domingo, 18 de novembro de 2012

É o segredo da casa amarela







Alguns dos meus amigos, que por aqui passam, perguntaram:
-Afinal qual era o segredo da Casa Amarela?
Confesso que também não sabia mas, por vós, fui inventar.




 Estávamos no ano de 1820, as revoluções liberais e nacionalistas tinham tomado conta da Europa, Portugal, tal com hoje, atravessava um período de grandes convulsões com o desemprego, o fecho das fábricas, a revolta do proletariado rural e o descontentamento do proletariado urbano, custo de vida, insatisfação da burguesia que se via excluída do poder político e atingida pela grave crise económica.

Dom Fagundes de Aragão, aquando da aprovação da constituição de 1822, revoltou-se quanto à transformação da monarquia absoluta em monarquia constitucional, arreigado aos principias de classes sociais dominantes, renegou o Rei João VI e pegando na família e criadagem foi-se refugiar nas suas terras de Barroso.

Esse lugar tornou-se num local de reuniões e conspirações que começaram a causar mau estar entre os absolutistas que resolveram acabar com o mal pela raiz.

Reuniram-se num grupo e avançaram contra o conspirador, encontraram-se no Alto do Trigueiro, largo num terreiro da propriedade, onde se deu uma verdadeira chacina, da família Aragão apenas restaram os mais novos que se tinham escondido numa capela em ruínas.

Os vencedores partiram na euforia da vitória, tendo deixado, entre os seus e os conspiradores, duas dezenas de corpos no campo da batalha, entre eles Dom Fagundes de Aragão que num estertor final, barba vermelha de sangue, gritou:

-Eu ia construir aqui uma casa amarela da cor das armas do nosso brasão, não consegui mas um dos que me sucederem irá dar continuação ao meu desejo.
Nós o que aqui estamos e todos os que aqui, forem deixando esta vida, vão permanecer neste lugar que a crueldade dos homens amaldiçoou.
Mas fica o segredo, um dia um Aragão a quem Deus vai dar a beleza que a todos os outros negou, aparecerá do desconhecido e com a força do seu sorriso irá libertar, todos estes que vivem nas trevas, com o ribombar do trovão, pela violência do raio e pela intensidade do fogo purificador.

Fechou os olhos e, tal como os restantes, desapareceu nas trevas, como se jamais ali, antes, tivesse estado.
Nunca encontraram os corpos.

Os mais novos, que escaparam à chacina, eram 14 crianças todas da família de Dom Fagundes. Dois filhos e duas filhas, dois sobrinhos, três sobrinhas, um irmão mais novo que sofria de um distúrbio mental, quatro primos e a Dona Juliana uma aia responsável por todos, principalmente, os mais novos.

Passaram a noite no refugio e no da seguinte procuraram, vasculharam e nem um vestígio dos parentes mais velhos.

A aia foi sossegando como lhe parecia melhor:

-Se calhar Sua Majestade mandou-os para Lisboa, um dia vão aparecer por ai.

Ela sabia que não era provável, pois o sangue que ensopava o terreiro do jardim, no alto do trigueiro, era um mau auguro, decerto mataram-nos a todos e levaram os corpos para não deixarem vestígios da barbárie.


*******

A povoação estava surpreendida, um grupo de crianças, a mais velha com 16 anos, um meio demente e uma criada mantinham a quinta e tinham a maior e melhor produção de toda região.

Ninguém sabia como e eles, nunca disseram, mas também não o sabiam, que as coisas apareciam feitas, as terras lavradas, as árvores podadas, as sementes lançadas à terra, as colheitas feitas e em ordem para as diversas distribuições.

-Era um milagre, dizia Juliana, grande devota de S. Bartolomeu padroeiro dos agricultores.

No íntimo ela pensava em algo mais místico, mas ficava com o pensamento dentro da simplicidade do seu raciocino.

Todas as mulheres foram esquecidas, pelo Ser Supremo, no dia em que distribuiu a formosura.

A mais velha, Raimunda, no dia em que completou 21 anos ao acordar teve um dos maiores sustos da sua vida. Despertou e sentado no banco junto à sua cama estava o pai.

Primeiro ficou assustada, depois recobrou e com alegria exclamou:

-Senhor meu pai, sempre tive esperança que ias voltar e, melhor ainda hoje, dia do meu aniversario. A melhor prenda que podia receber. Onde estivestes, todos estes anos, escondido?

Dom Fagundes, barbas manchadas, olhos sem expressão apenas murmurou numa voz cava:

-Ando no limbo, na indefinição, no lugar onde ninguém quer estar. Deus não te fez bela mas deu-te inteligência e bondade, eu não voltei porque sempre estive aqui, esperando pelo dia em que podia passar o segredo que há séculos amaldiçoa a nossa família.
Tens que o guardar e tens que o transmitir quando chegar a tua hora.

-Mas que segredo é esse senhor meu pai? Gritou Raimunda.

-É simples mulher, multiplicai-vos até que uma mulher bela apareça na nossa família. Quando ela surgir virá aqui, para dar descanso ao que esperam a salvação.


De repente fez-se noite, o dia foi coberto por uma negrura assustadora, a terra tremeu e tremendos urros ecoaram no espaço.

Quando tudo voltou a normalidade, o homem tinha desaparecido e Raimunda jazia na cama, parecia morta. Mas não, estava apenas numa espécie de letargia.

Quando espertou sabia que, agora, era a guardiã de um segredo que não tinha percebido muito bem.

*****

 Muitos anos se passaram, a monarquia caiu e os carbonários tentaram tomar conta da casa dos fidalgos. Foi um dos seus maiores erros, de todos os entraram na propriedade nenhum voltou a sair, foram tragados por um buraco negro que de repente se abriu e os engoliu.

Com o andar dos tempos, as convulsões sociais foram acalmando o espírito das pessoas e, os habitantes do Solar, começaram a ser considerados como fazendo parte daquela comunidade formada por pessoas que viviam da agricultura da pastorícia.

Já poucos restavam. Os casamentos, quase todos entre primos, que deram origem a uma descendência enfraquecida que facilmente ia desaparecendo tisicas, engolidas na peste cinzenta, tão vulgar na época.

*******

Foi por esse período que o nosso já conhecido, Doutor Alcides de Aragão, mandou erigir a casa Amarela no terreiro. Seria o seu refugio, continuava junto da família mas tinha um local para os seus livros, para a escrita e para receber, fora dos olhares curiosos, a Zezinha moça bonita de peito farto e ancas roliças que trazia embeiçado o nosso intelectual, que além de doidamente perdido pela sua Zezé, tinha a esperança que ela lhe desse uma filha linda, como a mãe, que fosse a força libertadora da maldição desta família.

Não se pode condenar a Zezinha, Deus sabe que ela tentou e que a terra era fértil mas a semente, essa, já era muito má.

Na velha casa continuavam apenas as duas irmãs Dona Catarina a quem, dom Alcides, deu conta do segredo e do receio de nunca conseguirem dar aos que partiram a tranquilidade de que tanto necessitavam.
Ela já tinha passado do prazo e ele apenas tinha força de vontade, o resto estava apagado.

A mais nova Adelaide era, como diziam as irmãs, uma songamonga que nem jeito tinha para arranjar um homem, por mais reles e pateta que fosse, desde que tivesse alguma beleza para transmitir a uma filha.

O desalento ia, aos poucos, tomando conta da família e nas noites mais escuras, já pressentiam alguma agitação nas sombras da casa, podia ser apenas impressão, mas Alcides tinha receio que o desassossego dos seus entes queridos os fosse atormentar.

****

Foi numa tarde de Agosto, o calor era insuportável e Catarina chamou a irmã para ir encher uma infusa, de água fresca, à fonte.

Chamou e nada de Adelaide. Onde raio se ter metido a rapariga, se andava ali todo dia numa total pasmaceira?

Chamou o irmão. Correram toda a casa principal e mais a casa Amarela, espreitaram a adega, o curral e até o chiqueiro e nada de Adelaide.

Os cães continuavam num total sossego, por isso nada de estranhos pelas redondezas.

Alcides desceu ao povoado, ia avisar a guarda.
No caminho encontrou o mestre Zacarias, que estranhou a ligeireza e o ar ofegante do fidalgo e, não sustendo a curiosidade perguntou:

-Onde o leva essa pressa toda?

Alcides sem aligeirar os passos, respondeu:

-Vou às autoridades, a minha irmã Adelaide desapareceu, não sabemos dela.

O mestre, também lhe chamavam engenheiro, embora nunca tenha ido escola, mas era ele quem arranjava os engenhos que faziam os moinhos girar, descansou o homem:

-Escusa de ir com essa urgência toda porque a senhora dona Adelaide não tinha ar de desaparecida, muito pelo contrário, ia muito feliz e contente agarrada ao braço do Senhor Esteves a caminho do carro.
Sabe quem é o senhor Esteves? O caixeiro-viajante que aparece por ai quase todos os meses?

Alcides, nem se despediu do mestre Zacarias, arrepiou caminho e voltou para a quinta.

Entrou esbaforido, o suor escorria-lhe pelo rosto abaixo e os bofes quase saltando-lhes pela boca, respirou fundo antes de dizer:
-Catarina a partir de hoje somos, só nós os dois e os nossos mortos, que povoam estas terras.

-Mas, balbuciou a irmã, o que é feito de Adelaide?

Os olhos do homem chisparam, ficou com um ar de apoplexia, vermelho, transpirando ódio.

-Nunca, mas mesmo nunca mais, esse nome é pronunciado nesta casa, foi como se tivesse morrido. Na nossa família, que vem desde o século XVIII, nunca houve rameiras e não é agora que essa dissoluta vem denegrir a nossa linhagem.
Esquece o nome, para nós desde hoje, nunca existiu.

*****

Naquela tarde de inverno em que uma tão estranha procissão subia a ladeira que os levava à Casa Amarela, quando Sabrina apontou e disse:

-É esta a minha herança?

A maldição quebrou perante a dádiva de Deus em ter dado, finalmente, uma mulher bela à família Aragão.


Hoje, graças a generosidade de todo o povo, no lugar onde um dia existiu a casa Amarela, foi inaugurada uma capela em honra de S. Bartolomeu.





 







 

23 comentários:

Laços e Rendas de Nós disse...


MUITO BEM e MUITO BOM!

Parabéns, Manuel! É um prazer vir aqui.

Beijinho

Laura

Anónimo disse...

Impressionante sua criatividade para os detalhes, Manuel.Quase se vê os acontecimentos da história.Excelente!


Beijinhos, querido e uma linda semana.

chica disse...

Tu és demais mesmo.E não é que foste nos dar a resposta? Adorei! Parabéns! abração,chica

Projeto de Deus 👏 disse...

Oi Manuel!

Que historia heimmm?

Até que enfim nasceu uma bela mulher, e assim acabou a maldição e o segredo da casa amarela.

Muita criatividade a sua.


bjos

Flor de Lótus disse...

Muito bom, Manoel!Nossa quanta criatividade!!
Uma ótima semana!
Beijosss

Vivian disse...

Ah!Meu amigo,Manuel!
É impossível ficar decepcionada!!!Fiquei com os olhos marejados, profundamente comovida,tanto pelo destino trágico dos personagens,como pelo dom fantástico do escritor,por alinhavar tão esta história!!!! Levaste-me por caminhos históricos, com uma riqueza de personagens e com um tom misterioso(por vezes arrepiante!),que me deixou fascinada!!!OBRIGADA!!
*Vim correndo!rs Agora volto para meus trabalhos acadêmicos, já estou com a maioria deles adiantados! Assim fico mais tranquila para pensar nas provas, que começam na segunda semana de dezembro!O tempo voa!rs
Beijos e meu carinho, cheio de admiração!

Evanir disse...

Meu Amigo.
Hoje você conseguiu fazer -me chegar as lagrimas .
Fiquei muito emocionada em ver seu recado no meu blog ,pois só amigos de verdade percebe nossa ausência.
E sua postagem é comovente meu amigo.
Querido,realmente estou tentando voltar ao normal esta dificil tenho que fazer uma cirurgia a algum tempo
Meu plano de saúde esta a me enrolar a um ano .
O caso esta se agravando é por isso que estou tão desanimada .
A cada dia minha situação se complicando só me resta entrar na justiça ante que seja tarde demais.
Hoje estou feliz com meu povo de Portuga recebi um livro da Lili Laranjo e um presente da Isa.
Eu amo o povo de Portugal para mim é uma continuação do Brasil.
Obrigada por não esquecer de mim estou feliz em morar no seu coração beijos mil,Evanir.

Smareis disse...

Manuel!
Que conto maravilhoso.
Que dádiva maravilhosa o nascimento de uma mulher bela a família Aragão para quebrar a maldição...
Grande abraço meu amigo.
Ótima semana!

Anónimo disse...

Olá Manuel! Que história. Gostei imenso. Terei que me pôr a par de mais desenvolvimentos em baixo, mas está simplesmente fantástico muito emocional, bem escrito. Espectacular mesmo. Peço perdão de andar algo distante mas na verdade estive bastante doente. Agora já vou recuperando e prometo ser mais assídua e uma amiga melhor. Um beijinho Manuel. Boa semana

rosa-branca disse...

Amigo Manuel o amigo é único. Então não é que arranjou um final maravilhoso. A minha avó sempre tinha razão. Cada qual é para o que nasce e o amigo nasceu para nos embriagar com a sua escrita. Amei de verdade. Beijos com carinho

Janita disse...

Diferente das histórias que habitualmente leio aqui, neste espaço literário, onde a imaginação não tem limites!
A beleza física quebrará maldições?
Creio que em certos casos pode é ser uma maldição...:)
O vídeo do finado Michael vem mesmo a calhar.
Um beijo, Manuel.

Projeto de Deus 👏 disse...

Olá Manuel!
Te visitando!

Deixo um bjo com carinho.

BlueShell disse...

mais um texto sublime que mistura prosa poética com a realidade. Parabéns, meu querido.

Hoje estou triste.

BlueShell disse...

...Li isto logo de manhã:

http://maisumaaula.blogspot.pt/2012/11/mais-dados-da-ocde-agora-idade-dos.html

eis porquê.

Fiz da minha vida uma total entrega ao ensino, total dedicação aos alunos,(nunca tive filhos) passei por reformas, novas reformas...mas sempre sem uma queixa.

Passei pelo cancro do meu marido sem nunca prejudicar os meus alunos
.
Hoje, cansada...com artroses, tendinites,noites mal dormidas (pelas dores e pela apneia...com máscara por causa das "pernas inquietas") e a ter de estudar para dar uma disciplina para a qual nunca tive qualquer tipo de formação, a ter de ver trabalhos (que cada vez demoram mais a ver...pois que os olhos já não ajudam, o cérebro também demora mais a reter a informação)... a arrastar-me para dar aulas....desabafei , há dias, que estava mortinha pela reforma...se ma dessem...

Então li...e os meus olhos se encheram de lágrimas...de dor...e de revolta, Manuel.

SOL da Esteva disse...

Costuma dizer-se que o que é belo, nem sempre tem virtude. Aqui, a "guia" era, precisamente, o encontro do belo para libertação do Sítio e das Gentes.
Uma reformulação a completar mais uma História que tem paralelos com o que mos rodeia.
Não estaremos, também, numa casa amarela?


Abraços


SOL

Evanir disse...

Boa Noite Amigo Querido.
Hoje encontrei um grande amigo aqui nos seus comentários.
O Sol.
Um amigo a quem tenho profundo carinho assim como tenho por ti.
Eu fiquei feliz quando vi vc preocupado no mu blog.
Amigo,acredite vocês são um pedaço de mim .
O fato de estar do outro lado da tela para mim não existe diferença eu acredito no carinho dos amigos.
Quantas vezes são vcs a fazer meus dias melhor e menos triste.
Um feliz final de semana beijos na sua alma,Evanir.

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Meu querido amigo

Não deixas de me surpreender...adorei o resto da estória, tens a imaginação à flor da palavra.

Um beijinho com carinho
Sonhadora

Unknown disse...

Bom sábado pra vc, com muito carinho
deixo meus parabéns por mais esse post lindo...
A amizade faz a gente muito alegre por
ter amigos que gratifica nosso dia
E ter vc na minha lista de presente
eu fico eternamente feliz
Abraços com carinho
Bjuss
Rita!!!

Anónimo disse...

Olá, Manuel. Passei para deixar um beijinho saber se está bem? Bom fim de semana. Abraço!

Manuel disse...

Magia da Inês deixou um novo comentário na sua mensagem "É o segredo da casa amarela":

♡¸.•°
Olá, amigo!
Mais uma história linda e inspirada!

Bom fim de semana!
Beijinhos do Brasil.

✿ °•.¸♡¸.•°✿

Publicar

Publicada por Magia da Inês em navoltadotempo a 24 de Novembro de 2012 05:22

Manuel disse...

Magia da Inês deixou um novo comentário na sua mensagem "É o segredo da casa amarela":

♡¸.•°
Olá, amigo!
Mais uma história linda e inspirada!

Bom fim de semana!
Beijinhos do Brasil.

✿ °•.¸♡¸.•°✿

Publicar

Publicada por Magia da Inês em navoltadotempo a 24 de Novembro de 2012 05:22

Lúcia Bezerra de Paiva disse...

E lá fui eu, ler o capítulo anterior.
Mas nem precisava, já que a criatividade anda solta...
Cronista, à toda prova, dos muito, muito bons!

Abaixo, a Casa Amarela!
Viva, São Bartolomeu!
Beijos!

Sónia da Veiga disse...

Gostei deste segredo entregue com resposta! :-)

E ainda chamam às mulheres sexo fraco"... Se só com um sorriso ela destruiu uma casa inteira! ;-P

Beijinhos e continuação de boa semana!