domingo, 7 de fevereiro de 2010

Tia




Pega na minha mão e anda comigo.

Vamos trilhar outra vez os caminhos que já antes percorremos.

Vais ver que as flores já estiolaram e agora apenas um” ténuo” cheiro nos deixa a lembrança das rosas que colhias neste jardim.

Olha ao longe, o Sol continua a nascer ali por cima daquele monte e a dourar aquelas colinas, onde na nossa juventude colhias as flores silvestres com que depois enfeitavas as tranças.

Eu corria, descalço, alheio as rudezas do terreno na procura dos gafanhotos que saltavam na minha frente.

Queria subir ao sobreiro na procura de um ninho de rolas para enfeitar a minha gaiola vazia. Não deixavas, gritavas que se Deus lhe deu asas eram para voarem. As asas não se prendem, pois prender a asa é como agrilhoar a liberdade.

Eras mais velha. Só seis meses. Mas eras mais velha e eu tinha que obedecer.

Voltávamos á tarde, cantando canções desafinadas, ”impantes” de felicidade, num desacerto que os nossos ouvidos não sentiam.

A caixa de fósforo que levara vazia, continuava na mesma. Era para um grilo que não apareceu. Com este calor estavam bem escondidos no fundo das covas onde se acoitavam.

Eu queria um grilo com quatr rabos, pois os rapazes diziam que os de três, quando cantavam chamavam as cobras e, eu tinha medo delas. Ainda hoje tenho.

Eu sei que à noite, na aldeia, podíamos apanhar um grilo. Havia um que cantava na esquina, ao fim da nossa rua, mas de noite tinha medo porque diziam que podia aparecer um avejão. Não sei o que é um avejão mas preferia não arriscar e não queria
que soubessem que tinha medo.

As flores que te enfeitavam as tranças já tinham perdido o viço e pendiam tristes, como tristes estavam os meus olhos por ver este dia terminar.

Só o doce olhar da minha avó para nos retemperar das aventuras deste dia da nossa meninice. Tinha um sorriso de algodão doce, terno, fofo e reconfortante.

Ainda me lembro da sua frase:

-Onde andaram a esta “escalmorreira” do Sol?

Respondestes:

-Mãe fomos à Coitada.

E eu, com um ridículo lenço atado nas quatro pontas a servir de boné, ofegante, confirmei a nossa aventura.

-Vão lavar as mãos para lanchar.

Grossas fatias de pão, da fornada de ontem, untadas com manteiga da loja do Senhor Zé Miguel e um copo de leite fresco, saciavam a fome de que nos tínhamos esquecido nestes laivos de liberdade.

***

Crescestes e foste embora para uma grande capital de um grande país.

Quando te voltei a ver, já só a voltei a ver.

O tempo tinha passado e às tias não as trato por tu.

7 comentários:

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Meu querido Manuel
Lindo texto...voltei à minha infancia, na minha aldeia, que hoje é vila.


-Onde andaram a esta “escalmorreira” do Sol?

Esta frase fez-me lembrar o que a minha mãe me dizia, é uma frase que se usava muito no Alentejo.
Adorei.

Beijinhos
Sonhadora

Manuel disse...

Cara Sonhadora
Só no Alentejo, ainda, a continuo a ouvir.Julgo que é vernáculo embora de raiz popular.

Guma disse...

Caro Manuel,
Por alguma razão aqui venho, não só por amabilidade e retorno às suas visitas.
Uma ternura esta história.
História de quaisquer jovens nesse tempo que assim se passavam. Hoje as brincadeiras e entreténs são outros e não digo que sejam menos bons, mas a vantagem de brincar em plena natureza e em contacto com a vida real, não se compara a uma tela de um qualquer PC. Bom será que os pais tenham consciência do que é urgente saber dosear as duas coisas para que os nossos jovens cresçam de uma forma saudável, física e mentalmente. E claro... com boas histórias para um dia contarem!
Forte kandando. Estar aqui é um prazer.

Manuel disse...

Caro Kimbanda,
O importante é que aparece e deixa o fruto de uma experiência vivida e amadurecida.
Palavras que motivam e que agradeço.
Continuarei a visitar a sua página, pois sempre aprendo algo mais.
Um abraço

Unknown disse...

Oi manuel, gostei muito de ver tua lembrança nítida e agradecida. Não conhecia a lenda do grilo de 4 rabos, nem sabia que grilo tinha rabo. Será diferente o bicho em Portugal?
E escalmorreira, não sei o que significa.

Mas o que mais gostei, foi o lenço fazendo vez de chapéu na caneça do menino esfogueado. Obrigada por estas linhas tão doces.

Adelaide disse...

Ler a sua prosa é sempre um enorme prazer pela maneira bela e simples com que conta histórias também simples e, por isso, tão belas

Beijo
Mara

Unknown disse...

Gostei...pra variar!