terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Amira








                           


Hoje não lhe apetece chorar, não vai chorar, já o fez tanta vez que resolveu desistir e ser forte, muito forte.


A vida, e não só, já lhe deu tanta porrada que, agora, não vai aceitar mais, vai reagir, vai ser vigorosa, se necessário exceder-se para compensar a passividade de tantos anos.


Nem sempre foi assim, houve um princípio shakespeariano, um pouco Romeu e Julieta, feito de escapadelas, namoro escondido, promessas de amor eterno.
Os pais, não queriam, mas o amor deles era maior que a vontade dos pais.

Foi num sábado radioso que casaram,  na capelinha de Nossa Senhora da Aparecida, dizem as mulheres, que foi a noiva mais linda que, algum dia, ali casou.

Os mais crentes juram, que até a santinha fez um sorriso para os abençoar, outros dizem que não, não foi um sorriso, foi apenas um raio de sol que iluminou o rosto da imagem.

Fizeram uma lua-de-mel de sonho, sete dias num Resort, na Republica Dominicana, foi a prenda dos padrinhos.

Recebidos como príncipes, com champanhe e frutas no quarto, coisa que nem sabia que podia acontecer. Margarida vivia um sonho, praias lindas, mordomias a que não estava habituada, o homem por quem se apaixonou a seu lado.

 Estava tão feliz que não se conteve:

-João nunca pensei que houvesse coisas assim, ainda não fomos embora e já sinto saudades.

João sorriu, ficou sem saber bem o que dizer:

-É o nosso momento, vamos aproveitá-lo, depois temos a nossa casa e o nosso amor.


****

Faz amanhã um ano que casaram, ainda não têm filhos, João não quer, embora ela deseje tanto.

Devia comprar uma prenda, mas não têm dinheiro, o João não a deixa trabalhar, diz que as mulheres são para estar em casa.
Ele trabalhava, com o pai, na fábrica de rações, dizem que é um bom negócio.

Um dia, depois de uma maior intimidade, ela tentou:

-Mor, eu podia trabalhar contigo na fábrica do pai. Era bom, estávamos mais tempo juntos e eu, sempre ganhava alguma dinheiro para não ter que te andar a pedir, para as minhas coisas mais pessoais.

João, pareceu, não gostar e com alguma agressividade perguntou:

-O que foi que não compreendeu quando te disse que as mulheres tomam conta da casa? Deixa-te estar, tens a internet para ajudar a passar o tempo, e olha que é uma coisa que nem todas têm, aproveita antes que eu me arrependa! Mas olha que eu estou atento e sei o que andas a ver.

Saiu batendo com a porta.

****



Margarida ai chorou, foi a última vez, foi então que jurou que ia mudar a vida. Não era esta que lhe tinham prometido, no namoro, nem a que tinha ambicionado. Queria ser normal, feliz e acreditar.

Tinha uma amiga, no Facebook, que ela ao princípio achava estranha, mas se calhar não era e até, quem sabe, tinha razão.


Dizia que  tínhamos que acabar com este tipo de sociedade, cheia de traidores, que não sabiam seguir o que estava escrito no livro sagrado.


Ia falar com ela, deixar uma mensagem, precisava de apoio.


Tinha um nome esquisito, se calhar inventado, nunca tinha visto alguém chamar-se Silly, mas era boa amiga, queria conhece-la, mas por causa do João era difícil, se ele soubesse ia ser bonito. Nunca usou violência, mas já teve medo.

Nessa tarde desabafou, um pouco, com a nova amiga, disse-lhe que já se arrependeu de ter casado, não lhe faltava nada mas, afinal não tinha nada.

-Sabes, disse a Silly, eu passei pelo mesmo, mas descobri a luz e a verdadeira felicidade, tu também podes descobrir.

-Mas como? Eu sou uma prisioneira, na própria casa, uma espécie de empregada domestica, faço os trabalhos do lar, cozinho e, quando ele quer, abro as pernas, mas já não sinto nada.

-Temos que arranjar maneira de falarmos pessoalmente, é muito importante, não podes estar assim, subjugada por um ímpio, como se fosses uma escrava.



****



Foi difícil mas conseguiram, quase na clandestinidade, um encontro.

Foi numa quinta-feira, dia da reunião na fábrica, não havia perigo do marido vir a casa. Foi mesmo ai que se encontraram.

Margarida olhou a Silly era uma bela mulher, alta de pele morena, vestida com uma espécie de túnica preta, com pérolas e missangas.


Perante o olhar de admiração, de Margarida, a visita explicou:

-Visto uma abaya, o trajo verdadeiro, o único que nos torna diferentes de todas as impias.

Ia estender o rosto para um beijo, mas Silly, deu-lhe a mão.
Sorriu, tinha um sorriso cativante, mas um pouco frio. Depois, como se não soubesse, perguntou:

-Então és a Margarida?  Que vives como acorrentada a usos e costumes que, apenas, levam à perdição. Tens que te libertar, devias aderir ao nosso grupo, somos muitas, estamos no caminho certo. Vamos, em breve, para a nossa verdadeira terra para servir a nossa causa, no território de mel e de salvação.


Escolhemos o nosso destino, somos donas dos nossos desejos, vamos cumprir uma missão que nos levará à glória.

-Mas sou casada, replicou Margarida!

-Casada, chamas casamento ao teu viver?
Vem connosco, lá sim, terás um casamento, com um homem, que fará uma igual, uma guerreira, uma deusa, uma mulher verdadeira e especial ao serviço de uma causa.

-Não te vou forçar, vou deixar um telemóvel com um número que só tu e eu conhecemos.


Guarda-o para que esse homem, que te escraviza, não to poder tirar.
Eu vou telefonando, podes mudar de ideias e, no fim deste mês, seres uma das eleitas para viagem a caminho de Raqqa, a nossa única e verdadeira pátria, para o nosso califado, para a Daesh, para cumprir a Sharia a verdadeira lei.

Todos os dias, sempre, à mesmo hora telefonava com a mesma voz, maviosa, cheia de promessas, e o desafio para a libertação.



*****

Hoje o marido, o João, chegou a casa tarde e perdido de bêbedo, olhos vermelhos, espuma nos cantos dos lábios e voz pastosa:

-Hoje bebi, um pouco mais, não tens nada com isso, estive com uns amigos e umas gajas porreiras, que eles conhecem, mas estou aqui e não quero a merda do jantar que costumas fazer.

Margarida não gostou, mesmo nada, aquela coisa, das gajas, vinha a despropósito e, rebaixar o jantar, era demasiado. Tinha preparado mais do que ele merecia, o prato preferido, lasanha de camarão E a paga era esta!
Só lhe apetecia pegar na travessa e espetar-lha, no focinho para aprender a respeita-la, mas aguentou, apenas deixou sair.

-Se não queres comer, porque vens farto dessa trampa onde estivestes, não comas, mas podes ser educado.

Não gostou, levantou-se cambaleante do sofá e agrediu-a, com violência, enquanto, possesso, gritava:

-Sua cabra, se eu digo que os teus jantares são uma merda é porque são, não tens respeito e ainda tens a ousadia de me responder.

Ia gritando e malhando, até que cansado voltou a sentar-se no sofá onde vomitou e adormeceu.

Foi a gota, já andava com dúvidas, agora já não tinha.
Pegou no telemóvel, foi para o quarto, e telefonou para Silly:

-Sou a Margarida, quero ir convosco, que preciso fazer, que devo arranjar?

-Nada, respondeu, só o passaporte!

Agora és a Amira, esquece esse nome, infiel, de Margarida.
Na quarta-feira está preparada, passamos por ai e seguimos viagem, no estado islâmico precisam de nós.


*******

Foi dada como desaparecida, as autoridades suspeitam que foi aliciada por radicais mas, até hoje, não houve confirmação.

Uma mulher, yazidi, que consegui fugir aos jihadistas, contou que conheceu uma portuguesa Amira.

Acha que tentou fugir, não conseguiu. Mas teve sorte, não a degolaram, foi vendida em leilão, como escrava sexual.


As autoridades portuguesas, suspeitam, que possa ser a Margarida.

Mas nada de certezas.



15 comentários:

Gina disse...

Gostei do conto, é uma realidade bem presente nos nossos dias, traição em várias frentes. O Manuel tem um jeito especial para contar estas histórias.

Beijinhos

redonda disse...

De mal para pior!
E eu com esperança que ela se salvasse.
Gostei do conto, mesmo querendo um final feliz.
um beijinho
Gábi

Blog da Gigi disse...

Lindo dia!!!!!!!!! Abraços

CÉU disse...

Olá, Manuel!

O seu conto versa um tema muito atual, mas Margarida, em minha opinião, não procedeu da melhor maneira. Se aquele João estava a comportar-se indevidamente, não lhe dando valor e com palavrão à mistura, ela só tinha de tomar duas atitudes: pedir o divórcio, ou então, e quando surgisse outro homem, em que confiasse e desse provas de ser bom marido, recomeçasse a sua vida sentimental, se pretendesse. Não há ninguém perfeito, mas acredito que os Faces e outras "geringonças" já tenham desencaminhado muita gente, que acredita em tudo o k lhes é dito.
No início, e em qualquer situação são só facilitismos e "amorezinhos". Depois, as pessoas, algumas, claro, mostram a sua verdadeira face.

Espero que Margarida consiga voltar ao seu lugar de origem e encontre a felicidade. Não há felicidade total, mas há parcial.
Narrativa terminada?

Beijo e resto de boa semana.

Rose Sousa disse...

Olá amigo Manuel! O chamo assim porque é um fiel companheiro, sempre me visitando, cuidando de mim. Como sua presença é mágica no meu cantinho! Me incentiva sempre prosseguir. Obrigada mesmo! E seu conto, confesso que voltarei para lê-lo, pois estou impossibilitada de fazê-lo no momento, mas prometo voltar para apreciá-lo. Um grande abraço e um carinho beijo na face. Até, querido amigo!

Vivian disse...

Olá, Querido amigo Manuel!

Puxa! Li com o coração sobressaltado!
Que conto impactante! E com assunto tão atual.
É triste pensar que muitas mulheres que para fugir de maus tratos acabem caindo em outros! E bem piores!
Bravo amigo! Gostei muito do conto!

Saudades imensas deste amigo além mar!
Beijos e meu carinho!
Espero que esteja tudo bem contigo e com sua esposa.

SOL da Esteva disse...

Tens o condão (precioso) de inserir situações repletas de verdade nos teus Contos.
Um modo de aliciar está patente; um modo de se deixar aliciar, também. A situação e o conceito de casamento é que deixam a desejar: só denota falta do verdadeiro Amor.
Sem ele, não há partilha, respeito ou honra.
Dói-me a alma, Manuel.

Abraço
SOL

Helena disse...

Manuel, meu querido amigo, dizer que gostei do teu conto fica meio repetitivo, pois gosto de tudo que escreves. Uma história atual no sentido de que as redes sociais propiciam este engodo, permitem que pessoas de boa vontade, crédulas, ingênuas a ponto de acreditar nas promessas de pessoas que conhecem apenas virtualmente, possam dar um rumo em suas vidas, apenas para fugir de uma situação degradante, mas sem a preocupação de checar os fatos ou de procurar solução de uma forma mais efetiva, como a separação ou a denúncia aos órgãos que sabem como coibir maridos violentos e grosseiros. Talvez por comodidade ou por ingenuidade estas pessoas não procuram avaliar a situação para buscar soluções mais dentro do seu padrão de vida. Enfim, acredito que haverá uma continuação, pois o tema que abordaste é abrangente e muito interessante.
Meu amigo, esta época de Natal propicia o surgimento de esperanças, de renovação de fé, e com toda a certeza no ano que vem tu estarás a montar também o presépio e acredito que, já no momento de colocar cada peça no seu lugar o Menino Jesus estará recolhendo do coração a tristeza maior e espalhando aquela paz que todo ser humano deseja e precisa para seguir seu caminho pela vida. Que na alegria e confraternização com os teus as bênçãos do Pai possam iluminar os passos de cada um, proporcionando a todos um ano de muitas alegrias e realizações.
Que os sorrisos de mimosos anjos possam te entregar as estrelas que estão enfeitando o carinho, a admiração e amizade que tenho por ti,
Helena

Henrique Antunes Ferreira disse...

Manelamigo

É Carnaval ninguém leva a mal... Mas, como agora é quase Natal há que levar a a mal...

Conto muito oportuno - a realidade é sempre oportuna, ainda que seja vista como um mal! No entanto vais recreando a tua maneira de pensar - digo eu... - porque de escrever sabes tu.

O surgimento do Daesh não foi por acaso. Já se podia prever que mais dia, menos dia, as coisas iam dar para o torto. Bastava ver o que terá acontecido com o Lourenço das Arábias. Os ocidentais continuam a olhar para os seu umbigos e depois apanham com a fúria criminosa dos jihadistas. Estes não merecem perdão, mas depois de casa roubada trancas à porta... E inocentes ou facilmente influenciáveis...

Abç do Leãozão

São disse...

Nem sei que diga...

Só sei que o Ocidente tem muita responsabilidade no que se passa, embora o terrorismo não tenha justificações seja de Estado ou não

Bom serão

Magia da Inês disse...

❀✿゚ه
Assunto sério tratado em forma de conto.
Já li reportagem sobre esses aliciamentos, principalmente de pessoas de famílias de classe média alta... tomara que não cheguem até os mais pobres.
Que Deus nos proteja!!!

Que o menino de Belém traga esperança e muitas alegrias para todos nós!!!

Bom domingo! Ótima semana!
Beijinhos.
✿˚ه° ·.

Lúcia Bezerra de Paiva disse...

Um conto plausível, bem estruturado, dentro de uma realidade amarga.
Ah! Manuel, junta seus contos contos e publica em livro: faria um bela e boa ação.
Um abraço, junto ao desejo de um Feliz Natal!

Unknown disse...

Escolhas ou sequências de uma vida sem esperança?
Porque haveria de seguir este caminho e não outro?

Gracita disse...

Quanta ingenuidade da Margarida
Ruim com o marido pior foi quando tentou se libertar
Como sempre um conto magnífico Manuel
Obrigada por sua doce companhia e que nos próximos 365 dias haja novos encontros que nos permitam intensificar os elos de carinho e terna amizade
Desejo que a caixa de presente que você receber venha cheiinha de
ternura, compreensão, bondade, esperança, fé, perdão, paz e muito amor
Um natal feliz e um ano novo pleno de êxitos
Um carinhoso abraço

dilita disse...

Olá Manuel!

Desta vez a máxima assenta perfeitamente quando diz que: um mal nunca vem só...
Seguiu pelo pior caminho a bonita Margarida.
Gostei do conto.
Abraço.
Dilita