sexta-feira, 18 de março de 2011

Beba o cházinho, vá...beba...




Tinha acabado de fazer 32 anos mas já sentia no corpo o peso de uma existência, dorido pela pancada e pelas frustrações de uma vida desperdiçada.
Sem horizontes, sem motivações. Tinham-lhe destruído a pouco e pouco a razão de viver.
Já fora feliz, já tinha olhado de frente para a vida e construído sonhos.
Teve momentos de alegria que de repente, sem motivos, lhe foram negados.
Maria Celeste apaixonou-se, há quatro anos, pelo Gilberto.
Foi um namoro cheio de ternura, de amor e de promessas.
Foi o sonho da vida que sempre desejou ao lado do homem que lhe dava todo o amor que precisava.
Teve um casamento de princesa e sentia-se a mais feliz entre as felizes.
Gilberto era carinhoso, doce e de uma ternura que a deixava num sonho de que não queria acordar.
Este encanto durou dois anos, lindos, preenchidos, de encantamento.

De repente tudo mudou, Gilberto, começou a chegar tarde, bebido e com uma agressividade que nunca lhe conhecera.
O homem que a adulava, desapareceu como por encanto.
Começou o martírio, os maus-tratos, as tareias que a deixavam negra.
Não sabia o que mais a magoava, se as pancadas que lhe moíam o corpo ou as palavras que lhe deliceravam a alma.
Quantas vezes teve que fugir e refugiar-se na casa da sua vizinha Gertrudes, que a acarinhava e a protegia, até o marido adormecer e poder voltar para casa.


Hoje estava decidida, ia por termo a esta negação de existência, ao sofrimento que a consumia dia a dia.
Possivelmente iria passar o resto da sua vida numa prisão onde se iria sentir mais livre do que agora se sentia.
Mas tudo seria melhor do que esta angústia e sofrimento.

Chegou como sempre, cambaleante, vociferando os impropérios do costume.
-Então cabra não esperavas que e viesse para meteres cá os teus amantes?
Depois descarregou toda a fúria no martirizado corpo da Maria Celeste, que cambaleou.

Não aguentou mais, tirou a faca com que partia o pão e com as duas mãos enterrou-o no peito do homem que tanto amava.
Sentiu a lâmina a dilacerar a carne e a pressão dos ossos ao serem desviados pela fúria incontida de uma vida destroçada.
Ficou esperando o sangue que não brotou, antes de cair no chão.
Enroscou-se como um bicho-de-conta no seu medo e pavor. Com os olhos dilatados ainda viu o esforço moribundo do marido, agarrando com as duas mãos o cabo de uma faca que lhe levava a vida.
Depois desmaiou.

Gilberto tentou mas não conseguia. Deu um passo em frente e ajoelhou, abriu os olhos como que procurando a causa do que estava a acontecer.
Depois baqueou e caiu sobre a lâmina que quebrou deixando, finalmente, o cabo livre entre as mãos que o seguravam, já sem força.

Maria Celeste acordou com as palavras da vizinha.
-Beba este cházinho que a vai acalmar. Já passou tudo. Não se preocupe, eu e o meu marido vimos o que aconteceu e já contamos aos senhores guardas. Eles já sabem como foi.
Ele bateu-lhe, como é costume, e queria espeta-la com a faca, mas estava bêbado, caiu e acabou por se espetar a ele próprio. Pobre coitado, teve o que merecia.
Quando lhe íamos acudir vimos tudo, somos suas testemunhas. Não se preocupe. Já acabou.
Tem uma nova vida para viver.

Beba o cházinho, vá....beba.


13 comentários:

Luna Sanchez disse...

Será que estamos diante do crime perfeito, Manoel?

Um beijo.

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Manuel

Infelizmente, há tantas Marias Celestes...triste mas como sempre muito bem escrito, as tuas palavras são vida real.

Beijinhos
Sonhadora

Laços e Rendas de Nós disse...

Histórias de vidas...

Beijo

Elaine Barnes disse...

Não sei como as mulheres podem apanhar tanto e ainda dizerem que amam esses covardes. Enfim, o ódio foi maior que o 'amor" e um cházinho realmente é bem melhor para "beber o defunto". Adorei! Montão de bjs e abraços

AFRICA EM POESIA disse...

Lindo o teu conto.
Dá para reflectir r tirar várias conclusões.
beijos

AFRICA EM POESIA disse...

Manuel
Deus te ouça- em quem acreditas?deixei umas fotos no facebook.
O fado está muito dificil e doloroso...

beijo verde

Jacque disse...

Obrigada pela visita... Vou lá tomar um chá de camomila ! rs...

Beijo

Sónia da Veiga disse...

Quem dera houvessem assim mais vizinhos.
Boa semana Manuel!

Vivian disse...

Bom dia,Manuel!!

Ah!Que terrível...imagine viver com esta consciência...
Meu amigo, sempre um texto impactante de sentimentos fortes!!
Sempre me pega desprevenida!!
**Violência sempre gera mais violência...
Boa semana pra ti!!
Beijos

Magia da Inês disse...

Tocante!...
Você é um escritor perfeito.
Beijinhos.
Brasil✿ܓܓ
♫°º
•*• ♫° ·.

Dina Vieira disse...

Apreciei muito o texto,em especial a cumplicidade entre os vizinhos e a Maria Celeste.
Vai um cházinho e uma fatia de bolo?!
Boa semana.

Menina do cantinho disse...

Encantada e ao mesmo tempo assustada.
Quantas Maria Celeste não existirão por este mundo fora? Quantas mulheres acreditaram no homem com quem casaram e depois viveram e vivem com ele o maior inferno da sua vida?

Beijinhos

PnS disse...

Caro Manuel,
Que história... sempre tão real!
E infelizmente esta é a realidade de muitas mulheres. E a conivência dos vizinhos... rara nos dias de hoje, são vizinhos para todas as horas...

Beijinhos