terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

O pistoleiro








Passava todos os dias e, sensivelmente, à mesma hora.
Não falava a ninguém, seguia apenas o caminho como se fosse o único.
Era um pouco bizarro na forma como vestia, um velho e comprido sobretudo preto, botas de tacão e cano alto e, na cabeça, um barrete de lã escura, enfiado até às orelhas.

Os rapazes pareciam ter medo afastavam-se, sempre, com um comentário:

-Malta....vem ai o pistoleiro!

De facto parecia um pistoleiro, como aqueles que é costume ver nos filmes, misterioso, vestindo roupas pretas. Só o barrete destoava no conjunto.

As mulheres, pelo contrário, paravam e pareciam mostrar alguma admiração, talvez pelo porte altivo, ou pelo olhar enigmático,  e sedutor como as olhava.
Algumas,  mais atrevidas, tinham pensamentos que se tivessem voz, fariam corar os mais safados.

Era assim, sempre, mesmo aos fins-de-semana, austero, passos vigorosos, com os tacões das botas faiscando no empedrado do passeio.

Só abria o sorriso,  num flash de sedução, quando se cruzava com alguma cara mais bonita.

As velhotas, na sabedoria das memórias, diziam que era uma incarnação do mal, alguém que andava no mundo para causar a perdição das mulheres, sim naquelas mulheres  que não se sabiam alhear dos pecados do mal.

****

Tia Benedita, mulher perita em rezas e benzeduras, atrevia-se mesmo a dizer:

-Cruzes, credo, mulheres vossemecês não viram ainda que é o próprio demo, é ele em forma de homem que anda por ai para ver se alguma se deixa perder, para deixar a semente para o que há-de vir para a perdição de todos.
Está nas escrituras, que num ano negro, surgirá das trevas, o anjo da perdição, que deixará a semente para aquele que irá nascer para mergulhar, na escuridão e nas trevas, toda a humanidade. Vai ser o fim do mundo!

Depois, de mãos nos quadris, olhou as companheiras atónitas e paralisadas pelo medo e continuou:

-Este aviso é para todas, pois eu tenho visto, com estes que a terra há-de comer, que muitas de vocês, estão desejosas de se por a jeito para se enrolarem e serem a terra para a semente do mal.

-Aí pare! Gritou Alzira, porque segundo dizem, se há alguém habituada a enrolar-se com o primeiro que vê, esse alguém é a tia Benedita, é ou era, porque agora carcaça como está ninguém lhe pega.
Está desejosa e põe o rabinho de fora, como se fosse uma santa e as outras umas vendidas.

Tia Alzira estava possessa, até parecia que os cabelos se tinham eriçado, a placa quase lhe saltava da boca, os olhos faiscavam de ódio.

Voltou as costas, ajeitando o xaile, enquanto numa espécie de reza deixou uma ameaça:

-Esperem pela resposta, são todas o mesmo,  mas vou fazer-lhe uma reza que nem os cães lhe vão olhar para o focinho.

*****

Estava a chuviscar, o piso estava escorregadio, as botas do nosso personagem tinham que ser controladas, o que ia fazendo com alguma habilidade.
Era cuidadoso, assentava primeiro a parte da frente do pé e, só depois, deixava o calcanhar firmar no piso.
Hoje não tinha o habitual gorro, usava um chapéu preto, de lona, com enormes abas levemente dobradas para baixo.

Poucos deram por ele, apenas os que se encontravam na taberna do Amílcar, de frente para a montra.

Podia vir de longe, a cidade era grande, só que este bairro era pequeno e tudo o que fosse fora da rotina se tornava novidade.
Os homens, um pouco mais distraídos, apenas notaram o "pistoleiro" pelas conversas das mulheres e da rapaziada.

Foi o Marteladas, ele não se chamava Marteladas, era uma alcunha que herdou do pai, que já a tinha recebido do avô, que levantou a voz:

-Mas afinal que há com o homem? Não faz mal a ninguém, passa para ir à sua vida, calado e sem ar de desafio, nem sequer se dá por ele. Agora, algumas que parecem não ter alimento, em casa, cismaram que o gajo é bom e vai dai fazem um alarido como se tivessem visto uma alma penada.
Deixem o homem em paz!

O Isidro não estava de acordo, nunca estava, era o rei das zaragatas e apesar das sovas que levava estava, sempre, em contradição só pelo prazer de contrariar.

Mais uma vez teve que meter a colherada:

-Mas o tipo não tem nada que passar por esta rua, tem tantas porque vem logo por aqui? Cá para mim anda a fisgar alguma! Mas eu vou saber e ponho o gajo nos eixos. Ai…ponho…ponho!

-Tem cuidado, disse Marteladas, pode ser que em vez de o pores  nos eixos ele te parta os queixos, até rima, mas a isso já estás habituado.

Risada geral. Isidro não desistiu:

-Podem rir à vontade, sejam cobardolas, eu não fico assim e tenho razões, pois até a minha Zefa, sempre tão acanhada, já suspira quando as amigas falam do tipo. Isto é motivo para cá o Isidro, por o gajo em sentido.

-Bom, tem juízo! Exclamaram alguns dos presentes.

*****

Foram quatro dias em que a chuva não despegou, parecia que tinham aberto as comportas do céu.
Houve algumas desgraças, casas alagadas e, até, uma idosa foi arrastada por uma enxurrada, felizmente alguém lhe deitou a mão.
A taberna do Amílcar, com dois sacos de areia em frente à porta, não vá o diabo tece-las, esteve quase às moscas, como sói dizer-se. Só alguns passantes, pois dos habituais, nem viva alma.

Sábado, o Sol deu um ar da sua graça e a chuva recolheu as torneiras.

Os profissionais do copo começaram, cedo, a acudir à tasca, havia muito de que falar depois de quatro dias.
Era preciso por em dia a conversa e regar a goela, pois em casa tinham que ser comedidos, o raio das mulheres até as garrafas controlam, pensam que quando um homem bebe, mais do que deve, as obrigações ficam adormecidas, Se calhar até é verdade.

A algazarra era grande, numa mesa, quatro jogavam à sueca e foi preciso o Amílcar chamar a atenção, pois o palavreado, mesmo para uma mesa de sueca, já estava para além do permitido.

Os homens do dominó, mais comedidos, iam largando as pintas e fazendo contas com as que saíram e as que continuavam nas mãos dos outros.

De repente, como por encanto, o silêncio tomou conta do espaço. Os palavrões foram abafados pela surpresa da aparição e todos os olhares ficaram presos no Isidro, que meio acanhado se aproximou do balcão e pediu:

-Senhor Amílcar encha ai um copo. Alguém há-de pagar!

Marteladas não se conteve e perguntou:

-Então, Isidro, fostes contra alguma mão, ou foi a patroa que se zangou contigo?
A tua cara está uma lástima!

-Pós está, gritou Isidro, por tua causa. Se não tens vindo com a conversa, do tal pistoleiro, nem sequer me lembrava, mas viestes atiçar a minha honra e eu tive que fazer qualquer coisa, para defender a virilidade dos homens do bairro.

-Então, insistiu Marteladas, e defendestes com o focinho? Pela amostra não me parece grande defesa!

-Não gozes, teimou Isidro, devias agradecer o sacrifico que fiz pela dignidade de todos.
Na quarta-feira chovia, para caramba, mas eu tinha a ideia encornada e esperei o tipo ao fim da rua. Quando apareceu, com aquele ar gingão, cheguei-me ao pé do exemplar e disse-lhe:

-Ouve lá ó palhaço! Está na hora de deixares estes caminhos e ir por outro lado, porque por aqui não és bem vindo.

-Juro que não lhe disse mais nada!

Mas o sacana é bruto, deitou-me as mãos, torceu-me o braço para trás das costas. Caí de focinho no chão. Meteu-me umas algemas e levou-me para a esquadra.
Passei lá a noite, nem me deixaram telefonar à mulher.

No outro dia fui a um juiz que me condenou a pagar 125 euros de multa e a 15 dias de pena suspensa, por desrespeito a um agente da autoridade.
Afinal o pistoleiro não é pistoleiro é um bófia, o gajo é espécie de policia à paisana.

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A taberna parou por uns segundos, depois irromperam numa enorme gargalhada.

-Podem rir à vontade, aproveitem enquanto estou em condicional, porque depois não respondo por mim!








quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Um gelado de duas bolas









-Mãe, há muitos pais Natal? Perguntou Clarinha.

A mãe ficou um pouco preocupada, não sabia bem como responder. A menina tinha apenas seis anos e ainda vivia o sonho, lindo, de acreditar no Pai Natal, no trenó e nas renas. Não queria que a filha perdesse, tão nova, toda essa magia.

-Que pergunta, Clarinha, então não sabes que Pai Natal só há um!

-Mas insistiu, a criança, eu já vi tantos e eram, todos, diferentes. Vi um gordo à porta da loja dos brinquedos, depois vi um magrinho na esquina da rua, das casas bonitas, estava a fumar e o Pai Natal não devia fumar. Pois não, mãe?

Maria do Carmo pensou quanta falta lhe fazia o marido, ele saberia explicar bem todos estes porquês, mas algo o chamou e ficou ela e a filha.

Foi difícil, não estava preparada para ser pai e mãe ao mesmo tempo e muito menos para  ter tantas carências que a estavam a atirar para situações que, na verdade, não queria, mas tinha que alimentar a magia do Natal no sonho da filha:

-Sabes, Clarinha, que só há um Pai Natal, é o que vem deixar as prendas ao meninos e meninas que se portam bem, os outros que estão por aí, são a fingir para enfeitar as lojas.

-Mãe, voltou a criança, e eu portei-me bem, não portei?

-Muito bem meu amor, és uma menina muito especial. Respondeu a mãe.


*****


Foi num domingo, de Maio, estava um Sol que convidava a um momento de laser no bar à beira mar.

Maria do Carmo pediu um gelado, não conseguia resistir a duas bolas, regadas com um licor de chocolate, e foi sentar-se numa mesa ao fundo da esplanada.
Com muito cuidado, parecia uma criança, ia tirando porções muito pequenas, para o fazer durar mais. Era um quadro lindo, a colher deslizava suavemente, tentando segurar uma fina tira de sorvete, com algum licor, que depois com os olhos semicerrados, deixava derreter de forma, quase sensual, na língua.


Na sua frente, Albano, estava fascinado com o gesto, com o encanto sedutor da imagem. Era digno de ser visto, uma mulher linda num êxtase total, absorvida no delicioso sabor de um sorvete que ia deixando, muito lentamente, derreter na boca, de forma, quase, sensual.

Não resistiu, era demasiado, Foi comprar um gelado, aproximou-se e delicadamente sussurrou:

-Há imagens que ficam comigo para sempre, tem magia.
É difícil descrever este momento, queria ficar com ele eternamente!
Posso sentar-me e fazer-lhe companhia neste momento tão especial?

Maria do Carmo corou, não pensava estar a ser alvo de atenção. O moço era giro e parecia simpático. Porque não?

-Esteja à sua vontade, respondeu, a mesa não é minha e esqueci que não estava só, deixei-me levar pelo prazer que um bom gelado, sempre, me provoca.

Albano sorriu, tinha um sorriso saudável, dentes perfeitos nuns lábios desenhados por um artista, os olhos de uma cor indefinida, pareciam cinzentos, e altamente sedutores.

Tentou continuar o diálogo:

-Sabe menina, desculpe, não sei o seu nome!

Ela quis hesitar mas respondeu:

-Maria do Carmo, mas não importa o meu nome, tenho que ir embora!

-Lindo nome! Elogiou Albano. Mas só podia ser assim, para condizer com a dona! Não vá já embora, vamos prolongar este momento, de prazer, até acabarmos os nossos gelados!

Não pode evitar um sorriso antes de responder:

-Também não sei o seu nome e não me importa! Mas não se arme em sedutor barato!

Ele corou e quase gaguejou ao responder:

-Desculpe, tem toda a razão, fui importuno e sem princípios! Sou o Albano e juro que não sou nada do que diz, foi uma atracção natural e sinto que também não lhe fui indiferente.

-Oh! Exclamou ela, também é convencido e pretensioso!

-Não diga isso! Suplicou Albano.

Depois foi um amenizar da conversa, os sorrisos que dizem mais que mil palavras, os gestos simples e a cumplicidade que alicerça os sentimentos.


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E foi assim, desta forma simples, que começou uma história de amor.
Momentos de ternura, caminhar de mãos dadas, promessas feitas no calor da paixão, juras eternas e compromisso de um seguir juntos, até que Deus os separe.


Foi um namoro de seis meses, casaram em Dezembro, não estava previsto, mas naquela manhã, Maria do Carmo deu a novidade:

-Amor estou grávida!

Albano ficou tão feliz que apenas lhe saiu:

-Vamos tratar já do nosso casamento! Vamos construir o nosso lar, para receber o nosso filho quando nascer.


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Foi em Julho que Clarinha abriu os olhos ao mundo.
Disseram, logo, que tinha os olhos do pai e a boca da mãe.

O casal continuou, no mesmo encanto, o amor foi dividido por três, ninguém notou a diferença, eram felizes.

Estavam, novamente, em Maio. Iam fazer seis anos que se conheceram naquela esplanada à beira mar.
A Primavera,  prometia as tardes quentes, havia no ar um certo lirismo. É natural na estação das flores, o romantismo, convida ao amor.

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Albano estava com um ar nostálgico, Maria do Carmo, apercebeu-se. Não era normal, estava sempre tão alegre.
Tentou, com carinho:

-Que se passa amor? Compartilha, comigo, os teus pensamentos!

Albano pareceu acordar, daquela espécie de letargia, e lembrou à sua amada:

-Sabes que faz amanhã seis anos que nos conhecemos? Recordo com muita saudade aquele momento mágico.

-Não esqueci! Confessou Maria do Carmo.

-Sabes o que vou fazer, disse Albano, vou à gelataria, comprar dois gelados, de duas bolas regadas com chocolate. Temos que comemorar aquele encanto.

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Saiu porta fora, vai fazer amanhã seis meses.
Não mais apareceu, nem em casa, nem no emprego.
A polícia já tentou tudo. Mas mesmo tudo.

E nada!

Nunca mais voltou, não mais deu sinal.

Desapareceu como se tivesse evaporado no espaço.

Mas, Maria do Carmo, continua à espera, o coração diz-lhe que ele, um dia, de repente, vai aparecer com dois gelados, de duas bolas, com creme de chocolate.





sábado, 7 de fevereiro de 2015

O Senhor Silva











Hoje não lhe apetecia ir trabalhar, não lhe acontecia muitas vezes, mas hoje estava com uma preguiça que o ultrapassava.
Deu uma volta na cama, puxou a roupa e voltou a adormecer.

Acordou sarapantado, olhou para o relógio e deu um salto, estava atrasado. Bem não era só atraso era já, quase, uma desgraça.

O que ia dizer ao senhor Silva, o chefe, que era implacável na pontualidade.

Tinha que arranjar uma fatalidade, mas muito convincente, nada de tretas, pois o homem era difícil de enganar.

Muitos dizem que o senhor Silva até não é má pessoa, dizem, mas ele não concorda.

É um militarista com ideias muito rígidas, não sorri e olha as pessoas, sempre, de sobrolho franzido, Dizem que foi coronel e que chegou a andar na guerra.

Dizem, e se calhar até é verdade, mas ninguém pode confirmar.

Mas atrasos e desculpas, de meias-verdades, isso não! 
Horários são para cumprir! É o seu lema.

Estava mais do que atrasado, a cabeça trabalhava rebuscando uma desculpa, mas nada saía de jeito.

Já se Imaginava, submisso a desculpar-se:

-Senhor Silva desculpe este atraso! O senhor sabe que sou dos mais pontuais mas hoje, mesmo que quisesse, não conseguia. Ainda tentei, juro que tentei, mas se não me apresso nem à casa de banho chegava, era mesmo ali. Foi toda a noite por cima e por baixo, uma desgraça. Uma autêntica tragédia!
Foram os malditos ovos, só podiam ser os ovos, não comi mais nada que me pudesse fazer mal.

Ao mesmo tempo via o senhor Silva, sobrancelhas franzidas, bigode repuxado num ar de dúvida e aquele sorriso tão sardónico que irritava.
Imaginava o velho, sim ele era velho, escondia a idade, ninguém sabia quantos anos tinha. Mau como as cobras, sem coração.
Parecia que o estava a ouvir:

-Oh senhor Narciso quer que eu acredite nessa de gastroenterite? Era só o que faltava! São coisas que só lhe acontecem às segundas-feiras. Convém não é senhor embusteiro?
E sabe que mais, pode ir para casa tratar da caganeira porque este dia vai-lhe ser descontado!

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 O velho era tramado, fino e esperto, difícil de enganar. Estava a ver que essa do desarranjo intestinal não ia servir. Tinha que pensar noutra coisa. Talvez um funeral, Mas de quem?


Nada de desculpas, só a verdade, ia enfrentar a fera.
Ia dizer que o despertador não tocou, faltou a luz durante a noite e o relógio ficou a piscar e não o acordou.
Não era verdade, mas podia suceder e ele tem que acreditar e aceitar. São coisas que acontecem e não é um desconfiado, insensível e sem coração de um chefe, que até era família do patrão, que vai por em dúvida a verdade do Narciso.
Já sabia que lhe iam descontar o dia mas que se lixe. Ganhava pouco e um dia descontado fazia alguma diferença. Mas que fazer? Ter emprego já era uma sorte!

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Ia no autocarro fazendo o filme na cabeça. Imaginava o senhor Silva, na secretaria, olhando por cima dos meios-óculos, enquanto com os dedos enrolava as pontas do farto bigode. Farto, russo do fumo do tabaco, pontas enroladas.
E ele, Narciso, perfilado na frente, com ar castrense, ele que nem sequer foi tropa, a ouvir uma reprimenda como se fosse um miúdo.

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É verdade que estava nervoso, garante que estava, mas tinha vontade de, chegar, poder manda-lo para um certo sítio, voltar-lhe as costas e ir embora para voltar para a doce preguiça da cama.


Saiu do autocarro, era quase meio-dia, ia chegar ao escritório, quase na hora de saída para o almoço mas era de propósito, assim o senhor Silva mais apressado não lhe ia xingar tanto o juízo.

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Quando saiu do elevador deu de caras com a Lucinda, logo a Lucindinha, o borracho, que tanto mexia com ele. Tinha um fraco por aquela rapariga mas, ainda não teve coragem para uma aproximação, receava levar uma nega. Assim mantinha a esperança e até, quem sabe, ela pode um dia mostrar algum interesse, e ai, já se pode afoitar.
Fez o mais rasgado sorriso andes de perguntar:

-Como está a fera?

-Quem? Perguntou Lucinda.

-Quem havia se ser! O Silva, esse gajo que gosta de se aproveitar das desgraças alheias. Passei uma noite, que só eu sei, agora tenho que o ouvir e quem sabe ficar sem um dia de ordenado!|

-Ah! Exclamou Lucinda, então ainda não sabes!

-Bom, respondeu, cá o rapaz sabe tudo, tudinho, nada lhe escapa. Mas o que há de novo? Ainda não li o jornal de hoje. Acabei de chegar, agorinha mesmo.

-Então prepara-te para a más notícias, mas mesmo muito más!

Narciso começou a ficar nervoso.
Mas, muito más noticias, só podia ser um despedimento, o velho já lhe deve ter feito a cama e todos já sabem. Até estava com medo de o enfrentar, se era despedido nada tinha a perder, ia-lhe ao focinho e abalava porta fora.

-Mas, continuou Lucinda, não sabes o que se passou?

-Como posso saber se acabei de chegar! Respondeu.

-Calculei! Disse a Lucinda, hoje o Senhor Silva chegou muito cedo, como de costume, e foi para o gabinete.
A dona Amélia estava a acabar a limpeza, nem o viu chegar, só ouviu o barulho da queda. Foi a correr e deu com o pobre estendido no chão a espernear. Chamou o segurança. Telefonaram para o INEM que o levou para o hospital, mas dizem que não escapa. Pobre senhor Silva!

Narciso nem se apercebeu, mas saiu-lhe:

-Más notícias?

-Boas, queres tu dizer!

-Sabes? Começo a acreditar em Deus!