quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

A travessa do Salgado

 

Foi há muitos anos, tantos que não os sei contar, apenas sei porque o contava o meu trisavô, depois o meu bisavô repetiu e, muito mais tarde, ouvi da boca do meu avô. Depois deste deambular pela tempos é natural que os factos e, acontecimentos tenham alterado, umas vezes por omissões ou  esquecimento, ou enriquecidos por uma imaginação mais fértil.. 

Nessa altura, dizem, quando um avião passava vinham todos à porta embasbacados, olhar o céu na esperança que alguém, lá de cima, deitasse uns confetes para colorir o espaço. Nunca aconteceu, que se saiba, mas as pessoas sempre ficavam à espera.

Eram tempos difíceis, as raparigas namoravam à janela com a guarda da mãe, ou de uma avó, que adormecia para alegria dos namorados. Muitas vezes, apesar desta guarda apertado, algumas das moças apareciam grávidas mas, tal como nossa senhora, era por graça divina.

 Casavam à pressa, antes que o gaiato ou gaiata se lembrasse de fazer, o baptizado em conjunto.

O mundo girava à mesmo velocidade, mas ninguém se apercebia, o tempo era calmo, sem atropelos, sem nada de importante, que pudesse quebrar a doce quietude da pequena aldeia, perdida num recanto da planície alentejana.

Havia fome e o trabalho não abundava mas, sorriam e saudavam-se, sempre, que se cruzavam nas ruas. Era seguro, fosse a que hora fosse, ir até à venda ou onde fosse, ninguém falava em roubos ou assaltos, também não os havia, era tão seguro que quando saiam, mesmo à noite, as portas ficavam no trinco e as janelas, apenas encostadas.

Foi sempre assim até que o Januário, um dia, deixou em polvorosa a pacatez da aldeia. Deviam ouvi-lo em pleno largo da Igreja, parecia um político, daqueles que apareceram mais tarde, gesticulando e com um certo terror nos olhos:

-Acreditem porque é verdade, na Travessa do Salgado, mesmo ao lado da horta do Afonso, há uma assombração, coisa medonha, nunca vi ou ouvi coisa assim.

O Zé Alegria não conseguiu ficar calado e perguntou:

-Mas ouve lá Januário, estavas bêbedo, como de costume, ou ninguém te tinha pago um copo?

-Bom...bom, a conversa já esteve melhor! Não digo mais nada e, quando um se borrar de medo, como eu, logo ficam a saber.

O facto é que logo que a luz do dia ia desaparecendo, a travessa e seus arredores ficavam desertas, mesmo quem morava perto, ia dar uma volta para evitar passar por lá.
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A travessa só tinha uma casa e desabitada, pertença do padre, herança dos pais que faleceram, já, há alguns anos. O padre nunca  a usou, estava ali abandonada, nunca ninguém mostrou vontade de a alugar, pois o local era pouco atractivo, apenas os muros, das traseiras das hortas, eram a sua companhia.

Na sexta-feira,  o Celestino, e um primo beberam um pouco mais do que o costume e, a noite tinha tomado conta da aldeia, quando se meteram à rua a caminho de casa, toldados pela bebida procuraram o caminho mais curto, na ânsia de chegar ao conforto da casa,  começaram a descer a Travessa do Salgado sentiram um arrepio que em vez de os deixar paralisados, lhes deu corda às  botas para fugirem a bom fugir, só pararam em casa.

No outro dia não se falava noutra coisa, o Celestino e o primo Onofre foram assombrados, tiveram a péssima ideia de passar na travessa, e ouviram os gemidos, as correntes a arrojarem no chão, uivos que só podiam ser sobrenaturais, coisas que batiam nas paredes e luzes fugindo, de um lado para o outro, algo que só podia ser do outro mundo. 

Parece, até, que o Onofre ficou meio apanhado, não diz coisa com coisa.

-Mas do que estavam à espera? Brincar com as almas é coisa que não se faz, sentenciou Isidoro das Tretas.

-É verdade há coisas que temos que respeitar, gritou Chico Baldosas, mas isto assim não pode continuar. As coisas só acontecem quando anoitece, por isso durante o dia a casa não deve ter assombrações, logo podíamos, dois ou três com mais coragem, fazer uma sortida à casa durante o dia. 
A casa tem uma janela para a horta do Melicias, não deve ser difícil de  arrombar.

-Comigo não contem, disse logo, José Fonte. Ainda as coisas correm mal e temos a guarda e, o padreca, à perna e ele não é flor que se cheire, ainda somos acusados de um assalto.

Chico Baldosas, não se conteve:

-Então o que queres fazer, deixar andar o povo cagado de medo, os putos assustados e os homens encolhidos, para se fingirem valentes? Se è isso que queres tudo bem, mas eu alinho na ideia do Chico, e se ninguém quer arriscar vamos os dois.

Mestre Simão na sabedoria dos seus setenta anos pediu calma:

-Pessoal com ditos e palpites não vamos a lado nenhum, o Chico e o Zé, cada um a seu modo, tem razão, mas temos um problema para resolver, e isso é o mais importante.

Estamos aqui oito homens, pudemos votar e a maioria ganha, e faz o que tem a fazer, os outros não se metem e cada um vai à sua vida. Que acham?

Não foi preciso votar, mesmo os mais renitentes, se mostraram prontos para avançar.

-Bom já que estamos de acordo, insistiu Chico Baldosas, temos que fazer as coisas da forma certa. Eu falo com o Melícias, para nos deixar ir pela horta, e o Zé pede ao Orlando que é latoeiro para abrir a janela sem causar estragos.

-Estamos todos de acordo?

-Tá combinado! Responderam.
 
-Então, continuou Chico, cada um trata da sua parte e amanhã, que é sábado, encontramo-nos aqui, às oito.



Cada um foi á sua vida, uns preocupados outros, pareciam, mais tranquilos.

****

Ainda não eram oito horas e estavam todos, agora eram já eram dez homens, o Meliciais e o Orlando serralheiro tinham engrossado o grupo.

De seguida , o Melicias abriu o portão e entraram todos sorrateiramente.

Encostaram uma escada à parede, junto à janela, com paciência. o Orlando  desenroscou uns parafusos, tirou o fecho e a janela de guilhotina, abriu facilmente.

Quatro dos mais afoitos, galgaram a escada e saltaram para o interior da casa.
A janela dava para uma casa de banho bem apetrechada, com uma celha para banho, lavatório com bacia e balde e com um espelho na moldura, a seguir um quarto pequeno mas, impecável de aspecto, cama de casal com dois almofadões da cor da colcha florida, na parede um grande crucifixo, dava um ar mais sacro.
A seguir uma sala rústica que  simultaneamente  era cozinha, com uma grande chaminé, onde se viam umas varas atravessadas, onde  punham os enchidos ao fumeiro.
Um grande jarro para aquecer as agua,s para os banhos, estava sobre uma trempe na chaminé. 
O armário bem fornecido de chouriços, presunto e outras iguarias.
Numa prateleira improvisada, um razoável abastecimento de bebidas, depois a sala de entrada mobilada de forma muito moderna, chão de baldosas cor de cereja, estante com muitos livros, bem encadernados, Zé bem os olhou mas, livros não era a sua especialidade. Dois sofás claros, com uma mesa de vidro ao centro onde repousava um cinzeiro e duas molduras vazias.

Na parede, em frente, uma espécie de aparador, da cor da estante, encimada por um quadro a óleo de uma paisagem com dois cavalos de patas erguidas. 

Em cima do móvel uma grafonola, de corda, alguns discos de 78 rpm e um velho rádio, mais algumas molduras vazias e diversos objectos decorativos. 

Na parede, por cima da porta, um tabuleiro com diversos candeeiros a petróleo, no chão, junta à porta de entrada, um monte de correntes de metal.

Emanuel, não se conteve, e em surdina desabafou:

-Porra que estas almas penadas tratam-se bem!

*****
Voltaram a sair por onde entraram, Orlando voltou a colocar a fechadura e pouco ou nada se notava.

*******
Juntaram-se cabisbaixos, cabeças confusas, pensamentos baralhados.

Foi então que o Gilberto pareceu ter uma ideia brilhante:

-E se formos falar com o padre?

-Estás doido ou que? Ouviu-se a uma só voz. Vais e dizes senhor prior, eu e mais 9 parvos, como eu, assaltamos a sua casa, não roubamos nada, mas arrombamos uma janela e andamos a cheirar tudo. É isso que vamos dizer? 

Mais uma vez a experiência do mestre Simão veio ao de cima. 

-Vamos pensar com clareza, nada de precipitações. Eu não pulei a janela, já me falta agilidade para isso, mas pelo que me contam os espíritos devem ser de carne e osso e tratam-se bem.

Andam a caçoar com o pessoal. Sabem o que eu penso? É a canalha, sabem que a casa está abandoada, que o padreco não lhe liga, arranjaram uma chave e vão, como eles dizem, curtir a noite.

Sabem que o pessoal respeita essas coisas de medos, arranjaram as luzes, os barulhos e as correntes e estão descansados.

-E então que vamos fazer? Perguntou Gilberto.

-Bom! Respondeu mestre Simão, tenho uma ideia mas é melhor esquecer, porque é mesmo maluca.

-Talvez não seja, responderam, diga o que está a pensar!

-Vou dizer o que estou a pensar, se calhar estou a pensar asneira, mas vou dizer.
Essas coisas das assombrações, são sempre as sextas-feiras ou sábados, à noite, logo é farra de fim de semana. 
Na próxima sexta-feira e, se for preciso no sábado, vamos estar à espreita em todas as ruas, que vão ter à travessa, quando dermos por eles, deixamos que vão para a animação e a seguir, com uns varapaus, nas mãos, aparecemos para a festa e que festa vai ser! Num instante acabam as almas penadas!

O Jeremias chegou mesmo a bater palmas.

-Boa ideia mestre, sexta-feira vamos à caça!

*******

Sexta-feira, muito antes da hora, distribuíram-se, muito discretamente, de tocaia, nos locais de passagem para a travessa.

O acesso à travessa tinha três possibilidades, subindo ou descendo a rua da Restauração, a travessa ficava mesmo a meio ou, então, vindo do largo do Moinho Velho.

O Jeremias, o Chico e o Gilberto esconderam-se, de olhos bem aberto, no largo. 

Mestre Simão, Orlando e Onofre ficaram no principio da subida, da rua, e os restantes, escondidos na escada do Melícias, tinham a seu cargo a vigilância da descida da rua.

Tomaram conta dos postos de vigia, eram oito horas, evitaram fumar ou fazer qualquer barulho.  Mas 
chegadas as 11, da noite fria, e nada de nada. Como tinham combinado desistiram e foram juntar-se aos colegas que estavam no largo.

Juntaram-se, via-se um ar de desanimo e frustração, estavam  convencidos que tudo ia correr bem, e poderem desmascarar os brincalhões, que aproveitando a crendice popular, se divertiam e faziam as suas farras. 

Iam espreitar a casa, eram 10 homens cansados e num total desconforto pelo fracasso.
 
Parecia, ao longe, tudo calmo e sossegado mas quando entraram na curva, foi o descalabro, os urros eram lacinantes, o barulho das correntes a arrastar, enquanto  luzes acendiam e apagavam ao compasso de gemidos doloridos.

Onofre foi o primeiro, largou em debandada, levando na sua peugada o Jeremias e o Gilberto, pareciam ter asas, desapareceram como se um mar de demónios fosse no seu encalço.

Ou outros sete olharam-se, num misto de medo, de desanimo e na procura  dum pouco de coragem que ainda lhe sobrava.

Chico Baldosas, num assomo de coragem, gritou para os seis companheiros que lhe restavam:

-Eu não fico assim, vou arrombar a porta e as almas, ou o que seja, tem que se haver comigo.

Foram sete ombros, que de repente, levaram de vencida a porta que os separava do desconhecido, o estrondo foi enorme, a fechadura saltou.

No meio da sala o padre, em pelota, dançava com a Sofia, mulher do Morgado, emigrado na Suíça, que totalmente nua, se embalava dengosa, nos braços do pároco.


Agora o povo voltou ao seu sossego, o padre mudou de ares, a Sofia foi continuar a sua dança na Suíça, mas com um par diferente, o seu marido, que não sabia  que também tinha um par diferente, mas de cornos. Coitado! 



4 comentários:

SOL da Esteva disse...

Verdadeiramente mais um Conto "daqueles"!
E não é que haviam almas DEPENADAS de todo?
Magnífico. Parabéns, Manuel

Abraço
SOL da Esteva

dilita disse...

Qbrigada amigo Manuel, por esta tão interessante estória tão bem escrita e tão bem contada. Tenho muitas saudades dos seus escritos, e hoje vim até aqui sem esperança, mas tive uma agradável surpresa.Bem aja! Voltarei!
Um abraço forte.
Dilita

A Casa Madeira disse...

Passando para ver como vão as coisas do lado de cá?
PAZ E BEM.
Se cuida...

A Casa Madeira disse...

Bom Mês.
Se cuida...