sábado, 13 de setembro de 2008

Apontamentos


Olhos negros……

Estavam ao meu lado os olhos mais negros que jamais me tinham fitado.
Corpo esguio, cabelos desgrenhados pela sujidade acumulada, rosto magro e vincado pelos infortúnios do dia-a-dia.
Não tinha mais que oito anos mas parecia arrastar em si a decadência de uma geração.
Mirava-me do fundo daqueles escuros lagos de escuridão com uma súplica nos lábios gretados. Na mão estendida a caixa de pensos rápidos, no rosto a tristeza vincada por muitos medos que um sorriso triste não conseguia disfarçar.
Olhei fascinado para o mundo de tristeza e desespero que aquele olhar deixava aperceber.
A custo uma cansada voz, deixou o pedido:
-Compre senhor!
Fiquei fascinado pelo sumido grito de desespero, pela súplica do apelo.
Os olhos negros, profundos presos na montra dos doces e a mão estendida com a súplica na voz entoavam no mundo vazio que me rodeava.
-Queres um bolo? Perguntei para quebrar o drama de uma vida e disfarçar a vergonha
que de mim se apoderou.
Estendeu um magro dedo e apontou.
Agarrou e com um sorriso cinzento arrastou o corpo esquálido para o Sol que lá fora, continuava a brilhar.
Deixei o donutt, larguei o café e sai envergonhado por andar indiferente ou não querer ver os dramas escondidos à vista de todos.



O Candidato…

Limpou cuidadosamente os óculos e encarou a sala repleta. As pernas tremeram ligeiramente. Pegou nos papéis que o ajudariam no seu discurso. Voltou a fitar todos aqueles rostos que o olhavam, alguns desconhecidos, outros amigos ou companheiros de todos os dias. Tentou ganhar coragem para começar, mas a boca seca não lhe deixava sair o som. Pegou no copo e bebeu um pequeno trago. Encheu o peito de ar.
Voltou a encarar os olhos que tão intensamente esperavam as suas palavras.
Depois, olhando ao longe, atirou
-Não sou candidato!
Arrumou os papéis, tirou os óculos e deixou a palco. Estava feliz, sorriu. Vencera o desejo do poder, podia continuar a não mentir aos desconhecidos, aos amigos e aos companheiros de todos os dias.


Insónias….

Talvez me apeteça começar amanhã de novo. Hoje o tédio que me encharca os pensamentos não me deixa raciocinar.
O dia até não começou mal, as vozes que toda a noite me acompanharam desapareceram de repente. Ficou apenas o desconforto de uma noite mal dormida e na minha cabeça o ritmo sincopado do relógio que habita nos meus ouvidos.
O dia está luminoso, o Sol que não me aquece desperta-me a vontade de começar.
Mas hoje não, amanhã vou tentar de novo.


Regresso..

Lentamente de forma marginal entrou. Olhou o espaço vazio que enchia a sala. A promessa de um voltar ainda lhe martelava os ouvidos. Lá fora ficaram as angústias.
Tirou os óculos de sol que acentuavam as penumbras das paredes nuas. Em pensamento
pintou de cores leves e dispôs móveis ao acaso. Aqui o sofá, além o móvel que descobrira na loja da esquina. Naquela parede o espelho redondo e em frente o quadro com os dois cavalos de crinas ao vento.
Encheu a sala dos sonhos que há anos tinha largado.
Semicerrou os olhos para que as lágrimas furtivas pudessem deslizar mais facilmente.
Parecia tudo tão real que o desconforto, por momentos, deixou de fazer parte da realidade.
Sorriu, voltou a por os óculos e desapareceu na escuridão em que sempre vivera.
Por momentos sonhou e foi feliz.



Para o Luís Stau Monteiro…

Amanhã vou pela primeira vez à escola das meninas grandes e a mãe disse que me tenho que portar muito bem porque a professora só gosta das meninas que se não portam mal como se fosse fácil uma menina portar-se bem todo o dia a ouvir sempre a dizer que não se pode fazer isso e que não se podem comer chocolates porque fazem mal aos dentes e que depois ficamos gordas como aquela senhora que aparece na televisão e que os dentes ficam com buracos como os do senhor que está a vender
as revistas que a mãe vai comprar antes de me ir levar ao infantário e onde há sempre homens a olhar para a mãe como se a mãe fosse um jornal para eles estarem a olhar
quando tem lá pendurados tantos jornais e tantas revistas bonitas que eu peço para a mãe comprar mas ela só compra as que trazem as telenovelas que eu tenho que ver quando podia estar a ver os desenhos animados que estão no outro canal mas a vida da gente que somos pequeninos é muito difícil e ainda agora querem que eu vá para aquela escola onde tenho que estar sentada a escrever e a fazer contas quando podia estar com os meus amigos no recreio a brincar mas todos mandam em mim e ninguém me deixa mandar um bocadinho para poder fazer todas as coisas como gosto…..

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