quarta-feira, 18 de novembro de 2015

O Ciclo




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Como sabem, na vida, nem tudo tem um final feliz.






Nasceu numa terra, tão pequeno, que ainda nenhum mapa, se atreveu a colocar um ponto para a referenciar.

Tinha uma escola, dizem que tinha, pois eram duas salas, na Junta de Freguesia, que cumpriam esse dever.


Na maior, de bancos corridos, estavam os pequenos, eram mais, primeira e segunda classe que, entre brincadeiras, ralhos e castigos ligeiros, iam aprendendo as letras e a pintar bonecos num caderno.

Em regra pintavam um caminho, com uma casa de chaminé fumegante, e dois personagens que, na imaginação dos miúdos, representavam os pais.

Na outra, sala, mais pequena, os maiores, que eram poucos, pois logo que tinham força deixavam a escola. O sacho iria substituir o lápis.

Os tempos eram difíceis, mas alguns iam subsistindo, aprendendo a gramatica, a história e a geografia que ia para além do povoado.

Ele não passou da primeira sala, pois uma camioneta, por estradas poeirentas, mudaram a sua  vida atirando-o para uma cidade barulhenta, impessoal, onde ninguém se saudava e todos se acotovelavam, como se quem chegasse primeiro tivesse direito a um prémio, nunca percebeu as presas e os atropelos, pois muitos iam apenas à procura do nada.

Não compreendeu isso logo, pois era apenas um fedelho embasbacado com o bulício e tentando passar despercebido, pois, se desse nas vistas um sopapo reduzia o atrevimento à, conveniente, invisibilidade.

Os primeiros dias foram estranhos, parecia que ninguém se entendia, arrumar a pouca tralha, que dois homens carregaram escada acima, até às águas-furtadas, onde agora, iam ser distribuídas pelos cantos dos dois quartos.

Estava curioso, mas não se atreveu a perguntar, onde iria parar o divã onde se aconchegava à noite, muitas vezes fingindo dormir, era a melhor maneira de não apanhar com os destroços das, constantes, discussões domésticas.

Nunca se percebeu se era a falta de dinheiro ou o vinho que o pai bebia, mas não interessava, nunca passaram de palavras, eram crescidos e acabavam por se cansar e ir para a cama e, ele, se estivesse a dormir ou a fingir, sempre se livrava de ser o bombo da discussão.

A escola, aqui a escola, era um mundo, não eram 10 alunos, eram muito mais, quantos não sabia, só lhe tinham ensinado a contar até 20.

A professora sabia muito, viu que ele estava nervoso, com medo, diferente dos outros que tinham roupas bonitas e sapatos que não faziam doer os pés. Ele não, a roupa era reciclagem das coisas que o pai ia deixando, a mãe cortava e cosia, ele experimentava, não tinha direito a opinião.

Era essa, nunca teve outra.


As botas, tinham que durar enquanto o pé as suportava, só quando cresciam e já não cabiam em substituídas. Pesadas, untadas com velas de sebo da Holanda, duravam mais e, tinham, uma carreira de cardas para poupar a sola. Nunca percebeu porque, o pé crescia, as botas eram arrumadas e a sola continuava lá, forte e boa.

A professora percebeu que ele era um menino igual mas muito diferente, chamou a atenção:

-Meninos hoje têm um colega novo, é igual a todos, mas vem de um sítio diferente e, agora tem que aprender, com a vossa ajuda, a ser um de nós.

-Mas, disse a Carlos, ele está mal vestido!

O rapaz não gostou e se não tivesse ali a senhora professora, já lhe tinha dado um soco no nariz, mas não podia, fingiu não perceber e sorriu.

A professora gostou do sorriso, o menino era inteligente e deu a primeira lição.

-Ouve Carlos, cada um veste conforme as possibilidades dos pais  e, o valor dos meninos e meninas, não está no que vestem mas sim naquilo de que são capazes. E o vosso novo colega, o Armando mostrou, agora mesmo, que têm uma grande personalidade. Se fosse outro era capaz de reagir mal, mas não, ele ainda sorriu para ti.
Aprende a lição!

Dizem que as crianças, que não se sentem amadas e têm instabilidade doméstica, não são bons alunos, provavelmente é assim mas, Armando foi, decerto, a excepção à regra, se é que existe essa regra. Foi sempre dos melhores.

A escola passou rápida, foi sempre um bom aluno. Quando saiu pensava ir para o liceu, a professora até tinha dito:

-Continua assim e chegarás longe!

Mas não, não foi muito longe, ficou logo na oficina, ali à esquina, um pouco clandestino, ainda não tinha idade para trabalhar, mas na confusão e no barulho das máquinas passava despercebido.

Quando fez 14 anos, passou a ter um número, da Caixa de Previdência, um ordenado oficial, antes mandavam, todos os meses, umas notas num envelope que, religiosamente, entregava ao pai.



*****

Faz amanhã 16 anos, sabe que é amanhã, porque é o que diz o Bilhete de Identidade, por vezes deixa passar o dia e nem se lembra, é fácil esquecer quando, em todos os anos, nunca teve uma festa de aniversário e, nem sabe o que é soprar as velas, apenas ouviu dizer que é uma tradição que começou nos gregos, não os de agora, os outros que tinham deuses, ou se calhar foram os Egípcios, não sabe bem. Já ouviu dizer que era uma festa, com velas, para proteger o festejado dos demónios, depois o catolicismo proibiu porque era uma festa pagã. Agora, parece que, já é uma coisa de todos.
Tem ouvido, e lido tanta coisa, que não se importa o que é ou o que não é.

Ele nunca teve nenhuma, mas vai fazer 16 anos e, tem tudo preparado, vai sair de casa, se calhar nem vão dar por falta dele, ou talvez sim, quando no fim do mês o seu ordenado não apareça.

Despediu-se da oficina, afinal sempre foram bons para eles. Não deu explicações, também nada lhe perguntaram.

*******

Não tinha planos, dinheiro muito pouco, foi amealhando ao longo do tempo, mas não iria dar para muito.

Apanhou a camioneta, só havia uma por mês, e foi para conhecer a terra onde nasceu. Tinha uma lembrança, muito vaga, umas casas baixas, alinhadas numa rua calcetada com pedras, negras, de basalto que faziam as rodas dos carros, puxados por mulas, chispar.
As ruas laterais, tem essa recordação, são de terra pisada que se transforma em barro quando chove.
O resto, morreu na memória, até a casa onde nasceu, tem dificuldade em a puxar ao pensamento.

Foi uma viagem cansativa, embora as estradas sejam melhores, mas muitas horas num banco, desconfortável, deixam marcas nas costas e nas pernas.

A aldeia parou no tempo, saiu há 11 anos e pareceu-lhe que ainda ontem aqui esteve, tão presente na memória que não conseguiu reter, uma lágrima, que logo enxugou no calor do rosto.

Ia procurar a casa, não tinha certeza mas tinha a ideia que ficava ao fundo de uma travessa íngreme e escorregadia.

Andou, meio perdido, por ruas que pareciam familiares mas era, apenas imaginação, porque todas as ruas eram iguais.

Perguntou a um senhor de bata cinzenta com alguns salpicos de lixivia:

-O senhor desculpe, pode dizer-me onde é a Junta de Freguesia?

O homem olhou, com muita atenção, parecia que a pergunta era algum disparate.

-Ouve lá, donde é que eu te conheço? Esses olhos! Já os vi, não sei onde mas já os vi.
Não me lembro mas só pode ser sido aqui, nunca fui mais longe!

-Deve estar a confundir com outro, cheguei hoje.

-Se o diz, respondeu o homem, mas a Junta é já no começo dessa rua ali, á direita, é um edifício pintado de amarelo, mas logo vê. E tem a certeza que nunca esteve aqui?

Limpou as mãos, na bata, e cogitando foi entrando para o estabelecimento.


****

A Junta lá estava, igual, só a cor era diferente, antes estava pintada de branco, o resto não tinha mudado.

Entrou, com algum receio, mas ninguém se ia lembrar dum pobre diabo, escanzelado, mal vestido e meio envergonhado.

Uma menina ao balcão, perguntou:

-O que deseja o senhor?

Olhou em volta para ver quem era o senhor, devia ser ele, era alto e entroncado passava por um homem.

-Ah! Desculpe, vinha saber se posso falar com a senhora professora Celeste?

-A professora já não está aqui, casou e foi, com o marido, para França, emigrou.

-Desculpe, quando? Perguntou Armando.

-Foi há cinco anos, o mês já não sei bem. Mas porque pergunta isso tudo?

- Andei aqui na escola, era a minha professora.

-Pois, nessa altura era aqui a escola, agora não.

Agradeceu e saiu para o calor do dia. Precisava, não sabia porque, mas precisava ver a casa onde nascera.

Não foi difícil, na cabeça fez o percurso que fazia então e, encontrou a travessa, continuava íngreme mas não estava escorregadia, foi coberta com alcatrão.

A casa já não era casa, paredes caídas pelo abandono, das portas e janelas restavam uns buraco  onde podia ver, espalhado pelo chão, o que restava das telhas que as ripas não aguentaram.

Triste, muito triste a casa tinha morrido, sabia que as casas não morrem, mas foi o que sentiu.
Apeteceu-lhe chorar, teve vergonha e olhou em volta, o senhor da bata salpicada olhava-o do cimo da travessa.

-Já sei! Quase gritou, eu nunca esqueço, uma cara, e muito menos um olhar. Já sei quem és!

-Ok, respondeu. Sabe mas não me lembre que eu estou a tentar esquecer.


******

Jurou que não ia chorar, já chorou muito, envergonhado, às escondidas, mas acabou, não tinha mais lágrimas.

Nasceu, tem a certeza, por um engano da natureza, não era destinado a viver, não fazia parte da criação. Foi um erro da máquina da vida.

Desceu a travessa, ao fim havia um campo enorme, cheio de flores brilhando ao sol, era um céu ao contrario, as estrelas eram as flores amarelas brilhando, cá em baixo, na claridade luminosa de uma erva rasteira.

Estava tão cansado, nada lhe restava, até a própria esperança que, ainda, guardava tinha emigrado.


Não tinha para onde ir, o dinheiro era pouco, a vontade nenhuma e o desejo de desistir enorme.

A noite estava a cair, o calor ainda era enorme, as pessoas regressavam, apressadas, a casa na busca da família de um jantar reparador.


******

Encontraram o corpo, passados cinco dias, estava pendurado numa das traves da casa em ruínas.

Foi o cheiro, se não fosse, se calhar, ainda não o tinham descoberto.











16 comentários:

CÉU disse...

Não entendo bem, ou melhor, não entendo atitudes desesperadas de algumas pessoas, neste caso da personagem fictícia do seu conto, de nome Armando, k por ter tido uma infância deficitária, carente de muita coisa, e posteriormente uma adolescência difícil, se decide suicidar.

A vida dá muitas voltas, e só Deus sabe o que será o amanhã. A baixa autoestima e o desamparo, talvez sejam fatores responsáveis por estes atos.

Vamos imaginar que a Professora dele ainda estava na aldeia, e k ele tinha conseguido falar com ela, estabelecendo-se entre ambos uma agradável e saudosa conversa. Se assim tivesse acontecido, talvez o Armando não tivesse praticado o ato k cometeu, talvez, penso eu.

A tendência do enforcamento é uma coisa k me aflige, pke o Alentejo sempre ocupou o 1º lugar nessa forma de suicídio. A seguir vem o 625. Porquê dessa forma e não de outra? Eu sei k o isolamento, a solidão um dia após outro podem conduzir a situações destas, mas há k esclarecer as pessoas sobre esses factos. A morte, um dia, chegará!

Gosto muito, em geral, dos seus contos, mas qdo são trágicos, e o Manuel tem tendência para esse tipo de narrativa, fico cogitando, cogitando............

Resto de boa semana.

Abraço com estima.

Manuel disse...

CÉU deixou um novo comentário na sua mensagem "O Ciclo":

Um dia destes o botão cai, e serão as suas mãozinhas a desapertá-lo, ou a tentar ajudar a moça, mas virtualmente, claro, o k é uma grande "chatice".

Fique bem!

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Publicada por CÉU em navoltadotempo a 18 de novembro de 2015 às 18:46

Unknown disse...

Um fim trágico. Chocante.
Um homem pode não ter ninguém,mas terá sempre dignidade e um sonho.
Por mais voltas que a vida dê é preciso continuar e nunca esconder-se nestes finais desumanos.

Lúcia Bezerra de Paiva disse...

Uma história de vida, vida curta, bem retratada, cheia de drama e com um final anunciado. Depois de tanto sofrimento, voltar ao berço natal e não encontrar nenhum amparo: muito triste!
De certa forma, me fez lembrar que, um dia, deixei a minha terra natal, ainda muito jovem, retornando à ela, definitivamente, depois de 25 anos em outra cidade. Sinto falta de pessoas e da arquitetura do passado, que "povoaram" a minha infância e início da juventude: fazem parte da vida,as mudanças.

Mirtes Stolze. disse...

Boa noite Manuel.
Apesar de saber que é um conto, muitos casos assim terminam e eu fico a me perguntar o porque muitos cedem a tentação de acabar com a propria vida, muito triste e eu não sei o que de fato passa na cabeça de quem desiste de viver e termina a sua existência de uma forma tão trágica. Uma linda noite meu amigo. Forte abraço.

CÉU disse...

Boa tarde, Manuel!

Como vai isso?

Pelo que vejo o seu blogue ainda não está a 100%. O meu 2º comentário não conseguiu "sair" espontânea e naturalmente. Agradeço ter sido o Manuel a fazer essas "operações".

Estava olhando para o título k deu ao conto, e pensando: mas os ciclos, como o da água, por exemplo, partem de um estado (as nuvens lançam, despejam água para a terra, por estarem sobrecarregadas, a chuva pode inundar ou não a terra, mas depois, evapora-se pke há sol e fatores climáticos k tal permitem, e tudo, posteriormente, volta ao ponto de partida.

Aqui, no seu conto, infelizmente, o ciclo fechou-se para sempre. A natureza é perfeita, os Humanos, não, concluo!

Um dia feliz e soalheiro, embora esta humidade me acinzente os olhos, e eu não gosto, pke apraz-me clarividências.

Um afetuoso abraço e bom fim de semana, antecipadamente.

Blog da Gigi disse...

Abençoado dia, Manuel!!!!!!! Abraços

São disse...

Ney, excelente cantor que tive o prazer de ver ao vivo em Lisboa.

Bom resto de semana

Palavras soltas disse...

Mesmo com o seu aviso na primeira frase, ainda assim me surpreendi, Manuel. O abandono que perseguiu o personagem até o fim de sua breve vida, me tocou e me entristeceu.

Adorei, como sempre.

Beijinho.

redonda disse...

Estava com tanta esperança que acabasse bem!
Prendeu-me a história e gostei muito, tanto que o Armando me pareceu real e queria que algo bom lhe sucedesse.
um beijinho

Gábi

SOL da Esteva disse...

Não consegui "adivinhar" o fim traçado para o Armando. Afinal, as suas recordações e desejos de rever a terra, a sua casa e a sua Escola acabaram numa frustração fatal, ao invés de o tornarem cidadão.
Os desesperos tornam as Almas frágeis e quebradiças.

Abraço
SOL

dilita disse...

Olá Manuel

Muito obrigada pelas visitas, e também pelo incitamento.
A boa disposição tem andado arredada, e fui colocando fotos para colmatar a ausência de textos. Mas entretanto já voltei a aventurar-me, e escrevi...

Apreciei os seus ultimos contos - O Quase Policial- neste o Manuel não nos fez adivinhar, ficarmos na dúvida até ao fim (como costuma) - aquela expressão disse quase tudo..
Gostei, sobretudo da forma como descreve e constrói a cena, o enredo.

O Ciclo - Bonito, mas triste, e infelizmente muitas vezes real.
O Armando é o protótipo do rapaz da província, aparentemente corajoso, mas de ânimo frágil.
Ele já tinha conseguido "muito", só faltava mais um pouco- mas não foi capaz... e como diz o Poeta "também a morte é viver, quando a vida não é nada!"

Um abraço para si Manuel, e, quero mais contos!
Dilita

ania disse...

Mais um excelente conto muito bem construido, parabéns por tanta inspiração, Manuel! abraços, ania..

Maria Luisa Adães disse...

Tão triste essa verdade...
Me comoveu e me deixou a pensar em todos
que como ele
não chegaram ao final!

Talvez a morte seja a realidade e não a vida...talvez

Mas não quero acreditar nessa estranha verdade
que leva alguém ao suicídio,
por ter perdido a coragem de viver!

Não quero!!!!!!!

Mas aparte isto que digo

louvo seu texto, MARAVILHOSO!


Maria Luísa Adães

Henrique Antunes Ferreira disse...

Manelamigo

Este texto até parece que é da minha autoria - mas não é. Acabar uma estória pendurado pelo pescoço numa trave de uma coisa que foi casa é, infelizmente, um caso de polícia pois o sujeito podia ter-se enforcado, mas também era possível que o tivessem eliminado.

Mas não, não foi preciso fazer qualquer inquérito: era um caso típico de suicídio por desentendimento com a vida.

Gostei.

Abç do Leãozão
henrique20091941@sapo.pt

Henrique Antunes Ferreira disse...

Manelamigo

Quase um caso de polícia este teu conto, como sempre bem escrito; mas, não foi nem é... É,sim,um desvario que acaba mal. Até parece que sou eu o autor; mas não sou - és tu.
Gostei.

Abç do Leãozão
henrique20091941@sapo.pt www.atravessadoferreira.blogs.sapo

Espero por ti, pelos teus imeiles e pelos teus comentários. Obrigado