domingo, 2 de novembro de 2014

A Vida - Parte 6








Aproximou-se de Joana, colocou-lhe a cabeça no ombro e começou num choro convulsivo.

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Era quase irreal, aquele homem que Joana endeusara estava ali, tão frágil e tão insignificante.

Deixou-o lavar a alma, as lágrimas foram substituídas por leves soluços que, a pouco e pouco, foram morrendo num esmorecer até que, o senhor doutor, recuperou a compostura.

Olhou Joana, como se a estivesse a ver pela primeira vez, depois voltou para a secretaria, tomou o porte habitual e voltou a ser o Senhor Presidente.

A voz saiu-lhe um pouco alterada, mas Joana quase não notou:

-Desculpa, Joana, sou muito racional e não me deixo, normalmente, levar pelas emoções mas foi superior às minhas forças. Ando há 25 anos a sonhar com este momento e, agora que a encontrei, já não tenho a certeza se é isso que eu desejo.

A rapariga não sabia o que fazer. Tentou manter alguma serenidade mas, era difícil, estava convencida de haver uma série de circunstâncias que faziam parecer real o que eram, apenas, coincidências.

A mãe, que soubesse, nunca foi casada, ela era a única filha e nunca na vida foi Malcata, ou então andaram, todos durante estes 23 anos a esconder segredos e a mentir.
Não sabia se os poderia perdoar.

Encontrou coragem e tentou tomar conta da situação:

-Senhor doutor, tenho a certeza que existe uma grande confusão, uma enorme coincidência. Vou descobrir tudo e, se aceitar, voltarei com provas do que penso.
Espero, que esta confusão, não prejudique a minha bolsa!

O senhor Presidente, finalmente, recomposto aflorou um sorriso:

-Vai Joana! A bolsa é tua porque a mereces, o resto deixo nas tuas mãos, Toma o número do meu telemóvel. Liga quando quiseres.

Joana saiu, nem se despediu, levava no pensamento a fragilidade daquele homem, que procurou no seu ombro a força que, de repente, o abandonou.

Foi um momento difícil, não estava preparada mas, gostou, confessa que gostou de sentir o calor, do rosto molhado, no aconchego do seu ombro.

Ia permitir-se uma extravagância, chamou um táxi e foi a caminho de casa.

Não estava ninguém, os pais deviam ter ido ao supermercado.

Era bom, ia para o quarto, punha uma música baixinha e tentava por em ordem o turbilhão que tomara conta do seu cérebro.

Deitou-se e acabou por adormecer!

Teve um sonho confuso, estava com o doutor mas de repente já não era ele era o Maurício, depois a mãe já não era mãe, era uma estranha que aparecia a reclamar o filho, gritava que lho tinham roubado e, ela Joana, estava no meio de todos que lhe apontavam um dedo, como se a estivessem a acusar de algo que não sabia o que era.

Felizmente os pais chegaram e saiu ilesa da confusão de um pesadelo.

-Então, Joana, como correu essa coisa da tua bolsa?

Preferiu não falar, por enquanto, do sucedido queria fazer as coisas à sua maneira, limitou-se a dizer:

-Tudo em ordem, pai, foi para assinar uns papéis, o valor deste mês já foi transferido para a minha conta.

Deu-lhe um beijo, fingiu distracção e saiu sem dar um beijo à mãe.

*****

Maria do Rosário não gostou, nada, do gesto da filha e comentou:

-Vistes que a fedelha saiu sem me dar um beijo? Tão importante que ficou de repente, se calhar pensa por ter uma bolsa é rica e esquece os sacrifícios que temos feito! É para isto que estamos guardados!

-Oh, mulher não sejas assim! A rapariga anda nervosa, é uma carga muito grande, os estudos e os problemas, é muito nova para tantas ralações. Podes ter a certeza que ela pensa que se despediu de ti. Nem sei como podes ter essas ideias da nossa menina!


******

Joana saiu de casa sem saber bem que fazer, precisava de conselhos de falar com alguém que a soubesse ouvir e orientar. Era muito para ela, tudo assim tão de repente.

Foi o acabar com o Maurício, não foi o pior, pelo menos não a abalou tanto como pensava, depois a bolsa de estudos, a expectativa criada, a seguir foi conhecer um homem que ficou a bailar no pensamento, a ter desejos, a fazer projectos, a olhar para ela própria com perspectiva diferente e como se tudo isso não fosse, já muito, a fita melodramático do homem que se diz ser filho da mesma mãe.

Ela tem a certeza que, o Presidente, deve ter algum trauma, e torna as coincidências em realidades, e ele preparou toda a encenação, tinha a certeza que algo, recalcado, no cérebro do homem estava a toldar-lhe as ideias e a fazê-lo ver Juno onde apenas estava a nuvem.

Há outra coisa que a confunde, porque não estava a Doutora Cândida nesse dia?

Era isso mesmo, ia telefonar à doutora e pedir ajuda, era abusar, um pouco, afinal quase a não conhecia, mas gostou dela e não lhe pareceu capaz de negar um conselho.

Ia telefonar-lhe.

Ligou a primeira vez e não teve sorte, o telemóvel foi para as mensagens, deixou uma muito simples:

-Boa tarde senhora doutora, sou a Joana dos Reis e gostava de um conselho seu. Volto a ligar mais tarde se me permitir!

Não precisou de ligar, a doutora, passado pouco tempo, respondeu-lhe:

-Olá Joana que bom receber noticias tuas! Já sei que a reunião, com o senhor Presidente, correu bem. Tive pena por não estar mas, fui representar o chefe num evento. Não é normal, eu fazer essas coisas, mas o doutor insistiu e não tive outro remédio. E tu, minha querida, como estás?

Joana pareceu ficar a ganhar coragem. Por fim lá se atreveu:

-Sabe, senhora doutora, estou com muitos problemas e muitas dúvidas, não sabia a quem pedir orientação e tomei a liberdade de a incomodar. Espero não se zangue comigo? Um dia, em que tenha um bocadinho, pode dar-me um ou dois conselhos?

A doutora ficou feliz, muito feliz, gostou da escolha e foi pronta a responder:

-Que diz almoçarmos, amanhã, as duas?

Espera por mim, às 13 horas, no café que fica na esquina, em frente, é o Café do Zico!

-Conte comigo, senhora doutora, muito obrigada!

Foi para a faculdade, tinha uma aula de Anatomia Patológica, precisava estudar pois não lhe estava a correr muito bem. Mas ia recuperar!



******


Começava mal, tinha acabado de cruzar os portões e deu de caras com o Maurício, quase que passava sem o ver mas ele estava atento:

-Olá, Joana, pensei que tinhas emigrado!

-Não, Maurício, respondeu, por enquanto ainda não precisei, mas se chegar a altura, e for solução, não vejo problema nisso.

-Desculpa, Joana, não queria ser desagradável! Já sei que conseguistes uma bolsa e mereces e, também sei, que tens um novo amor, alguém muito importante. Estou a par de tudo! Não sei, ainda, quem é o gajo e se descobrir que foi por causa dele que vazastes, eu dou-lhe cabo da cara bonita. Nunca mais se vai querer ver ao espelho!

Joana perdeu as estribeiras e gritou, mas gritou mesmo:

-Continuas o mesmo menino mimado, não há maneira de cresceres, parvo como sempre! Eu não vazei, como dizes, tu é que te esquecestes de que tinhas um compromisso!

Não tenho gajo nenhum, bastou-me um para ficar farta. Desaparece, vai ter com a Lisete antes que ela te troque por outro.

Desapareceu com os saltos dos sapatos a fazer saltar as pedras, da gravilha, do caminho.

Ainda olhou, de soslaio, Maurício continuava pregado no mesmo sítio, com cara de quem acabou de engolir um sabonete.


*******

Cinco minutos depois das 13 horas, a doutora Cândida chegou ao café, como combinado, pegou no braço de Joana e encaminharam-se para um pequenino restaurante, numa travessa próxima.

Só então falou:

-Venho aqui, quase sempre, é muito simpático, não é caro e tem boa comida.

-Por mim está bom, só queria era falar com o senhora doutora.

-Então vamos começar por acabar com a senhora doutora. Cândida é o meu nome e agora somos amigas. Não somos?

-Somos e vou ver se consigo, disse Joana.

Joana pediu um peixe grelhado e a doutora, como não apreciava peixe, preferiu umas salsichas com couve lombarda.

Conversaram de trivialidades, pareciam duas amigas de longa data. Joana parecia estar a ganhar coragem, não sabia exactamente como começar mas, tinha que ser e começou:

-Cândida, afinal não foi difícil, sabe que na entrevista com, o senhor presidente, as coisas não saíram muito bem! Foi muito simpático, recebeu-me muito bem mas, de repente, entrou em confusão com o nome da minha mãe, dizia que podia ser a dele, com um apelido diferente, depois perdeu o controlo e começou a chorar.

-Foi difícil até acalmar, disse que procura a mãe há 25 anos e que a minha pode ser a dele.
Fiquei assustada, pensei que tinha endoidecido e que me ia tirar a bolsa.
Depois acalmou, sossegou-me, disse que a tinha ganho por mérito. 

-Tentei, juro que tentei, manter-me calma e acho que consegui.

-Falei-lhe de coincidências e prometi descobrir alguma coisa e depois telefonar.

-Não o quero fazer! Tenho receio de fazer perguntas lá em casa, tenho a certeza que a minha mãe não teve outra vida diferente da que tem.

-Que me aconselha a fazer?

-É difícil de perceber, respondeu a doutora, o presidente não é homem dessas coisas, é muito pouco emotivo, ou sabe esconder bem, as emoções.
Eu trabalho com ele há muitos anos, sempre o tenho acompanhado e nunca lhe conheci família e nem o ouvi falar dela.

-Sabes, Joana, um dia assim como quem não quer as coisas, dás a entender à tua mãe que tens um novo amigo, muito interessante, que se chama Albino Manuel Vicente Malcata. Pela reacção ficas a saber, há coisas que não se conseguem esconder.

-Obrigada, Cândida, vou fazer isso. Pagamos a meia o almoço, pode ser?

Assim o fizeram.
*******


Foi uma noite interminável, tinha sono mas a cabeça cheia de ideias não lhe deixavam o mínimo de tranquilidade para adormecer mas, finalmente, o cansaço foi mais forte e ajudou a uma noite de sono.

Acordou com a chuva intensa e o vento forte a abanar as persianas. Soube mais tarde que os aguaceiros tinham feito muitos estragos, garagens inundadas e lojas, meias de água, e muitas mercadorias totalmente estragadas. Tem pena, de tantos que vão sobrevivendo, em barracas, sem um mínimo de condições, mas nada pode fazer. Não tem poder para isso.


*******



O pai já tinha saído, a mãe ainda dormia.

Tentou não fazer barulho, saiu de mansinho e foi tomar, o pequeno-almoço, ao café do senhor Esteves. Uma torrada com doce de tomate e meia de leite.

Na faculdade foi apanhada de surpresa, o Maurício e a Lisete estavam à sua espera. Que desagradável surpresa, para começo de dia era um, muito mau, agoiro.

Foi o Maurício que tomou a iniciativa:

-Joana quero que oiças a Lisete para saberes que não aconteceu nada do que pensas, era um encontro inocente e casual.

Joana deu uma gargalhada que lhe compensou o mau acordar:

-Ouve menino, o que tu queres é-me indiferente, é contigo e eu, para não ser mal-educada, estou-me lixando para isso. Tenham bom dia e, de uma vez por todas, desemparem-me a loja.

Maurício ficou espumando de raiva, e entre dentes deixou uma espécie de ameaça:

-Ainda te vais arrepender e ter pena do que perdestes!


******

Chegou a casa um pouco tarde, foi um dia muito intenso, as aulas de anatomia ainda mexiam, muito, com ela, mas com o tempo havia de se habituar.

Os pais já estavam à espera para o jantar.

-Então filha tão tarde! Como foi o teu dia? Perguntou a mãe. Podias-me ter acordado de manhã!

-Estavas a dormir tão calma que, não tive coragem e, o meu dia foi cansativo mas óptimo. Conheci um tipo muito “giraço” que pareceu que, também, engraçou comigo. É uma pessoa importante, director de uma grande Empresa, um tal Albino Manuel Vicente Malcata, até o nome é chique.

-Como? Perguntou a mãe, enquanto ia desfalecendo e caindo, como um boneco de gelatina,
deslizando num soalho.



Vou tentar acabar na próxima. Vou tentar!







14 comentários:

Unknown disse...

Manelamigo

Ca verdade minganas. Estou certíssimo: esta estória em fascículos vai dar uma novel se não um romance...

Abç

Evanir disse...

Sua amizade sempre foi muito importante para mim
sem duvidas acredito ter lutado muito nesses anos
embora poucos estavam comigo a quase dez anos atrás.
Hoje estou passando para deixar um
pouco do perfume que ficou no frasco.
Embora tenha capacidade de entendimento,
que passado é perfume de primaveras mortas.
Agradeço por tua amizade tão especial,
e por me fazer sentir que ainda sou
alguém com quem você se importa.
Deus te abençoe ..sempre..
Um abraço grande ,
e especial.
Com muito carinho.
Evanir.
Tenha uma linda ,
e abençoada semana..
Eu amo vir a seu blog gosto imenso.
Em 2014 você esteve comigo
falta muito pouco para terminar ,
mais um ano.
Hoje posso chamar de ano dourado..
Estou matando saudades!!

Unknown disse...

Continua Manuel.
Gosto da história. Afinal parece que também conhecemos alguém assim e estes episódios são de uma realidade muito dura.

chica disse...

Tens tanto dentro de tua cabeça.Inspiração linda não te falta! Vamos ter ainda mais e mais.Tomara! abração,chica

Maria Luisa Adães disse...

Aqui está a parte -6

E a sua realidade dura
Tão igual à nossa vida!

Também venho dizer que os comentários vão continuar abertos!

E meu marido talvez tenha de ser operado, (coluna - Sacro-lombar) momentos difíceis e projetos alterados.

Que bom poder ler e conversar...

Abraço grande!

Maria Luísa

Mirtes Stolze. disse...

Querido Manuel.
Hoje passo so para desejar um feliz més de novembro, deixar um grande abraço.
Assim que for possível venho para ler, estou morta de sono rsrs,tive um dia de vitoria mais profundamente cansativo, cheguei agora, amanhá me espera arrumar uma grande mudança de residencia rsrs , para melhor.
Um forte abraço.

Smareis disse...

Oi Manuel,

História que mais parece realidade.
Estarei acompanhando os próximos capítulos.
Estarei atualizando por esses dias.
Beijos e ótima semana!

São disse...

Ficando à espera...

Foi bom recordar Rod S.

Boa semana:)

SOL da Esteva disse...

Ou me engano muito ou Joana "apanhou" a verdade das origens. Será?
Recolhem-se opiniões para um final a desenvolver-se na próxima edição.
Amigo. Fico perplexo pelos caminhos que me fazes trilhar nestes teus Contos de final meio imprevisível.


Abraços


SOL

rosa-branca disse...

Olá amigo Manuel, só não gostava que eles fossem irmãos, pois o Albino merece um lindo amor, mas por vezes a vida prega muitas rasteiras. Obrigado pelo seu carinho lá no meu canto. Talvez qualquer dia(talvez) Eu escreva mais alguma coisa. Estou amarga demais e só sai revolta. Sinto-me cansada...muito cansada... Beijos com muito carinho

Unknown disse...

Boa noite, Manuel,
Encanta-me sua inspiração, e bons argumentos que arranja.É um novelista de 1ª, meu amigo.
Aguardemos desfecho.
abço amg e bom fds

Unknown disse...

Fico ansiosa pelo final dessa eletrizante história, e ao mesmo tempo já sentindo saudade desses personagens que ficam a me encantar. Tenho certeza de que será um final digno dessa tua privilegiada veia de escritor.
Sorrisos e estrelas na tua semana,
Helena
(http://helena.blogs.sapo.pt)

Mirtes Stolze. disse...

Bom dia Manuel.
Finalmente meu amigo, conseguir vim ler a historia, como sempre saboreie a leitura rsrs. Uma semana cheia de alegrias. Abração.

Lúcia disse...

Pobre Joana, já tão abalada e tendo que "testar" a mãe, para a confirmação. O desmaio, já revelou a verdade! Lá vou eu pro sétimo céu!(a história, é fascinante!)...