segunda-feira, 12 de julho de 2010

A agonia do Belchior




Não me importo que seja tarde.

Eu sei, tenho plena consciente que os factos deveriam ter sido na altura própria. Tudo na vida tem a sua ocasião, as coisas estão feitas de forma a encaixar no momento, Depois parece que se cria um hiato, um vazio como se uma peça do puzzle ficasse por ajustar.

Mas por vezes, muitas vezes, deixamos o tempo passar e as realidades ficam fora de controlo, sem jeito, imprecisas.

Naquele Inverno as coisas precipitaram-se duma forma difícil de prever, parecia tudo normal, mas não, havia algo de diferente. Talvez fosse o cheiro da chuva, pois a chuva tem um cheiro muito especial, nem todos o notam, mas tem esse cheiro.

Depois, sim, depois as confusões que nos assaltam quando a nossa fragilidade é mais acentuada, fazem que a nossa visão fique mais reduzida e apenas conseguimos ver aquilo, apenas aquilo, que queremos ver.

Não sei explicar muito bem, pois há situações que me ultrapassam e, quando dou conta, já as coisas se enredaram de tal maneira que se quiser fazer algo apenas irei atrapalhar.

Mas, ando em redor do assunto sem coragem. Absorto como se nada tivesse acontecido. Talvez seja a minha inadaptação a assuntos melindrosos.

Mas um dia tenho que deitar fora a angustia que me persegue, tenho que contar para que o nó que me oprime se solte e as minhas noites passem a ser mais tranquilas.

Foi há três anos, mas as coisas estão tão presentes que pareço topa-las a cada momento.

Quando a GNR levou o professor Belchior a notícia ribombou na povoação como se uma bomba tivesse deflagrado.

Não era que motivasse muito espanto, pois o professor sempre foi um tipo esquisito, meloso e um pouco melífluo. Os homens normalmente diziam que o gajo era maricas, com aquele ar untuoso e saracoteado, mas nunca esperaram que as coisas tivessem este fim tão traumatizante para este povo habituado a uma vida linear e sem escândalos a assombrar a quietude do dia-a-dia.

Agora com a detenção por abuso, ou tentativa, de uma menor de seis anos era demasiado chocante para este povo. Ninguém pensava noutra coisa, era um nojo e indignação que se sentia, era como que um envergonhar colectivo, como se o pecado fosse geral, como se todos tivessem culpa, como se qualquer se sentisse responsável.

Mas, bradem aos céus, quando o povo soube que o maldito foi mandado em paz como se nada se tivesse passado então, a indignação tomou conta de todos como se uma peste se tivesse espalhado, o juiz, quem sabe se não pedófilo, mandou o professor Belchior em paz para a sua vida e para as suas pobres crianças, pois não reconheceu nada de mal no comportamento.

-Quem sabe, disse ele, se não foi a menina que se lembrou de manchar o bom nome deste pobre mestre?

Foi então que as coisas começaram a tomar este rumo, que me trouxe toda a angustia que carrego.

Foi o Chico da Murteira, tio da pequena abusada, quem teve a ideia. Naquele seu jeito um pouco enigmático, disse:

-Se fossemos, os oito, falar com esse tal de professor e tirar a limpo o que se passou?

Olhamos uns para os outros, baralhados e confusos, pensando se seria uma boa ideia.

Mas, na calada da noite, fomos todos, Chico Murteira, Zé Pedro, António Faria, Albano Pocinhas, Manuel Almeida, João Augusto, Armando Coitado e eu, Fred, como qualquer me conhece.

Quando batemos à porta do professos houve como que uma comunhão de pensamentos, ou melhor, houve como que um esvaziar de entendimentos, pois todos nos olhamos confusos e sem saber bem ao que íamos.

O professor, grotesco num roupão, olhou incrédulo o aço frio de 16 olhos que o alvejavam em interrogações.

Mas, balbuciou:

-Em que posso ser útil?

Dezasseis mãos se ergueram mas só uma segurava o aceiro que seis vezes o perfurou.

Gritou como um porco no estertor da morte e, quase com graciosidade, deslizou por umas pernas que ficaram inertes e inúteis para sempre.

Foi-se, com um esgar de interrogação. Perdeu a vida nos golfes de sangue que iam purificando o espírito pérfido que aquele corpo albergava.

Nunca descobriram como morreu o professor.

Agora estou mais aliviado.

Já posso dormir mais tranquilo.

5 comentários:

Sandra Gonçalves disse...

sabe que aundo te leio me perco em tuas palavras e entro em teus escritos...
belissimamente bem escrito.
parabens amigo.
Bjos achocolatados e obrigado pelo carinho em meu blog.

Luna Sanchez disse...

Não há raiva que justifique um ato desses, né, Manuel? Carregar a culpa pela morte de alguém dói muito mais do que qualquer coisa que esse alguém possa ter feito contra nós.

Beijo pra ti.

ℓυηα

Solange Maia disse...

dormir tranquilo ?
acho que não...

texto muito bom !!!

beijos

Guma disse...

Amigo e estimado Manuel:

Saiu assim...e no momento.

Oh!, quem dera dormir tranquilo
e não durmo nem sei bem porquê.
será por qualquer motivo
mas, não sei bem qual e o quê.

Seu conto está um mimo, um deleite. Já pensou em lançar um caderno de contos. Seria um sucesso.

Vim me recrear e me surpreendo com bem mais que isso.

Também vim agradecer a sua companhia lá na "serra...", e só agora, porque não tenho conseguido arranjar o tempo que não se cruza comigo de forma organizada de molde a visitar os amigos.
Receba p. f. o meu humilde cumprimento e deixo um sincero kandando.

Maria Ribeiro disse...

MANUEL: não tenho a certeza se isto é verdade ou ficção... Se é verdade, carregas uma cruz demasiado pesada ,até ao fim dos teus dias... Agora a verdade é que se isso acontecesse com filha ou neta minha... DEUS ME LIVRE!...Não quero pensar ,sequer... DEixa-me ser cobarde...
Há anos ,a mãe de uma menina abusada numa cidade da Alemanha fez como o vosso grupo, mas sozinha...
Foi para a cadeia mas no julgamento houve uma tal onda de protestos que a pobre mãe foi considerada inocente!
Cá ,hoje, é diferente: são libertados os pedófilos e vão os queixosos para a cadeia...
BEIJO DE
LUSIBERO