quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Amor para sempre








Já são 10 horas e eu ainda na cama, não é normal, este laxismo está a bulir com o meu pensamento.

Sou, como dizia alguém, o galo da manhã. Gosto de ver o sol a aparecer, timidamente, no cume do monte que se adivinha da minha janela e, digo adivinha, porque quando vou espreitar, para esses lados, o monte não é mais do que uma pequena elevação, porque a minha casa fica no vale e provoca a ilusão de um monte que não o chega a ser.

Mas isto é fugir à questão porque hoje foi diferente, não madruguei e ainda, agora, a vontade de sair da cama não é muita. Antes, quando eu tinha a Luzia, muitas vezes, deixava-me estar para não perturbar-lhe o sono de tão cingida que estava ao meu peito. Hoje estou só, ela abalou, consumida pela doença má.

Lembro o último sorriso na doçura das derradeiras palavras:

-Diogo, meu amor, vou partir mas fui a mulher mais feliz do mundo, só porque te tive para mim.
Vais seguir a tua vida e encontra outra que saiba, como eu soube, ser uma estrela na tua vida.
Sorriu, sorriso pálido, e morreu com os olhos fitando os meus numa, quase promessa, de continuar sempre a olhar por mim.

Foi há 11 meses e eu acordo, sempre, com essa sensação de a ter ao meu lado, enroscada no meu corpo.

Hoje foi diferente, acordei tarde sem qualquer sensação de companhia, só uma sensação de desconforto, que não me é habitual.

****

Há qualquer coisa que me preocupa, a minha lucidez não é a mesma, são dez horas e eu continuo na cama, não me apetece levantar, não me lembro de qualquer compromisso, não tenho nada para fazer só, mesmo, estar aqui deitado à espera nem eu sei bem do quê.

Ontem, foi o mesmo, deixei-me ficar neste torpor, neste preguiçar doce, com o pensamento de não ter nada para fazer e, afinal, tinha o casamento da Raquel e do Henrique. Foi um esquecimento inexplicável, se o Amadeu não tivesse telefonado, à noite, a saber o que se passava nem desculpa teria pedido ao casal.

Vou-me levantar, vou ver o meu monte e imaginar que, às 6 horas e 57 minutos, o sol nasceu, além, naquele sitio. Não vi, mas nasceu!

Levantei-me, não sei bem para que, não tenho nada para fazer! Ou tenho  e não me lembro! Agora ando assim!

Antes levantava-me cedo e ia trabalhar, agora fico em casa não sei porque, eu acho que tenho um emprego, mas não sei qual nem onde.
Um dia vou-me lembrar!

A Minha cozinha está um desalinho, a empregada não tem aparecido.
Ou será que a Guida já não  é nossa empregada?

Não me lembro, quando tiver vontade vou arrumar, deito fora as latas vazias, são de conservas, só tenho comido conservas, quando acabarem tenho que ir comprar mais. Não recordo onde se vendem mas, sou inteligente, vou descobrir.

Não sei se o cão tem comido, mas se calhar a Luzia não se tem esquecido, não o tenho ouvido ladrar.

Eu acho que vou fazer anos um dia destes, tenho que descobrir, é uma vergonha mas não me lembro. Não faz mal é muitas vezes assim, mas a Luzia convida os nossos amigos, faz uma festa e encomenda um bolo, de morango, como eu gosto, com velas a lembrar que é de aniversário, senão as pessoas até se podem confundir.

A casa de banho cheira mal, é dos esgotos, isso passa. O fulano que está no espelho não o conheço, como está aquele tipo, no meu espelho? Despenteado e com uma barba horrorosa. Não me vou preocupar, deve ser alguém conhecido, da Luzia, que veio tratar dos esgotos.

Tenho estranhado a televisão sempre apagada, a Luzia liga-a logo de manhã e fica até irmos para a cama. Se calhar já se fartou das telenovelas, não me admira é sempre a mesma porcaria.

Não percebo bem dessas coisas, mas devemos estar na Primavera, tantos pássaros, lá fora, esse chilreado está-me a incomodar, eu gosto dos pássaros mas podiam andar calados.

Tenho uma dor de cabeça enorme, a Luzia dá-me um café forte com limão e passa, mas ela deve ter ido à escola buscar o nosso filho, ou será filha? Não me lembro mesmo se temos filhos, acho que não!
Deve ter ido a qualquer lado, não costuma ir só, mas como me doía a cabeça quis poupar-me.

Já não tenho nada na dispensa. Será que a Luzia foi as compras? Sozinha? Não é normal!

Vou-me deitar até que ela chegue, não gosto de estar só, sem a Luzia, sem o cão e, até o gato desapareceu.
Acho que tínhamos um gato, mas posso estar a fazer confusão, ando numa fase que baralho tudo. Vou, então, para a cama depois a Luzia acorda-me para o jantar.

Sem ela eu não era nada!


*****


Foi o cheiro que alertou os vizinhos.

As autoridades abriram a porta e encontraram o Diogo, na cama, em adiantado estado de decomposição.

Segundo os médicos estava morto, pelo menos, há dez dias.

Deve ter morrido no dia em que completava 52 anos.




15 comentários:

chica disse...

Uau!! Que história!! Linda e a confusão do Diego, sem parecer mais nada entender teve seu final...Triste, lindo! abração,chica

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

estou muito comovida e triste.

se é ficção podia muito bem ser real.

penso que é real.

é triste muito triste, alzheimer não perdoa e pode acontecer a qualquer um de nós.


mas, e também no nosso País se morre de solidão.

há algum tempo atrás, escrevi o poema que transcrevo abaixo.

Morre-se de solidão no meu país

A solidão prolongada
Em forma de sombras
Neutras
Esbatidas
Infiltrada nas paredes
das casas fechadas – com gente dentro
e a noite a fechar o dia mais uma vez
duas vezes – muitas vezes

e morre-se devagar no meu país

as árvores no Outono estão nuas – esquálidas
no Inverno o frio magoa os ossos e a alma
mas talvez os melros cantem antes da próxima primavera
se o verão chegar todos os dias
no sol de uma tigela de sopa fraterna

morre-se devagar no meu país

e depressa tudo se esquece.


:(

SOL da Esteva disse...

Suprema história nos caminhos duma realidade a cada dia que passa, mais presente...infelizmente.
Diogos que se perdem nas memórias dos tempos, são mais que o que os noticiários desvendam.
Quem desconhece casos próximos?
Meditação atravéz dum Conto...
Muito bom, Manuel.


Abraços


SOL

Maria Luisa Adães disse...

Manuel

Te saúdo por tua sensibilidade
por teus escritos que traduzem
tão bem a Verdade!

Me encanta tua amizade, tua assiduidade e tuas palavras tão verdadeiras e tão certas.

Daqui por 15 dias regresso a Portugal!

Até sempre,

Maria Luísa

São disse...

Muito bem escrito, o texto!

Mas aumentou ainda mais o pânico que eu sinto pelo sofrimento e pela dependência

Abraço

Anónimo disse...

Olá, estimado Manuel!

Coitado do homem! O que faz a solidão!

já não tinha nada na despensa, mas pensava que continuava a viver, ou melhor, a sobreviver, sem se alimentar. Vivia de recordações, e foram elas, que o levaram para outras esferas, talvez mais felizes.

Bom fim de semana.

Beijos da Luz.

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

já tinha comentado este texto, que me comoveu muito, mas não deve ter ficado.

:(

Magia da Inês disse...

°º♫♬° ·.
Toda solidão é trágica!!!

░B░O░A░

░S░E░M░A░N░A░!!!

°º♫♬° ·.
Beijinhos.
°º♫♬° ·.

Anónimo disse...

Acho que ele morreu de amor... A solidão é as vezes fatal.

Seus contos são sensacionais, Manuel.Gosto muito, mas muito mesmo.

Beijinho, querido e boa semana.

Palavras disse...

Meu amigo querido,

você escreve com tanta verdade que me emociono. Deu pra ver a cara do sujeito, sem vida, sem rumo, sem norte...

Muito bom! Bravo! Bravíssimo!!!!

Grande abraço

Leila Rodrigues

Unknown disse...

Pobre homem e que tristeza morrer sozinho...de Amor pela Luiza
Um bom conto para ler e elogiar

Tenha um bom domingo

Abraços de sempre

________Rita!!

Sandra Gonçalves disse...

Ah amigo, gosto dos finais felizes, mas aprendi muitas lições com teu texto. A Sandra foge mas a Sandra volta. Bjos achocolatados no seu coração

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Meu querido Manuel

Uma estória que infelizmente nos dias de hoje está cada vez mais presente.Ninguém tem tempo para se preocupar com os outros.
Como sempre adorei ler-te,embora triste prende até à última palavra.

Um beijinho com carinho
Sonhadora

Unknown disse...

Bom dia Amigo
Vá salta da cama e vamos fazer ginástica para acordar.
Essas recordações todas serão fruto de uma vida muito activa, mas agora estamos a viver outra fase. Devemos aproveitar remexendo ou abanando o capacete de modo que as nossas recordações sejam hoje e agora.
O Ontem já foi e amanhã não sabemos se virá.
Hoje passei numa visita curta aos meus amigos de sempre.

Vivian disse...

Puxa...que triste...
Mas bem tramado e lindo!
Beijos!