domingo, 5 de junho de 2011
Memórias de um passado
Estugou o passo. A pressa de chegar a casa e acabar de vez com essa situação deu-lhe forças. As pernas nem sempre correspondiam ao ritmo que tentava impor, mas a vontade era tanta que esquecia aquela dor que, há meses, não o deixava.
O calor começava a apertar e na testa começavam a aparecer gotículas de suor.
-------
No outro dia sentiu um peso no peito. Era uma sensação estranha. Parecia que estava oco, e uma dor aguda penetrava deixando uma sensação de desconforto. Respirou fundo tentando meter nos pulmões o ar que lhe parecia faltar. Tudo era estranho, a sua volta parecia que uma névoa se ia desprendendo. Sentia a cabeça a andar à volta.
-------
Era uma coisa esquisita, era como uma agonia. A dor não era muito forte mas o desconforto era enorme. O peito parecia que transportava toda a angústia do mundo.
Queria respirar mas o ar entrava com dificuldade. A cabeça zumbia como se de repente estivesse cercada de abelhas.
------
Olhou em volta e desfilou as más recordações da infância que não teve. Via-se enfiado num calções coçados e presos por um suspensório de pano que lhe cruzada o abaulado peito, coberto com uma bonita camisa feita com o pano velho de outra. A sacola era de serapilheira parda e os livros que transportava eram as sobras de um menino que um dia os vendeu no alfarrabista. A pedra onde fazia as contas, e que bem as sabia fazer, era a angústia constante. Por tudo e por nada se partia e iria sentir no corpo e nas faces o desabar do mundo.
Não podia olhar os próprios olhos mas dizem que apesar de tudo deixavam transparecer ladinice, esperteza e uma vontade enorme de enfrentar a vida.
--------
Os anos passavam tão rápido que nem deu porque estava a crescer. A vida estava marcada em todos os poros do corpo franzino. O trabalho era monótono, sem emoções, sem realização. Era… enfim, então Sr. Dr., como estão os meninos? Meninos, dois abortos feios como o pai, convencidos como toda a família e inúteis como todos os que os rodeavam e enchiam de mimos e prazer.
------------
Manhã cedo com o frio a entrar pela escassa roupa, era esperar pelo eléctrico operário, sempre era mais barato. As senhoras, poucas, abafavam o frio nos belos e felpudos casacos e alguns homens aconchegavam o gordo pescoço no sobretudo de lã de camelo.
Um dia, talvez, ainda tivesse um. Mas seria difícil porque nos familiares não havia nenhum que um dia pudesse ser transformado.
--------------
Houve um tempo em que pareceu que o tempo tinha parado. Foram umas férias feitas de emoções. Era como que o alvo de todas as atenções. Passaram tão rápido que ainda hoje sente na boca a doçura de tão bons momentos. Os dias eram longos e preenchidos de todas as brincadeiras. De repente era o herói de uma qualquer banda desenhada.
Corria pelos campos e sentia no rosto a brisa da liberdade. À noite entre as pernas do avô, aconchegava a cabeça nos carinhos desconhecidos.
----------------
Um dia numa enorme fila quis ver como a morte leva os poderosos. A pouco e pouco avançava. Muito devagar, tão devagar que perecia que a própria fila não tinha principio.
Mas, depois de horas, lá conseguiu ver aquela fraca figura estendida num esquife. O ar mais sereno que um morto pode ter. As pessoas passavam devagar. Algumas inventavam umas lágrimas e como carpideiras faziam a sua boa acção para que todos pensassem que era um desgosto sentido. Ele passou sereno, deslumbrado com tudo o que via. Pensava, porque conseguem chorar, quando todos sabiam que era apenas o medo que os levava aquele espectáculo. Mas, o presidente estava ali estendido, e um novo já se perfilava para continuar tudo aquilo que aquele não tinha feito. Iria de certo cortar muitas fitas, inaugurar o que os outros fizessem e receber os aplausos pelos discursos gastos e sem nada de novo.
--------------------------
Lá fora a vida continuava naquele ritmo a que já nos habituamos. Na jardim da Estrela as criadas passeavam nos trajes domingueiros sempre na mira de um militar garboso que afoitamente desse um piropo.
----------------------------------
A dor continuava mas não queria dizer nada. Pensando que de certo já ia passar. O relógio que lhe trabalhava nos ouvidos deixava um enorme desconforto.
O chilrear dos pássaros entrava pelas janelas e agudizavam os padecimentos. A cabeça não parava e de certo iria estoirar.
---------------------
Estendeu o corpo magro no sofá. Fechou os olhos e esperou que o sono lhe desse algum alivio, que o libertasse de todo o mau estar e angustia que há muito se apoderara dele.
Ficou tão leve que se sentiu a pairar, a dor passou e o mau estar foi como se nunca tivesse existido.
--------------------
Tão estranho ver a sala de cima, a mesa com os restos de uma refeição inacabada, as cadeiras dispostas de forma simétrica, a televisão onde o pó brilhava no escuro do ecrã, o sofá com um corpo enroscado numa posição desconfortável.
Parecia, mesmo, ser ele que ali estava estendido.
O mesmo rosto amarelento e encovado, as mãos engelhadas, juntas, como numa última prece.
Tudo tão irreal e tão confuso.
Ao longe a música e a luz intensa pareciam estar a chamar, a dor desaparecera, os ouvidos já não chiavam no cérebro. Nunca se sentira tão bem.
Foi entrando devagar, bem devagar………
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
16 comentários:
...reminiscências,
quem não as tem?
belissimo post!
bjokas, moço!
Bom dia,Manuel!!
Estou aqui tentando comentar com os olhos cheios de lágrima...seu texto me envolveu completamente, entrei na história e acompanhei passo a posso o personagem, sofri por ele, mas, fiquei feliz quando ele enfim ficou livre.Acredito em algo mais...e penso que agora ele terá a vida que merece...posso sonhar,não posso?
Maravilhoso meu amigo!!!
Beijos pra ti!
Bom início de semana!
Querido Amigo..
Hoje você é um dos homenageados no meu blog representando Portugal..
Na lateral do blog tem um presente de homenageado para você ,,linda semana beijos meus,,Evanir..
Quando isto acontece... é mau sinal.
Triste mas real. Gostei.
Beijo
Manuel
Eu vivi esse menino e estou vivendo (ainda) esse idoso.
É tudo tão real como se passasse diante dos olhos, como se de um filme se tratasse.
Libertou-se. Sofrer não é fácil.
Reverencio todo o teu texto. Presto homenagem a ti, Homem que o escreveu.
Abraços
SOL da Esteva
http://acordarsonhando.blogspot.com/
Querido eu me perco em seu texto, as vezes me sinto entrando dentro do personagem e sentindo o que ele sente,Tamanha a perfeição com que o descreves e descreves seu sentimento. parabens querido.beijos achocolatados
GOSTEI de ler.
Sempre apaixonante...
Manuel
Obrigada pelo teu cuidado.
Está tudo bem comigo mas tenho andado cansada e a fazer exames médicos mas nada que preocupe eu...sou como o imbondeiro...
Agora meu amigo um beijo e viva o Sportingggggggg
Amigo...
É assim que eu quero morrer...
Como meu último ato de liberdade...
Boa continuação de semana!
Beijinhos carinhosos.
Brasil
°º♫
°º✿
º° ✿♥ ♫° ·.
Um texto que nos enternece,com uma narrativa perfeitamente eficaz. Um abraço meu amigo!
Hoje vim ouvira musica que da outra cvez não tinha ouvido, por falta de tempo. É linda amigo. Parabens pelo bom gosto. Beijos achocolatados
Bom dia,Manuel!!
Tudo bem por aí? Espero que sim...
Beijos pra ti!!
**Lendo novamente, confirmei...o texto teve o mesmo efeito em mim!
ah, quisera eu morrer assim, de uma vez só, sem doença, só a lembrar mesu momentos, e ainda assim, os escolhidos.
manuel...... vc é ótimo mesmo
Oi,Manuel!
Linda a música!
Ler-te é entrar no personagem, viver sua história, sentir o que ele sente, isso é uma sensação tão emocionante, por isso sou apaixonada pelo mundo das letras.
Beijosss
Livre, enfim.
A cada frase uma emoção. Vc escreve muito bem um texto e consegue nos envolver até o final. Parabéns pela realidade impressionante. Montão de bjs e abraços
Manuel...Boa noite!
Sempre me emociono ao te ler..tens o dom!
bjos...
Enviar um comentário