quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Quase um conto policial








Olhei pela vidraça, da minha janela, na procura de algo que motive a palidez desta sábado chuvoso e triste.

 
O panorama não é animador, rua deserta, quase deserta, apenas um vulto escuro tenta esconder-se na sombra do portão de uma garagem.


O resto? Vazio, janelas escurecidas pelos cortinados ou, estores cerrados a guardar a privacidade dos moradores.


O vulto escuro, tenta, com pouco êxito passar despercebido mas, despertou a minha curiosidade, a chuva parou e ele continua numa, aparente, imobilidade como se fosse parte do próprio portão.

Eu podia descer, ir bisbilhotar, são cinco andares, e o elevador é rápido mas, confesso, estou como o tempo e prefiro continuar, encostado à vidraça, bebendo lentamente, o meu “irish coffee”, esperando por uma visita especial.


****

Domingo, acordou com melhor aspecto, não chove e o Sol, muito timidamente, começa a espreitar por entre as nuvens.
Já não me recordava mas os meus olhos foram atraídos para o portão da garagem, estava aberto, não era habitual mas, agora, estava escancarado. Não era normal, nem aconselhável, mas havia decerto alguma explicação.

Hoje, talvez pela nesga de Sol, desci e fui, num pretexto de beber café, espreitar para saciar a minha curiosidade.


Estava escura, a rampa, e era difícil descortinar, fosse o que fosse, apeteceu-me descer mas tive receio, a dobrar, podia ser acusado de estar a invadir espaço alheio, podia arranjar uma desculpa, mas se o portão se lembrasse de fechar então ficava, mesmo, numa encrenca.

Vou ao café, não me apetece muito mas a curiosidade matou o gato e eu não quero arriscar, o Senhor Amorim sabe todas as novidades e, enquanto bebo uma bica ele vai-me saciando o meu desejo de saber o que se passa.


O Senhor Amorim é um tipo castiço, sempre bem-disposto, adora uma boa conversa e, em regra, está sempre a par dos acontecimentos do bairro. Não é bisbilhotice, diz ele, é mais uma questão de cultura, pois as pessoas cultas devem andar bem informadas.
É discutível, mas que tem lógica, não duvido.

Entrei, como convém, com um alegre:

-Bom dia Senhor Amorim! Quero uma dessas bicas, à maneira, bem curta e a escaldar.

-É para já. Respondeu. Ora aqui está esta maravilha de café, não encontra melhor dez milhas em redor.


-Pois, sem dúvida! Respondi.

Tinha que entrar no motivo da visita, mas com cuidado para ir com naturalidde.

-Aquele portão, da garagem, é a primeira vez que o vejo, assim, escancarado, é estranho, está sempre fechado.

-Pois costuma, quase que segredou, mas quando é aquela ruiva, boazona, do terceiro, com o BMW, do velho que a sustenta, fica sempre aberto, acho que ela não sabe que tem que carregar no botão.

-Mas, ela, é ruiva, não é loira! Respondi mas, logo me arrependi. Achei de mau gosto.

O senhor Amorim passou um pano, no balcão, num gesto mecânico, coçou o canto do olho direito. Parecia preocupado, mas respondeu:

-É estranho e, não é o filho do meu pai, que vai ver o que se passa. Ontem esteve sempre fechada, estive aqui a trabalhar até às oito e não vi ninguém, a entrar nem sair, também com o dia que esteve, quem se atrevia a por o nariz de fora. Estive o dia todo, sempre, às moscas.

-Mas, perguntei, a garagem é do prédio todo?

-Não! Respondeu, devia ser mas o construtor, depois da aprovação do projecto, fez à parte e vendeu em separado. O gajo, que tem a ruiva, comprou tudo e agora vai alugando a quem aparece, mas não se tem safado muito bem.

Despedi-me e fui à minha vida, aliás devia ter ido, mas a curiosidade foi superior à vontade.


Fui ao carro e tirei uma pequena lanterna, que comprei na loja do chinês, e desci a rampa.


Afinal, não estava muito escura, uma pequena janela deixava filtrar uns raios de luz. Quando cheguei, ao final da rampa, apanhei um daqueles sustos. Não estava à espera mas, um projector de aproximação, inundou o espaço com uma claridade amarela.


Esperei que os olhos se habituassem, ao brilho, e segui na bisbilhotice.


Foi então que a vi. Estava estendida, descomposta, os extensos cabelos ruivos estavam empapados no que parecia ser uma pasta de sangue, estava junto à porta, aberta, do carro. Nos olhos, bem abertos, parecia notar-se um misto de terror e admiração.

Já estava arrependido, sim, porque não fui direitamente para casa?

Subi em correria, a rampa, e fui direito ao café, quase gritando:

-Senhor Amorim, chame a policia está um cadáver na garagem!

-Vou ligar já para o 112, pobre rapariga, tão jeitosa!

******

Há dias em que não devíamos sair de casa. Foi o meu caso, estava no sossego do conforto do lar, esparramado num sofá, olhando qualquer serie da TV e, sem mais aquela, numa total bisbilhotice vou espreitar o que não devia e agora estou metido num pequeno, para não dizer grande, sarilho.


Como a hora provável do crime, segundo os médicos, será entre as nove, da noite, do dia anterior e a uma da manhã da madrugada de hoje, sou um dos suspeitos.


Felizmente, se precisar, tenho um alibi muito forte, mas que não quero usar, pois há muitas coisas em jogo. Até um casamento pode ficar em perigo e isso não quero.


Não há dúvida, tenho que assentar, arranjar uma namorada e seguir um caminho. Esta vida do salta aqui, salta acolá, não é vida para ninguém, muito menos para mim.

****

Tem sido uma semana para esquecer, fui interrogado, tiraram-me saliva, para o ADN, rasparam-me as unhas para tentarem descobrir, indícios que me pudessem incriminar.


Não há mais suspeitos, apertam comigo, têm um crime para resolver.


Há uma vítima, que foi violada e barbaramente espancada, há um crime para resolver, é necessário um bode expiatório e têm um. Eu. Tem que aproveitar.


No meio de todo o mal apenas, o menos mau, o juiz deixou-me a aguardar julgamento em liberdade, se não fosse isso agora, se calhar, estava na choça.


O inspector, embora não me deva fiar nas aparências, parece confiar na minha inocência, não há provas, nenhum indicio e, importante, acredita que estive acompanhado nas horas suspeitas.

Fui chamado novamente a polícia, havia coisas a esclarecer, disseram eles.

Fui massacrado com perguntas, algumas rasteiras para possíveis contradições, mas correu bem, mantive a verdade.



******

De repente:

-Oh meu Deus! Fez-se luz no meu cérebro.
Já sei quem é o criminoso, não sei é como o provar.

Vou telefonar ao inspector e dizer-lhe o que descobri e, que só com a ajuda deles, posso obter provas e confissão.

Para surpresa, das surpresas, o inspector aceitou.

*****


Era meio-dia quando entrei no café, propositadamente, hora em que normalmente está vazio.
O Senhor Amorim, pareceu surpreendido, mas disfarçou bem:

-Boa tarde, bons olhos o vejam!  Então já se viu livre da bófia? Mas a culpa é sua, não tinha nada que ir bisbilhotar, ou será que é mesmo culpado?

Começava a perder a paciência e não me contive:

-Sabe muito bem que não, ou já se esqueceu que foi o senhor?

Sim foi o senhor o assassino! Os dois sabemos que foi obra sua.

-Está a inventar, quem vai acreditar nas suas patranhas?

-Todos, respondi.
Quando encontrei o corpo, corri para aqui, e pedi para ligar para a polícia, porque estava um cadáver na garagem. Sabe o disse, ou já esqueceu?

Vou lembrar, as suas palavras foram, vou ligar já para o 112, pobre rapariga, tão jeitosa.

-Foi ou não foi?

Eu não disse quem era mas o senhor já sabia. Sabia porque por que foi obra sua!


-E mesmo que fosse quem ia creditar em si, respondeu com maus modos? Ela não merecia outra coisa, vinha aqui beber café e comprar tabaco e provocava. Sentava-se naquela cadeira, apontou, e cruzava as pernas até mostrar as cuecas. Pura provocação!
O velho já não chegava para ela e vinha provocar cá a Amorim. No sábado esteve ali, despiu a gabardina, amarela, e fez a mesma cena e ria a olhar para a minha cara babada.
Depois saiu, disse que ia ao cinema e que voltava às sete horas. Era um convite, eu a essa hora fechei o café, vesti a minha capa e fiquei junto, ao portão, à espera.
Quando voltou desci atrás do carro, ia maluco por ela. Riu na minha cara e perguntou se já me tinha visto ao espelho. Não aguentei, fui-me a ela e dei-lhe o que andava a pedir, gritou que nem uma cabra, nas estava a gostar, eu senti que estava.
Depois disse que ia gritar e chamar a polícia, perdi a cabeça, tinha-lhe dado, o que ela queria e agora ia chamar a polícia. Cabra! Dei-lhe com o cabo do, chapéu-de-chuva, naquela cabeça até que deixou de espernear.

-Mas não pense que vai contar isto, porque não vai sair daqui para abrir a boca.


Começou a sair, detrás do balcão, com um bastão na mão mas ficou a meio do caminho.

Os polícias entraram de rompante, armas nas mãos e aos gritos:

-Nem mais um passo, joelhos no chão!



*****

Foi algemado e levado, quase de rojo, para a carrinha que o aguardava.

O Inspector deu-me um abraço, não esperava, e desabafou:

-Resultou, o microfone funcionou na perfeição e entramos na altura certa. Bom trabalho! Sabe uma coisa, disse:

Nunca desconfiei de si, não tem perfil para isso e sei quem esteve consigo. Sou polícia! Consigo descobrir essas coisas.



Ajeitou o chapéu, entrou no carro e foi à vida.

















14 comentários:

Blog da Gigi disse...

Abençoado dia, Manuel!!!!!!!!! Abraços

São disse...

Os chineses são tão presentes no quotidiano que até o Manuel lhes dá a honra de aparecerem nos seus interessantes escritos...


Abraço

redonda disse...

Gostei muito, muito da história, prendeu-me o interesse.
Que tal participar neste Concurso: http://www.axn.pt/contests/livrocastle#entry
(além da publicação do nosso texto, pode-se ganhar 300 € em livros)
Eu pensei fazê-lo mas até à data não me ocorreu nenhuma história.

CÉU disse...

Um conto policial e "passional". Enfim, qdo a cabecita, a de cima, o cérebro não consegue funcionar, algo, alguma coisa tem de fazer o trabalho por ele.
Quer dizer: o Amorim respondeu às provocações da louraça ou ruivaça com uma tareia que a conduziu à morte. Então, não seria mais "normal", mais aceitável, continuar naquele jogo que até levanta um morto? A sociedade é patriarcal, portanto, a leviana é sempre a mulher. E Adão trincou a maçã, mas os vindouros ainda não entenderam a História e continuam a ir atrás do "paraíso", k, em geral, tem sempre elevados custos.

Agradeço a sua visita tal como "comentário", k não conseguiu desenvolver como lhe apetecia, mas eu entendo. Somos ruminantes, isto é, comemos de tudo, mas há coisas que merecem ser apreciadas lenta e intrinsecamente.

Boa sexta-feira e excelente fim de semana!

Palavras soltas disse...

Adorei, Manoel. Lembrou -me o filme "Janela indiscreta", um dos meus filmes preferidos.

Beijinhos, querido.

Flor de Lótus disse...

Oi, Manoel!Obrigada pelo carinho de sempre lá no blog. Passei por agradecer os comentários, foram eles que me motivaram a voltar a escrever.Um beijo

Maria Luisa Adães disse...

Não esperava que o Sr. Amorim fosse tão brejeiro!

E o amigo Manuel, se fosse verdade, tinha sido preso. Cuidado, os tempos são maus e todos os dias se mata gente e todos os dias se fala de gente, que mata gente!

Mas gostei de o encontrar por aqui e por ali.
E no google+ , o meu amigo pode ser o melhor do mundo, mas ninguém diz nada! Estranho o google+. Qual será o mistério do google+?...Já pensou?...

Beijo e obrigada por ter regressado.

Maria Luísa

Unknown disse...

Mais uma das tuas histórias. Uma leitura apressada para descobrir o assassino.
Boa noite, bom fim de semana e tudo a correr-te bem.

SOL da Esteva disse...

Um Conto daqueles, Manuel!Vale a pena surpreender porque a vida tem sempre dois lados: o bom e o menos bom.
O Amorim "espalhou-se" por completo. Afinal só provou ser culpado porque não soube medir as suas palavras.
O Amor não se compadece com apetites puramente sexuais, mesmo diante de provocações insinuadas.
Um homem é um Homem.

Abraços
SOL

Manuel disse...



Cumprimentos

Manuel Penteado


: Marbella Lizette Martinez Fernandez

Saludos
Buscando en Internet vi que eres persona con interés y aprecio por la lectura. Una búsqueda que hice en mi buscador para encontrar páginas de lectores y escritores me trajo tu correo. Si me equivoque solo borra este correo y no te preocupes, no es un rob-spm repetitivo, no habrá mas correos.
Que sigas con un bonito día.

PD: Si quieres saber más de mi; teclea mi nombre en tu buscador.



Gina disse...

E o culpado lá se descaiu. Muito bom, este conto, que não é quase policial, é mesmo policial.

A Casa Madeira disse...

As vezes a curiosidade; faz com que desvendemos alguns
casos... até os mais corriqueiros da vida;
Mas por aqui o caso é sério... quase que acontece outro assasinato.
Coitada da mulher...
Por aqui o assunto da semana a pergunta era: Que se uma mulher quando
coloca roupas provocantes ela quer e deve ser assediada.
Os homens ficaram bem divididos nas suas opiniões. Lendo os detalhes da
ruiva me lembrei.
Li esses suspense policial e já fiz o filme todo na minha cabeça kkk.
Boa continuação de semana.
janicce.

Lúcia Bezerra de Paiva disse...

Oi, Manuel!
Ás vezes é melhor ficar "na sua", pra não se meter numa fria dessas.No entanto, devo dizer que a sua imaginação é de uma fertilidade incrível: um senhor caso policial!
Beijo!

P.S. A minha ausência, por essas bandas, se deve ao nascimento da minha primeira neta: o tempo que me sobra, é quase nenhum!

ania disse...

Gosto muito de suspense policial e teu conto, Manuel ficou PERFEITO, meus sinceros parabéns!!! abraços, ania..