, não era normal, depois de um namoro romântico,
de palavras doces sussurradas em surdina, veio um casamento que parecia
abençoado.
Depois
esta violência. Primeiro eram as palavras ladradas em frases cruéis, a ausência
dos carinhos, depois os sopapos que doíam mais na alma que no corpo.
A
alegria morreu no medo da companhia, antes tão desejada.
As
noites eram pesadelos sofridos nos bafos de vinho ordinário, numa entrega,
ausente, de corpo massacrado num uso de afecto forçada.
Depois os interregnos, curtos, muito curtos, de arrependimentos que morriam no
saciar dos desejos.
Não
queria mais nódoas negras, nem cremes para as disfarçar, não queria mais
desculpas para esconder o que todos já sabiam.
Ia perder o medo, afinal já tinha morrido há tanto tempo que se morresse, mais
uma vez, não ia notar, mesmo nada.
*****
Pensou em tantas coisas que já estava baralhada, imaginou acabar com a raça do
gajo ou cortar-lhe, algo, com a tesoura de podar. Havia riscos, se lhe acabasse
com a existência ia presa, se lhe cortasse, aquilo, corria o risco de ele
acordar e então, havia um cadáver mas não seria o dele.
Estava
confusa, no fundo ainda sentia algo por ele, não sabia bem o quê, mas sentia.
*****
De verdade,
ainda gostava dele.
Talvez as
coisas pudessem mudar.
Mais
uma oportunidade. Afinal, ele, não era assim!
Tentou
abrir os olhos mas, a dor aguda que o percorria, apenas lhe deixou entrar uma
confusão de luzes, barulhos e sons que não conseguia compreender. Havia uma
espiral de claridades azul, girândola que lhe atravessava as pálpebras
cerradas.
Queria falar
mas as palavras ficavam perdidas num emaranhado de confusão, que não sabia
explicar.
Não
sentia o corpo, estava leve, num levitar doce e tranquilo.
Viu o
pai, chamava-o de joelhos na areia molhada da praia. Correu para os braços,
fortes, que abraçaram com amor o seu corpo ainda tão frágil.
Era tão
criança a correr, atrás da bola que o pai atirou para longe. Correu molhando os
pés na água que se espraiava na areia.
Ao
longe a mãe sorria.
Viu-se
a receber o canudo da formatura, a mãe tinha os olhos molhados das lágrimas, de
satisfação, pelo seu menino. A Laura, estava ao lado e, sorria com
tanto amor, que lhe apetecia deixar a formatura e correr para os seus braços e,
beijá-la com todo o amor que sentia.
Lembrou
o dia do casamento, sentiu-se ridículo naquele trajo de cerimónia. A Laura
estava deslumbrante, tão radiosa.
Sentiu-se
a levitar, numa doçura e, numa tranquilidade como nunca sentira antes.
Era uma
música diferente, sons que nunca antes escutara, uma harmonia, que o embalava
como se flutuasse num mar de pétalas perfumadas.
A luz
avançava devagar, num salomónico de luzes suaves, que o levavam enleado em
reflexos de rostos que conhecia mas de que se não lembrava.
Depois………...
foi o silêncio.
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Jornal
Correio da Manhã do dia 24 de Dezembro.
Mais um
grave acidente ceifou uma vida na flor da idade e deixou outra em estado muito
grave.
João
Gomes, um jovem de 23 anos, quando chegou ao Hospital já era cadáver, a sua
esposa Laura Gomes está em observação com prognóstico muito reservado.
Segundo
testemunhas do acidente, pode ter sido o excesso de velocidade e o estado do
piso, devido ao mau tempo, os causadores do grave despiste que originou mais
uma tragédia na véspera do Natal.