sábado, 20 de outubro de 2007

Ao sabor.......

Estugou o passo. A pressa de chegar a casa e acabar de vez com essa situação deu-lhe forças. As pernas nem sempre correspondiam ao ritmo que tentava impor, mas a vontade era tanta que esquecia aquela dor que, há meses, não o deixava.
O calor começava a apertar e na testa começavam a aparecer gotículas de suor.
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No outro dia sentiu um peso no peito. Era uma sensação estranha. Parecia que estava oco, e uma dor aguda penetrava deixando uma sensação de desconforto. Respirou fundo
tentando meter no peito o ar que lhe parecia faltar. Tudo era estranho, a sua volta parecia que uma névoa se ia desprendendo. Sentia a cabeça a andar à volta.
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Era uma forma esquisita, era como uma agonia. A dor não era muito forte mas o desconforto era enorme. O peito parecia que transportava toda a angústia do mundo.
Queria respirar mas o ar entrava com dificuldade. A cabeça zumbia como se de repente estivesse cercada de abelhas.
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Olhou em volta e desfilou as más recordações da infância que não teve. Via-se enfiado num calções coçados e presos por um suspensório de pano que lhe cruzada o abaulado peito, coberto com uma bonita camisa feita com o pano velho de outra. A sacola era de serapilheira parda e os livros que transportava eram as sobras de um menino que um dia os vendeu no alfarrabista. A pedra onde fazia as contas, e que bem as sabia fazer, era a angústia constante. Por tudo e por nada se partia e iria sentir no corpo e nas faces o desabar do mundo.
Não podia olhar os próprios olhos mas dizem que apesar de tudo deixavam transparecer
ladinice, esperteza e uma vontade enorme de enfrentar a vida.
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Os anos passavam tão rápidos que nem deu porque estava a crescer. A vida estava marcada em todos os poros do corpo franzino. O trabalho era monótono, sem emoções, sem realização. Era… enfim, então Sr. Dr., como estão os meninos. Meninos, dois abortos feios como o pai, convencidos como toda a família e inúteis como todos os que os rodeavam e enchiam de mimos e prazer.
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Manhã cedo com o frio a entrar pela escassa roupa, era esperar pelo eléctrico operário, sempre era mais barato. As senhoras, algumas, abafavam o frio nos belos e felpudos casacos e alguns homens aconchegavam o gordo pescoço no sobretudo de lã de camelo.
Um dia, talvez, ainda tivesse um. Mas seria difícil porque nos familiares não havia nenhum que um dia pudesse ser transformado.
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Houve um tempo em que parece que o tempo tinha parado. Foram umas férias feitas de emoções. Era como que o alvo de todas as atenções. Passaram tão rápidas que ainda hoje sente na boca a doçura de tão bons momentos. Os dias eram longos e preenchidos de todas as brincadeiras. De repente era o herói de uma qualquer banda desenhada.
Corria pelos campos e sentia no rosto a brisa da liberdade. À noite entre as pernas do avô, aconchegava a cabeça nos carinhos desconhecidos.
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Um dia numa enorme fila quis ver como a morte leva os poderosos. A pouco e pouco avançava. Muito devagar, tão devagar que perecia que a própria fila não tinha principio.
Mas, depois de horas, lá consegui ver aquela fraca figura estendida num esquife. O ar mais sereno que um morto pode ter. As pessoas passavam devagar. Algumas inventavam umas lágrimas e como carpideiras faziam a sua boa acção para que todos pensassem que era um desgosto sentido. Ele passou sereno, deslumbrado com tudo o
que via. Pensava, porque conseguem chorar, quando todos sabiam que era apenas o medo que os levava aquela espectáculo. Mas, o presidente estava ali estendido, e outro já se perfilava para continuar tudo aquilo que aquele não tinha feito. Iria de certo cortar muitas fitas, inaugurar o que os outros fizessem e receber os aplausos pelos discursos gastos e sem nada de novo.
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Lá fora a vida continuava naquele ritmo a que já nos habituamos. Na jardim da Estrela as criadas passeavam nos trajes domingueiros sempre na mira de um militar garboso que afoitamente desse um piropo.
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A dor continuava mas não queria dizer nada. Pensando que de certo já ia passar. O relógio que lhe trabalhava nos ouvidos deixava um enorme desconforto.
O chilrear dos pássaros entrava pelas janelas e agudizavam os padecimentos. A cabeça, não tardava, de certo iria estoirar.
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Até que a rapariga não cantava mal. Era uma daquelas músicas brasileiras a que a voz doce da cantora emprestava uma sensação de cócegas.
As pessoas mais preocupadas com o conteúdo dos pratos, pouca ou nenhuma atenção lhe votavam. Ela persistia na balada, onde o amor ainda havia de voltar.
Um pouco tímido cruzou os olhos com os da artista e mais timidamente ainda os deixou cair. A voz dela parecia mais doce e a letra da canção era como se fosse só para ele. Falava de tristezas passadas e de muitas promessas de um amor que iria acontecer.
Havia lamentos e todas as venturas de um dia que estava tão próximo. Falava de beijos quentes, de promessas que pareciam reais.
Ficou enlevado e procurou-lhe os olhos que num largo sorriso o deixou enlevado. Desviou o olhar e o rubor tomou conta do seu rosto, como um rapazinho envergonhado.
No seu cérebro mil projectos se começaram a desenhar. A que horas sairia? Iria só, ou alguém e a iria esperar? E o sorriso?
Ficou desajeitado como sempre, sem saber tomar uma decisão.
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Os grilos entonteciam o silêncio da noite.
A rapariga apareceu como se de repente se tivesse materializado.
Tinha uns lábios carnudos e húmidos. Os olhos eram profundos e penetrantes. Havia alguma dureza naquele olhar, mas o rosto deixava transparecer tanta doçura que os olhos ficavam esquecidos.
Olhou fixamente, como se tivesse fixado um ponto dentro do meu cérebro para ler todos os meus pensamentos.
A voz, doce e quente saiu como sussurrada.
As pequenas covinhas nas maças do rosto tomaram conta do meu olhar e, fiquei naquele jeito meio parvo de quem acaba de entornar o café nas calças.
-Boa tarde, sou a Graça, filha do José Peres. Lembra-se?
Se me lembrava do José Peres. Amigo dos bons e maus momentos, que de repente desapareceu. Sem deixar rasto. Muitos disseram que foi atrás de umas saias, outros que fugiu porque já não aguentava mais a vida com a megera com quem casara. Todos disseram qualquer coisa, mas a verdade, essa, ninguém a sabe.
A moça continuava na minha frente e eu parvamente olhava o horizonte à procura de palavras. Sem jeito, e que mal me suou a minha voz, balbuciei:
-O Peres, mas que é feito do Peres?
-O Peres era o meu pai. Faleceu há um mês. Deixou esta carta para si.

Estendeu-me um envelope.
Olhei-a fixamente nos olhos, eram lindos, escuros e penetrantes. Não pestanejou nem desviou o olhar. Aguentou com firmeza. Depois, com algum sarcasmo perguntou:
-Passei no exame?
Apeteceu-me desaparecer e deixar a mesa do café. Apeteceu-me correr rua abaixo e desaparecer como o Peres tinha feita há muitos anos atrás. Aguentei.
Levantei-me com cortesia e convidei-a a sentar-se.
Puxou a cadeira e cruzou delicadamente as pernas.
Abri calmamente a carta. Retirei duas folhas.
A letra era do Peres, redonda e incerta. Como me lembrava bem.
Começava como se na véspera tivéssemos falado. Naturalmente, sem explicações.
Contava que um dia foi atrás de uma mulher, deixou tudo, a família, os amigos, as dividas. O último dinheiro foi para comprar uma passagem sem regresso. O último olhar, antes de embarcar, foi de saudade.
Foi para a Africa do Sul, trabalhou muito e fez fortuna. A mulher, essa por quem deixou tudo, desapareceu tal como tinha aparecido, calmamente sem alarde, deixando no berço a única lembrança de três anos em comum.
E agora, pedia ao amigo que deixou um dia, que olhasse pela filha e que a orientasse neste mundo.
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O dia de aniversário era mais um dia. O telefone fazia lembrar que há muitos anos atrás vira o mundo pela primeira vez. As palavras do costume, de circunstância. Lá fora o vento fazia tremer as persianas das janelas. O desconforto era enorme, não lhe apetecia mesmo nada aquele jantar familiar. Desligou o telefone.



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Tenho um namorado!
Foi assim que me cumprimentou enquanto um brilho nos seus olhos, cor de âmbar, deixavam antever tudo aquilo que sentia.
Tenho um namorado, repetiu, como se fosse a única no mundo a ter um namorado.
Rebolou os olhos, passou os dedos pelos cabelos e sorriu.


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Era tão pequeno que dificilmente lhe davam a idade que tinha.
Tão magro que as costelas vincavam a camisa e lhe davam aquela ar desajeitado que
o tornava tão diferente.
Olhos fundos de um azul tão claro que mais pareciam de água.
A boca era apenas um pequeno traço que parecia suportar um nariz fino e delicado.

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