sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Uma morte, quase, anunciada




Morreu o Senhor Varela!

A notícia correu o bairro, entrou em todos os lugares, entoou como um cântico nos claustros de uma Igreja.

Havia um misto de consternação e uma onda de curiosidade invadiu tudo e todos.

-Morreu o Senhor Varela, apregoavam os miúdos como se espalhar a noticia fosse uma prédica anunciada.

Nas tabernas os homens, enquanto escorropichavam os copos, iam abanando a cabeça num sinal de desolação.

Na Mercearia do Senhor Isidoro as mulheres cochichavam de forma tão camuflada que pareciam ter medo de alguma coisa. É verdade que não gostavam muito do Senhor Varela, libertino mor, instigador das pândegas que levavam os homens às noitadas e às memoráveis bebedeiras. Rara era a semana em que o Varela não organizava uma qualquer comemoração para festejar algo que seria inventado se necessário.

Depois era o descalabro, noitada na Sociedade Recreativa, onde o Varela era Presidente, com o petisco e o vinho a correr abundante de mesa em mesa.

Os homens voltavam tarde e a má hora ao remanso dos lares, avinhados e sem disposição de cumprir os rituais a que as mulheres se iam desabituando.

Agora, com a morte do homem, a calma e o sossego podia estar de volta aos lares do bairro, mas, embora pensando assim nenhuma se atrevia a dizer o que lhe ia na alma.

Apesar de essa oculta conspiração ser notória a consternação envolvia os homens como se fosse algum ente chegado a juntar os pés e a partir desta para melhor.

O velório ia ser no Clube, afinal era o Presidente, e que melhor poderiam fazer os seus consócios do que o homenagear na casa onde passara a maior parte dos seus dias e muito especialmente das noites.

Bandeira à meia haste. A mesa do bilhar tapada com crepes pretos, serviria para colocar o caixão onde todos e todas, iriam prestar homenagem ao homem que dinamizava os grandes acontecimentos socioculturais do bairro, bailes, campeonatos de sueca e até mesmo grandes torneios de snooker.

O velório era um acontecimento que ultrapassava tudo o que de interessante alguma vez tivesse acontecido naquele lugar. As luzes veladas, os crepes negros e os reposteiros vermelhos, com que taparam as portas, davam ao lugar um ar lúgubre e soturno como convinha para esta ocasião.

Em cima do pedestal improvisado, ninguém diria que o era, o caixão era o alvo de todas as atenções.

Iam entrando e enquanto uns se postavam numa meditação mexendo os lábios num simular de oração, outros apenas se perfilavam, destapavam o rosto como para se certificar e retiravam devagar para a sala de espera.

A Dona Cacilda companheira de toda a vida do pobre Varela estava inconsolável, quem lhe havia de dizer que assim sem mais nem menos, a ia deixar tão só e abandonada.

Choramingava enquanto se lamentava:

-Estava tão bem disposto, jantou e de repente sentiu-se mal, foi para a cama e, desafortunado, já não acordou. Ainda chamei o Doutor Idalécio mas, coitado, nada pode fazer a não ser passar a certidão de óbito.

Suspirou, um suspiro tão fundo e sentido, que foi um dó de alma escutar tanto sofrimento.

Dona Carminda, a sua melhor vizinha, não aguentou o tédio desta morna sessão de homenagem e deixou-se vencer pelo sono. Abriu a boca e num suave roncar deixou-se embalar nas asas de Morfeu. Valeu uma cotovelada da Dona Cacilda para por termo a tão desapropriado acontecimento.

Corria o velório nesta tediosa maneira quando de repente, Varela se sentou no caixão e esfregando os olhos para se habituar à semi-obscuridade clamou:

-Ainda bem que estão aqui todos!

O pessoal levantou-se com gritos histéricos de pavor, desarvoraram em louca correria em procura da rua que os libertassem deste inesperado regressar dos mortos. Só a pobre da Dona Carminda que desmaiou com tamanho susto ficou a fazer companhia ao morto, que afinal estava vivo.

Varela ficou confuso, não percebia este atropelo e este desandar desesperado de todos os seus amigos. Não percebia o que se passava.

Tentou levantar-se desse emaranhado de roupas e crepes negros com que o enfeitaram em tantas horas de catalepsia mas, os movimentos não obedeceram à vontade e baldou com estrondo para cima das cadeiras alinhadas em redor da improvisada peanha.

O estouro trouxe os mais afoitos ao lugar do culto e tiveram que conter o riso com o quadro que se lhes deparou.

Dona Carminda descomposta, com as pernas à vela e com umas vistosas culotes floridas a proteger as partes mais íntimas dos olhares curiosos. Escarranchado no seu peito o pobre senhor Varela olhava aparvalhado sem compreender o que se estava a passar.



9 comentários:

Magia da Inês disse...

Olá, amigo!
Voltei...
Que delícia de velório...
Eu já estava quase a chorar quando o morto ressuscita!...
Para contar histórias...só você mesmo amigo!...
Bom fim de semana!
Beijinhos.
Itabira
Brasil♥

Guma disse...

Olá Manuel, estimado amigo.

Gostei de todos os pormenores e do humor final.
Estava a ver o Varela perante o susto e admiração com o que se passava, morria (de verdade) com susto.

Assim se passa aqui mais um momento agradável e descontraído.

Desejo um óptimo Domingo e uma semana com tudo a correr bem.

Kandandos

Elaine Barnes disse...

Bela história,muito bem contada e envolvente. Eu também sairia correndo! rs... Adorei amigo! Montão de bjs e abraços

Laços e Rendas de Nós disse...

Se calhar o Varela nunca mais terá querido organizar festas...

Aquela, para a qual ele contribuíra, ia-lhe saindo cara...

Gostei dos pormenores na descrição de Dona Carminda.

Beijo

Luna Sanchez disse...

Ô, velório bom, Manuel! Será que dele já seguiu a festa?

Rs

Beijo, beijo.

ℓυηα

Sónia da Veiga disse...

FANTÁSTICA!!!

Estava a ser muito bonita, apesar de triste e, não só o morto "ressuscita", como há um momento de bom humor no fim!!!

ADOREI!!!

Parece que isto dos finais felizes é contagioso... ;)

Sandra Gonçalves disse...

Oi amigo, sabe que isso aconteceu com Um conhecido meu?
Mas ainda era criança e já estava o preparando para o enterro quando de repente ele acordou.
O medico já havia o dado como morto.
Teve uma doença chamada morte aparente.
Coisa triste viu?
E em minha cidade, muitas pessoas quando foram desenterradas estava deitadas de lado, arranhadas, ou seja foram enterradas mortas.
Que desespero, agente ri mais o caso é seiro.
Mas em se tratando de uma cronica eu dei foi boas risadas.
Bjos achocolatados e tenha uma linda semana!

AFRICA EM POESIA disse...

E o Varela morreu e nós vamos cantar-lhe pois ele queria... de certeza.

Com um beijinho


OUTONO


Estou a ver-te...
Árvore de Outono...
Porque estás nua?
Porque deixaste fugir
As tuas folhas...
E os teus ramos...
Ficaram secos e frios...
Longos e nus...
Porque deixas
Porque sofres?
Porque tem frio?

Porque...
É preciso renascer...
É preciso sofrer...
Para viveres novamente...

E assim árvore nua...
Vais voltar...
Mais frondosa...
Mais bonita...
E...
Vais estar outra vez...
Pronta para a nova Primavera...

LILI LARANJO

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Meu querido Manuel
Estou de volta e estou melhor.
Obrigada pelo carinho e pela amizade,que aquece a alma e o coração.

Beijinhos com carinho
Sonhadora