A noite estava chuvosa e o vento fustigava com violência as frágeis tábuas das janelas.
Maria Emília abriu timidamente o postigo, o vento frio enregelou-lhe a face, tentou lobrigar ao longo da rua a imagem do seu Pedro.
Saiu ainda a manhã não tinha raiado e já a noite há muito tinha tomado conta do que restava do dia e, ele não tinha regressado, o que a estava a preocupar.
A rua continuava deserta, apenas uma réstia da luz, do candeeiro da esquina, deixava ver a chuva intensa que continuava a cair abundantemente.
Fechou o postigo suavemente e apertou o ferrolho.
Ela já tinha notado que o marido andava estranho, mas quando tentava saber o que se passava ele fugia à questão, negando haver algo que o preocupasse.
Maria Emília não ficava convencida e só tinha receio que, Pedro, andasse metido nessas coisas da política.
Jantou, ela e o filho, e guardou o do marido, no forno.
********
Acordou com o barulho da chuva nas telhas, o vento tinha aumentado de intensidade e parecia assobiar por entre as frinchas da porta.
O lugar ao seu lado continuava vazio, Pedro não voltou nessa noite a casa e Maria Emília começou a ficar preocupada, não é que não estivesse habituada a situações idênticas, mas nas outras vezes ele avisava da possibilidade disso vir a acontecer.
Acordou o Afonso e pensou como ia levar o rapaz à escola com este tempo, mas já que não tinha a carrinha, só lhe restava agasalhar bem a criança e agarrada às paredes meter-se ao caminho.
********
Passou o dia numa agonia, queria concentrar-se no trabalho mas não conseguia, a linha ficava-lhe embaraçada no tecido e o dedal não tinha força para fazer avançar a agulha.
O tempo foi amainando e quando foi buscar o Afonso a chuva tinha desaparecido e, o céu tinha uma tonalidade que augurava uma melhoria do tempo.
A noite não tardava e notícias do Pedro nenhumas, a angústia começava a tomar posse da Maria Emília, o medo começava a tolher-lhe o pensamento e as dúvidas não a deixavam raciocinar.
Pensou ir ao posto da guarda, mas não sabia bem se o marido ia aprovar e, se depois fosse uma casualidade o atraso!
Ia esperar esta noite e se amanhã á hora de levar o menino à escola, o pai ainda não tivesse voltado, ia falar com o padre Isidoro e pedir-lhe conselho, pois o padre e o Pedro eram amigos de infância.
A noite foi de uma espertina total, não conseguiu pregar olho durante todas as santas horas, os mais pequenos ruídos pareciam-lhe os passos do seu homem.
Levantou-se aos tropeções, olheiras enormes e a cabeça numa confusão que não a deixavam raciocinar.
Olhou-se ao espelho e pensou que se o seu amor a visse agora, decerto que ficava sem querer voltar a casa.
Acabou por sorrir.
Retocou a cara e amenizou o inchaço dos olhos antes de acordar o Afonso, que não estava com muita vontade em deixar os lençóis, mas com umas cócegas e muitos beijinhos lá se foi levantando.
Enquanto tomava o pequeno-almoço, o menino, perguntou pelo pai e ela ficou um pouco embaraçada, mas foi dizendo que foi trabalhar, que não tardava estava de volta.
Entregou o petiz à dona Irene, a professora, e abalou a caminho da igreja para falar com o padre Isidoro.
Teve que esperar porque estava na hora das confissões e, a julgar pela fila das mulheres, devia haver muitos pecados nesta terra.
Esperou, quase, uma hora mas finalmente o padre despachou a função de purificar aquelas almas e
acenou à Maria Emília para que se aproximasse.
acenou à Maria Emília para que se aproximasse.
Foi uma conversa informal, entre duas pessoas que se conhecem, um pedido de ajuda para uma preocupação.
O padre Isidoro coçou o queixo, passou a mão pela tonsura em sinal de reflexão e de preocupação pelo que estava a escutar.
Não era normal o seu amigo Pedro deixar assim o filho e a mulher, algo de grave devia ter acontecido, amanhã bem cedo Iria falar com o responsável da polícia na terra.
Maria Emília continuou apoquentada mas, parece, que a preocupação dividida era mais fácil de suportar.
********
O padre fez tudo o que estava ao seu alcance, contactou as autoridades, rezou com muita fé e,
no sermão de Domingo, apelou aos fiéis para estarem atentos a todos os indícios que pudessem
fornecer alguma pista.
no sermão de Domingo, apelou aos fiéis para estarem atentos a todos os indícios que pudessem
fornecer alguma pista.
O padre Isidoro era um homem um pouco estranho, temente a Deus mas com umas ideias que já lhe tinham causado alguns dissabores, pois os poderes instituídos não aceitavam que, nas suas prédicas, clamasse pela igualdade entre os homens e falasse de coisas como a das classes sociais, o que lhe valeu ser chamado ao posto e a um interrogatório onde foi acusado de incitar o povo a práticas subversivas. Valeu-lhe a intervenção do senhor Bispo e uma reprimenda que o deixou um pouco céptico, sobre a posição da igreja perante as desigualdades de que enfermava a nossa sociedade.
Mas tinha feito o juramento de servir a santa Madre Igreja e não podia fugir aos seus votos.
********
Um mês vai passado, muitos pensam que Pedro foi atrás de umas saias, outros estão convencidos que deve ter aderido a um partido político na clandestinidade e alguns, mais pessimistas, julgam que Pedro já não faz parte dos vivos.
*******
Pedro Coruja, hoje, levantou-se mais cedo do que era costume.
Deu um ténue beijo na mulher que dormia profundamente, espreitou o filho numa paz de anjo e enfrentou a borrasca que tão intensamente fustigava a povoação.
A carrinha teve alguma relutância em pegar à primeira mas, com alguma persistência, acabou por dar sinal de vida.
Avançou até ao final da rua e seguiu pelo caminho de terra batida que o levava à estrada, sem ter que passar pelas ruas da aldeia.
Andou alguns quilómetros indiferente aos buracos que faziam saltar a geringonça, embalada pelas fortes rajadas e pela chuva que mal deixava descortinar o enlameado caminho.
Levava a cabeça toldada pelos pensamentos e um aperto no peito, por ter que deixar desta forma Afonso e a sua Maria Emília, mas tinha que ser, foram essas as ordens que lhe haviam monitorizado.
A chuva parecia querer diminuir e uma réstia de dia estava a atenuar a escuridão, só o vento não dava mostra de abrandar e o carro continuava num balouçar desconfortável.
Faltavam poucos quilómetros para chegar, depois da próxima curva teria que entrar numa vereda que o levaria ao alto dos Quatro Caminhos, local para o qual o programaram para o encontro.
******
Tudo começou no dia em que foi atordoado por aquela luz que o cegou e pelo zunido que não conseguia descrever. Quando os olhos se habituaram ao brilho viu-se rodeado por uma infinidade de figuras estranhas que pareciam saídas de um filme de ficção, comandadas por três vultos, autênticos truões, que chispando reflexos multicoloridos e diziam com voz metálica e destorcida:
- Fostes o escolhido, é a ti que vamos purificar.
De repente sentiu-se engolido num remoinho, nada sentia a não ser com se o corpo se estivesse a desprender dos sentidos e da mente.
Sentia-se letárgico, estonteado, numa bebedeira de sons e cores que não sabia descodificar.
Os seres esquisitos pululavam à sua volta, mexiam, ligavam eléctrodos e arreganhavam a fenda por onde emitiam aqueles sons esquisitos, parecidos com uns estranhos sorrisos de bobos.
Quando o deixaram não era o mesmo, estava programado, ia fazer o que lhe introduziram e cumprir sem conhecer porque e muito menos sem explicação.
Sabia que tinha que estar num determinado dia, num dado lugar, numa certa hora.
Deixou de ter vontade. Não era ainda um deles, mas sabia ia fazer o que queriam e parece que, agora, até o desejava.
*****
Estava a chegar ao lugar que o chip que, algures no seu cérebro, lhe ia dando as instruções.
A chuva secou como por encanto, o vento tornou-se numa brisa ténue e quente, o Sol brilhava nuns tons avermelhados.
Já estava a ver máquina que os trazia, uma espécie de aparelho sugador, reluzente e cheio de tubos, mangueiras e objectos chupadores.
Parou a carrinha que, tal como a abóbora da gata borralheira, se transformou num topo de gama, digno de um alto dignitário de quaisquer pais da CEE.
Foi apanhado, novamente, no remoinho mas não sentiu nada de especial porque adormeceu profundamente.
Quando acordou, não sabia quanto tempo esteve ausente, abriu os olhos e gostou do novo aspecto, mais polido, sem emoções, sorriso postiço na ponta dos lábios e, tal como a máquina, com mangueiras sugadoras, a que iria designar como ministros.
Aqueles a que todos chamavam chefes eram mais altos, tinham uma espécie de olhos azuis, nada faziam apenas olhavam e ditavam ordens.
Quando falaram, o agora doutor Pedro, percebia perfeitamente aquela língua como se sempre a tivesse falado:
-Agora és um troikano, um de nossos, todos te vão chamar senhor doutor Pedro Coruja, vais ser primeiro-ministro de um país. O teu dever è sacar tudo o que poderes, põe essa cambada a pedir, porque esta nave precisa de muito alimento.
O Doutor P.C. foi eleito primeiro-ministro de uma pobre nação que está agora a ser transformado num povo, ainda, mais miserável.
*******
A aldeia está triste, restam os velhos e algumas, poucas, crianças.
Os outros, incluindo os dois professores, emigraram aconselhados pelos ilustres que governam este país.
Emília ainda tem esperança, quem sabe o seu Pedro não volta, como o outro, numa manhã de nevoeiro!
Quem sabe se um pé da cadeira, do PM, não quebra como uma quebrou há muitos anos!
Quem sabe!
Tenhamos esperança.