quarta-feira, 30 de maio de 2012

Os corvos







Gostava de correr pelos campos por entre as marcelas, desviando-se das estevas como se fossem um labirinto. Pelo caminho ia apanhando alguma bolota que uma azinheira tivesse perdido.

Junto aos pegos fazia saltar as r
ãs que coaxavam, escondidas nos juncos, de papos dilatados em sinfonias de acasalamento.

Costumava fazer estas correrias com o seu amigo Armando, mas como ele estava com papeira, teve que vir sozinho. N
ão era a mesma coisa pois os dois faziam jogos que não dava para fazer só.

Estava muito quente e o Sol em círculos de calor obrigava-o a atar um len
ço na testa, seguro com o boné, para que o suor não lhe descesse até aos olhos.

Que pena o Armando estar com aquela da papeira, pois os dois decerto iam encontrar um cágado entocado nalguma fraga do ribeiro que brilhava com o reflexo do Sol.

Ia lavar e comer a ma
ça que apanhara, com autorização, na macieira do senhor Romão, depois ia agachar-se detrás da pedra grande, donde não era visto por quem se aproxima-se.

Tinha acabado de baixar a roupa quando estranhou o crocitar dos corvos debaixo do sobreiro velho, com os cal
ções a pearem-lhe as pernas espreitou e só teve tempo de se ajeitar e partir em louca correria a caminho da aldeia.

A vereda desaparecia em remoinhos de pó debaixo das alparcatas, onde ofegante e olhando quase apavorado para trás, Onofre, corria como se fosse perseguido por um c
ão raivoso.

Come
çou a respirar de alívio quando na curva do caminho avistou as primeiras casas. Parou e baixou o corpo para restabelecer a respiração, pois até lhe parecia que ia deitar os bofes pela boca.

Á porta do posto da GNR estava, de sentinela, o senhor Pica que quando o viu assim esbaforido, perguntou:

-Que te aconteceu rapaz?

Queria falar mas um nó na garganta parecia tolher as palavras, respirou fundo antes de exclamar:

-Senhor Pica tem que ir lá ver!

-Desembucha, tenho que ir lá ver o quê?

Limpou a testa com o len
ço, acalmou e então contou tudo:

-Sabe onde ficam os pegos da ribeira na herdade do senhor Faria?

Pois é lá que está o homem, debaixo do sobreiro velho, daquele que está rachado com o raio da trovoada, pois na sombra está o homem morto e os corvos est
ão a depenicar-lhe os olhos.

Vim a fugir n
ão parei nunca, pois parecia que o homem vinha atrás de mim. Nunca tive tanto medo, juro que nunca mais vou para aqueles lados!

-Vais… vais, disse o guarda, e vais agora mesmo mostrar onde fica esse sítio.

(Estou a pensar continuar esta odisseia, vou tentar a parte II)






quarta-feira, 23 de maio de 2012

Pas de Deux






Era um amor feito de coisas velhas, estranho, desbotado pelo tempo, mas era um amor, embora impregnado de mistérios e camuflado em beijos amorfos e sentimentos que há muito tinham morrido.

Nem sempre foi assim, pois começou numa tarde amena de Primavera ao som de um slow que obrigava a cingir os corpos em passos vagarosos e sensuais numa "salle de danse" em Paris.

Depois foi o encanto de tardes de mãos dadas, noites intensas em plenitude de corpos fundidos em arroubos de desejos incontidos.

Tardes no Melody, ao som de uma imitação de Jaque Brell, no lamento de um fastidioso “Ne Me Quites Pas”, sorvendo em pequenos goles um intragável Bacardi como se fosse a melhor bebida do mundo. Ela, na saia travada, ajeitava as pernas escondendo dos olhares dos homens, que à socapa, iam mirando as coxas firmes e generosamente expostas. Ele, intelectual vanguardista, citava frequentemente Cesar Vallejo como se nas palavras conseguisse arranjar remédio para a falsa dialética com que se arvorava no caminho da cultura.

Casaram numa manhã de chuva, no Consulado, perante a autoridade e quatro acompanhantes, dois militantes de um partido ecologista, a Paulette empregada da pensão e o namorado, um português transmontano, dono de um pequeno bar.

Não houve lua-de-mel, não era necessária, pois já andavam há muito nesse enlevo.

********

Foram dois meses de encanto, longos passeios ao longo do rio que lavava as margens da cidade.

Os serões eram passados em tertúlias onde se discutiam “Les nouvelle vagues”, se bebiam Pastis e se recitavam versos de Neruda, Borges e Rimbaud. As gargalhadas confundiam-se com o cheiro do canábis que iam inalando até o entorpecimento tomar contas dos corpos e toldar os pensamentos. Matilde assistia, primeiro, na curiosidade da descoberta, dos falatórios que não percebia, dos versos que nada lhe diziam, das discussões pseudo-intelectuais sobre liberalizações, globalizações e outras coisas que não entendia. Depois foi o enjoo daquela bebida onde o sabor de anis lhe deixava um travo acre na garganta, o adocicado e enjoativo cheiro daquela maconha em que iam imbuindo a mente na procura de uma liberdade que os prendia.

As noites mágicas perderam a magia e passaram a ter a monotonia das processionárias.

*****


Deixou de acompanhar o marido, tinha náuseas e tédio dos velórios em que se tornaram as noites macambuzianas, das retóricas, dos cheiros e das palavras soletradas por desenraizados na procura de algo que nem eles sabiam bem o que.

Matilde começou por passar as noites só, depois com Paulette, ia até ao bar do transmontano. As pernas, na saia travada, continuavam a prender os olhares gulosos que em sorrisos as iam conquistando e, ela, começava a apreciar toda essa embasbacação.

Depois foi fácil, a troca de olhares, as conversas em redor de uma bebida, as mãos que se tocavam numa casualidade provocada, o sortilégio dos homens que se diziam sós e carentes.

Eram sortidas rápidas mas o suficiente para restabelecer  o equilíbrio e a estabilidade.

*****

Matilde e Balduíno continuam o seu amor.

Ele, durante o dia, dorme na ressaca do Pastis, do entorpecimento da erva e da interiorização das prédicas das noites “tertulianas”.

Ela, passeia pelas cosmopolitas ruas de Paris. 

À noite encontram-se no quarto da pensão, cruzam-se antes das suas missões.

Trocam um beijo cansado, amorfo e desbotado, um beijo do que resta do amor.

Eles continuam a amar-se, num amor estranho, desbotado pelo tempo.

É o seu amor.


quinta-feira, 17 de maio de 2012

A coisa







A tarde estava fria e os cães ladravam numa agitação pouco habitual.

Permanecia junto à lareira e o crepitar dos troncos não lhe deixavam vontade de ir, lá fora, espreitar o que mantinha os animais no desassossego. Talvez algum animal desconhecido, uma raposa ou, o mais certo, alguém que não é bem-vindo por estas bandas.

O melhor é vestir o capote, pôr um gorro na cabeça e agarrar a caçadeira, não vá o diabo tecer alguma surpresa.

Abriu uma nesga da porta e o ar gélido ia-lhe fazendo cair o nariz, olhou sem nada descortinar.

Saiu para o terreiro, os cães continuavam numa inquietação mas, quando o viram, quase por encanto se encolheram e soltaram uns pequenos ganidos de medo ou inquietação.

Olhou em redor e, de repente, viu um vulto que o deixou arrepiado, sentiu como que um choque que começou nos braços, desceu o corpo e lhe tolheu as pernas.

Era algo de irreal, vulto negro onde dois olhos, cor de fogo, chispavam. 

Apontou a arma e fez dois disparos para amedrontar, mas a estranha figura, abriu os braços e agitando as mangas da capa preta, desapareceu nos ares como se fosse um morcego.

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Voltou ao quente da lareira, não sem antes aferrolhar com muito cuidado todas as portas e janelas.

A noite não foi fácil, acordava com a sensação de medo e ao mesmo tempo tão irreal.

Levantou-se antes do Sol, os cães estavam calmos, preparou um bom pequeno-almoço antes de se por a caminho do povoado.

Tirou o Jeep do barracão que lhe servia de garagem, soltou o Boca-Negra que saltou contente para o lugar da frente e partiu a caminho da vila.

Estava frio, mas os primeiros raios de sol ia amenizando o ar.

Parou à porta da igreja, ia falar primeiro com o padre Esteves, contar o sucedido e tentar conhecer a opinião de uma autoridade nestas matérias, pois ninguém melhor do que um padre para assuntos do sobrenatural.

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Notou que estava a fazer esforço para não se rir, franziu a cara e colocou a mão na boca para se conter.

-Padre Esteves, não percebo a sua atitude, vim pedir ajuda e conselho e, afinal, ainda estou a ser alvo de chacota. Que se passa consigo?

O padre, tentou suster o riso, mas não conseguiu.

-Sabes Carmelo, és muito bom rapaz mas quando bebes desatinas como os outros. A bebida provoca alucinações, e foi o que aconteceu. És mesmo lixado, homens morcegos a voar nas tuas terras, tem cuidado senão ainda vais para o Guiness.

Ficou pior que estragado, era triste não ter provado um gole de qualquer bebida e estar a ser acusado de bêbedo. Por estas e por outras é que as pessoas se estão afastar da Igreja.

Ia voltar à quinta, carregar a arma com zagalotes e ficar de atalaia a ver se aquela assombração tinha coragem de aparecer. Metia-lhe dois tiros nos olhos, todos iam acreditar e o descanso voltava aquelas paragens.

Meteu-se no carro e voltou a casa, o Boca-Negra continuava encolhido, o que não era habitual.

Quando parou o carro ao portão ficou estarrecido, os outros cães, estavam esfolados e pendurados no varal onde costumava suspender o porco na matança. Espectáculo macabro, os bichos com as fauces escancaradas pareciam coisas do outro mundo.

Aqui o medo passou a fazer parte deste cenário, ficou de tal forma que nem conseguiu tirar os animais e abrir uma cova para os enterrar, a noite estava próxima e não queria arriscar, hoje o Boca-Negra ia dormir dentro de casa, coisa de que ele tanto gostava.

Encheu a lareira de grossos troncos, ia estar uma noite fria, trancou o ferrolho e, lembrando uns filmes que tinha visto, pendurou réstias de alhos nas portas e janelas e colocou o crucifixo, que estava no quarto, em lugar de destaque bem em frente à entrada.

A noite foi calma, não sentiu barulhos ou algo que lhe perturbasse o sossego do sono.

Acordou antes do Sol raiar, abriu a porta ao cão para o animal ir satisfazer as necessidades, mas o bicho olhava a abertura e nem sequer se aproximou, ficou de cauda encolhida fitando o dono.

Resolveu sair para ver se assim o Boca-Negra se decidia, mas a surpresa foi dele, os cadáveres tinham desaparecido, nada de cães.

Agora, pensou, é que o safado do padre vai julgar que eu ando mesmo a beber, se eu lhe contar que encontrei os cães naquele estado e de manhã foi como se nada tivesse acontecido, vai ser lindo. Vai ficar com aquele sorriso sacana que tão bem saber fazer e, eu, mesmo sendo amigo sou obrigado a dar- lhe um sopapo no focinho.

-Vida minha, que hei-de fazer? Desabafou.

Não tinha explicação, matar e esfolar três cães de grande porte não era tarefa fácil, além de os pendurar daquela forma, pesados como deviam ser, parecia de mais para uma só pessoa. Havia, no entanto, um pormenor que lhe fazia confusão, toda essa carnificina e nem um pingo de sangue se notava.

Aqui havia coisa, oh se havia! Agora tinha a certeza do que tinha visto. Era mesmo verdade, o diabo andava por ali.

Precisava da ajuda do padre, ele devia saber como lidar com mafarricos, mas o maricas, na última vez, ainda se riu e tratou-o como a um simples bebedolas.

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A coisa estava a ficar insuportável e o medo começava a tomar conta da situação. Nunca teve receio dos humanos e sempre soube resolver todos os problemas por mais difíceis que elas fossem mas, agora, era algo que não sabia controlar. Nunca tinha acreditado no sobrenatural mas neste momento começava a ter outra visão.

Pediu ajuda ao padre, decerto com maior formação nestes assuntos e, foi acusado de ter visões ou de ter bebido o que o magoou muito pois nunca foi homem para abusar.

Estava, quase em pânico, mas ia manter a calma e tentar uma solução que estava a germinar na cabeça.

Manhã cedo ia a caminho da cidade para comprar tudo o que precisava e, com sorte, o plano iria resultar, tinha a certeza.

Ia usar os conhecimentos que tinha adquirido na tropa e ia montar uma ratoeira à “Coisa” que o andava a atormentar.

Foi difícil comprar tudo o que precisava, teve mesmo que inventar a necessidade de destruir umas rochas na propriedade, mas lá conseguiu tudo o que necessitava.

Amanhã ia por mãos à obra, hoje já se estava a fazer tarde e a criatura podia aparecer, tinha que se trancar em casa, e proteger tudo com o crucifixo e os alhos.

 Ia dormir com a caçadeira nas mãos e ao mais pequeno ruido, não hesitava ia, mesmo, disparar.

*****

A noite foi tranquila, dormiu no sofá da sala com o Boca-Negra deitado aos seus pés.

Bem cedinho meteu mãos à obra, abriu buracos onde enterrou as cargas de explosivos, colocou os detonadores, guiou os diversos fios para uma bateria que escondeu em casa e que iria conduzir a electricidade, suficiente, para provocar a explosão.

Foi meticuloso, nada ficou à vista, a terra foi reposta e alisada.

*****

Esperou com impaciência o fim do dia, custava a acreditar mas, pela primeira vez rezou para que a besta aparecesse. Janela bem aberta e bem atento a todos os movimentos. O tímido Sol há muito tinha desaparecido e tudo continuava calmo, começava a desesperar, tanto trabalho para nada.

O Boca-Negra, de repente, começou a ficar inquieto, o vento apareceu como por encanto, um verdadeiro espojinho tomou conta do largo, um riso demoníaco entoou, o cão desapareceu latindo que metia dó. No meio do terreiro a execrável figura, bramia as membranas de forma assustadora, olhos chispando, mãos ameaçadoras com garras sinistras apontando na direcção do Carmelo.

Era o momento, ligou a bateria e o estrondo foi enorme, os vidros saltaram das janelas, a poeira encheu o espaço num cogumelo de terra e pedras. A criatura foi apanhada em cheio, levantou num voo, como um avião ferido de morte, asas em chamas e desapareceu no horizonte.

Carmelo respirou de alívio, amanhã ia reparar os estragos e esconder o que desse a conhecer o que tinha acontecido.

Dormiu tranquilo, como há muito não acontecia.


***

De manhã, com o tractor, ajeitou o melhor possível os estragos, praticamente nada se notava, só faltava repor os vidros.

Meteu-se no carro e abalou a caminho da vila, hoje sim, ia mesmo beber uns copos com os amigos.

Entrou no Café do Zé Gago e estranhou o comportamento de todos, sisudos e distantes:

-Mas o que se passa por aqui? Isto parece um velório.

Ti Chico, que estava encostado na esquina do balcão, explicou:

-Já entendi, que não estás a par do que aconteceu! 
 Encontraram hoje, de manhã, o padre Esteves morto á porta da Igreja, todo queimadinho, negro que nem um tição.


Pobre homem!



 

terça-feira, 8 de maio de 2012

A missão









Bom dia senhor Marques!

Foi mais ou menos assim que começou, ou parece ter sido, porque ninguém pode ter a certeza.

A verdade, a bem dizer, é que o Senhor Marques era muito rigoroso nessas coisas de cumprimentos pois, dizia ele, pela maneira de cumprimentar nós podemos avaliar da educação das pessoas.

Mas isto é apenas retórica, pois a questão assenta em princípios muito mais sérios e que, na verdade, não pudemos abordar aqui.

Pois a senhor Marques gostou da forma clara e franca daquele Bom Dia e, isso foi o suficiente para olhar com simpatia o homem que se apresentou na sua frente.

Era alto, elegante, com ligeiras entradas que lhe davam um ar de respeitabilidade. O fato azul assentava-lhe como uma luva e a gravata grená realçava a brancura da camisa. Os dentes não estavam, propriamente, no melhor estado o que era uma pena, pois seria, talvez a única coisa que destoava no conjunto.

O senhor Marques aprovou, gostou da apresentação, da postura e sobretudo da educação.

- Mas balbuciou, o senhor Marques, como sabe o meu nome?

O personagem afivelou o melhor sorriso, fez uma leve inclinação de cabeça antes de responder:

-Foi o chefe que me indicou o senhor.

Bom, sendo assim é porque o assunto é importante e de grande respeitabilidade, pensou o nosso homem.

Se o tenente Desidério, era esse o nome do chefe da esquadra, o indicou decerto era importante, havia que dar atenção.

O senhor Marques era um conceituado comerciante no ramo dos secos e molhados e, agora tinha enveredado pela linha gourmet, com um estabelecimento nas avenidas novas.

Loja de grandes montras espelhadas e prateleiras onde o presunto pata negra se encontrava alinhado com as alheiras de caça, as trufas faziam companhia ao foie gras de pato, as garrafas do Porto Vintage faziam parceria com o champanhe Dom Pérignon assim como outras iguarias, a que só alguns, muito poucos, tinham acesso.

Mas, penso eu, já me estou a desviar do cerne da questão, pois o que interessa é a chegada desse personagem que de forma tão delicada conquistou a atenção do senhor Marques.

Olhou, atentamente, a figura antes de perguntar:

-Mas afinal qual é a sua graça?

Bom, balbuciou, antes de responder:

-Trate-me por Álvaro, apenas Álvaro!

O senhor Marques não gostou do nome, trazia-lhe más lembranças, vinha-lhe à memória um tipo que o tinha enganado, e bem enganado.

Mas, pensou, nomes são nomes e não são eles que fazem as pessoas e este tipo parecia de linhagem, bem vestido, educado, bem-falante e além disso conhecido do Desidério, colega da escola e companheiro de armas.

Enquanto cogitava nestes pensamentos, ia olhando de lado o tal Álvaro que, como por encanto aqui lhe apareceu enquanto gozava uma nesga de sol, neste domingo, na esplanada do Café “O Rodopio”.

De verdade não lhe apetecia muito qualquer palratório, não estava voltado para conversas de negócios num dia de descanso, mas se o 
Desidério o mandou não podia fazer desfeitas, o amigo não merecia.

Olhou mais uma vez e pensou que o homem tinha pinta.

Apontou-lhe uma cadeira antes de dizer:

-Então continua ai de pé, porque não se senta?

Puxou a cadeira, passou a mão para certificar que estava limpa, arregaçou levemente as calças deixando ver umas meias pretas com uns vivos da cor da gravata, só depois se sentou.

Bem, pensou o senhor Marques, porra que o gajo até nas meias tem estilo, um pouco amaricadas mas com classe.

Estendeu as pernas, não por descortesia mas somente porque as articulações, por vezes, já lhe iam dando indicações de algum desconforto. Estalou os nós dos dedos, sinal que estava nervoso, mas o aparecimento do homem deixou-o um pouco desconcertado, não sabia porque, mas a verdade é que o deixou.

-Disse senhor Álvaro, não foi?

-Para os amigos apenas Álvaro, disse com um sorriso o visitante.

Era uma situação caricata, dois homens desconhecidos, sem jeito, tentando não se olharem directamente, palavras desarticuladas e sem sentido.

-Mas, disse o senhor Marques, afinal o que tem para tratar comigo?

Álvaro coçou o sobrolho e denotou alguma preocupação.

*****

Entrou num mundo de cogitações, os pensamentos acotovelavam-se dentro do cérebro sem saber descortinar o que se estava a passar.

Nunca foi um homem acanhado e muito menos de medos, mas as coisas imprevistas deixavam-no um pouco perturbado, sem raciocínio e numa total descoordenação de ideias.

O que lhe podia dizer agora? Nada preparado para esta situação, apenas para dar sequência a uma situação pré-programada, agora assim o que ia dizer a este humano?

Roeu a unha do indicador direito. Estava desconfortável, não se tinha preparado para isto, este Senhor Marques era um pouco desconcertante.

O chefe disse-lhe que era a primeira missão e, ele, pensou que estava tudo preparado. Mas não!

Levantou-se da cadeira e com a mesma cortesia, pigarreou antes de dizer:

-Bom hoje, acho, que não tenho tempo para continuar, volto noutro dia.

O Senhor Marques tentou dizer alguma coisa mas não teve ocasião, a figura desapareceu travessa abaixo, como um personagem que se vai esbatendo num horizonte longínquo.

O tipo deve ser maluco, pensou, não joga de certeza com a bola toda. 

Amanhã vou falar com o Desidério pois ele é o culpado disto tudo.

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O senhor Marques começou a sentir frio, um frio intenso, tentou levantar-se da cadeira mas, estranho, não conseguiu pousar os pés no chão, levitou, começou a elevar-se e a subir.

Não sabia mas tinha acabado de morrer.

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Álvaro apareceu e pegou-lhe na mão e, suavemente, encaminhou-o para aquele túnel de luz que se abria na sua frente

Afinal conseguira.

Tinha acabado de cumprir a sua primeira missão.











quarta-feira, 2 de maio de 2012


Momentos







Este conto é dedicado à minha cunhada Ermelinda, porque sei que ela acredita nos milagres da vida.



Era assim todos os dias, a mesma rotina, o mesmo pasmo, a mesma falta de motivos para enfrentar a vida.

Queria reagir mas havia sempre algo a entravar. Era o tédio, a tristeza e todo o marasmo em que se tornou a existência.

As coisas começaram da mesma forma como acontecem quase todas. A inexperiência, dizem uns, as más companhias, dirão outros. Na verdade as duas coisas podem ser verdade, mas a falta de afectos é, talvez, o maior motivo e que muitos se esquecem de referir.

Ia para a escola todos os dias, pois era o único lado onde sentia alguma atenção, onde também era, como os outros, um menino, que cresceu e se tornou rebelde, desenraizado e com um ódio que moía dentro do peito como se fosse um grito de revolta.

Quando lhe ofereceram o primeiro cigarro teve relutância em o aceitar, mas o Artur garantia que só lhe iria fazer bem, pois os problemas ficavam anestesiados nos rolos do fumo inspirado.

Eram umas ervas enroladas numa mortalha de papel, gosto esquisito, mas depois de inalado ia provocando um torpor agradável, uma sensação de desprendimento, uma euforia libertadora.

Entrou numa teia que lhe parecia libertadora, mas o corpo começou a ficar agarrado a uma necessidade que o pegava a cada dia que passava.

O vício aumentava e o primeiro cigarro era uma experiência já esquecida, foi uma espiral que cresceu sem dar por isso, agora a droga fazia parte do dia-a-dia, era o adormecimento, o êxtase e a libertação.

Deixou a vida, a rua passou a ser o lar, o roubo a profissão.
Os pais, de repente, perceberam que se tinham olvidado do filho que tinham deitado ao mundo, deram-lhe tudo só se esqueceram do amor. Mas era tarde!

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Hoje acordou naquela ressaca que doía de uma forma que nem ele sabia explicar, era uma dor feita de apertos, de névoa perturbadora, de torniquetes que apertavam a cérebro.

Queria acabar, precisava de ajuda mas, havia deixado tudo perdido no esquecimento de uma curta existência.

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Não queria mais esta vida, tinha perdido tudo, a infância que nunca teve, o afecto que não conheceu, a esperança que não existiu, a família que o esqueceu e, até, a amor que nunca encontrou.

Preparou tudo de uma forma diferente, sem ansiedade, sem rancor. Escreveu uma carta que talvez alguém lesse, tomou um banho como há muito não o fazia, vestiu a melhor roupa que ainda lhe restava e rezou como aprendeu na escola.

A corda estava em cima da cadeira, inerte como uma cobra que espera a vítima, os poucos retratos nas molduras na cómoda olhavam-no de uma forma impessoal, quase como se o não conhecessem e eram os pais.

Suspirou, foi espreitar à janela, queria ver o Sol pela última vez.

Lá em baixo no passeio, um menino mutilado, agarrada a umas bengalas, sorria.

Não olhou o Sol, nem reparou se brilhava porque o riso de um inocente, a quem a vida tinha tirado o direito a ser criança, sorria apesar da adversidade.

Arrumou a corda, abriu a janela de par em par para que a luz do sol iluminada por um sorriso de menino, banhasse de esperança o quarto de um homem que tinha desistido.

Mas, agora, ia voltar a viver.