Havia
algo de estranho naquele amor, um pouco irracional e com tantas contradições,
mas era um amor.
Ricardo
era um rapaz que emergiu, quase por encanto do nada, apareceu assim de repente
de uma província que nunca explicou, filho de ricos fazendeiros que ninguém
conhecia e licenciado em direito numa qualquer universidade que nunca foi
confirmada. É uma pessoa de falas mansas, tímido, delicado em demasia e
com excessiva amabilidade. Quase fastidioso.
Mafalda
é uma morena a que Deus, generosamente, deu tudo o que qualquer mulher deseja,
beleza, sensualidade, inteligência e uma certa dose de estudada ingenuidade.
Eram
diferentes, ou mais propriamente, eram totalmente opostos, quase como a
luz e a sombra.
Havia,
no entanto, uma atracção inexplicável, um amor quase doentio, uma cumplicidade
que ninguém conseguia entender.
Viviam
numa paixão que parecia estranha, mas não, era apenas diferente pelos
contrastes, pelos comportamentos e, um pouco, pelo insólito.
Bebiam
as palavras, olhavam-se de uma forma tão doce que acabavam por enjoar quem os
observava.
Um dia desapareceram. Durante uns tempos ninguém os viu, tentaram adivinhar
onde poderiam estar, o que teria acontecido?
Muitas
conjecturas, mas na verdade ninguém sabia os motivos dessa ausência.
Não foi
grande, foram apenas 28 dias, mas todos notaram, faziam falta para matar a
rotina, para alimentar os falatórios à porta do café, para amenizar as más
disposições da dona Efigénia que, debruçada na janela ia observando e
comentando todos os acontecimentos visíveis no escasso horizonte do seu poiso
habitual.
*****
De repente, tal como se eclipsaram, aparecerem de novo no seu mundo.
Tudo
parecia ter voltado à normalidade mas as coisas a, pouco e pouco, iam
mudando.
Aquele
amor, que iam pingando na doçura do olhar e a ternura, daqueles afagos, começaram
a escassear.
Deixaram
de ser os mesmos. Andavam juntos mas era como se não se conhecessem.
A troca
de caricias e os carinhos foram mudados para indiferença e ares sisudos. Não se
olhavam, davam o braço numa tentativa de encobrirem uma situação tão visível
que esconder era, apenas, uma forma de tornar mais visível o que todos já
tinham percebido.
Chegavam
no carro e ele já não lhe ia abrir a porta, como sempre o fizera.
Eram um
casal, mas não o mesmo que todos conheciam.
Parecia
que ainda havia amor, mas a chama era tão trémula que ninguém a percebia. Só
eles.
Ninguém sabia mas a dona Efigénia, no seu posto de observação, descobriu tudo.
Era fácil, agora os dois usavam aliança, tinham casado.
Alguns dos meus amigos, que por aqui
passam, perguntaram:
-Afinal qual era o segredo da Casa Amarela?
Confesso que também não sabia mas, por vós, fui inventar.
Estávamos no ano de 1820, as revoluções
liberais e nacionalistas tinham tomado conta da Europa, Portugal, tal com hoje,
atravessava um período de grandes convulsões com o desemprego, o fecho das fábricas,
a revolta do proletariado rural e o descontentamento do proletariado urbano,
custo de vida, insatisfação da burguesia que se via excluída do poder político
e atingida pela grave crise económica.
Dom Fagundes de Aragão, aquando da aprovação da constituição de 1822,
revoltou-se quanto à transformação da monarquia absoluta em monarquia
constitucional, arreigado aos principias de classes sociais dominantes, renegou
o Rei João VI e pegando na família e criadagem foi-se refugiar nas suas terras de
Barroso.
Esse lugar tornou-se num local de reuniões e conspirações que começaram a
causar mau estar entre os absolutistas que resolveram acabar com o mal pela
raiz.
Reuniram-se num grupo e avançaram contra o conspirador, encontraram-se no Alto
do Trigueiro, largo num terreiro da propriedade, onde se deu uma verdadeira
chacina, da família Aragão apenas restaram os mais novos que se tinham
escondido numa capela em ruínas.
Os vencedores partiram na euforia da vitória, tendo deixado, entre os seus e os
conspiradores, duas dezenas de corpos no campo da batalha, entre eles Dom
Fagundes de Aragão que num estertor final, barba vermelha de sangue, gritou:
-Eu ia construir aqui uma casa amarela da cor das armas do nosso brasão, não
consegui mas um dos que me sucederem irá dar continuação ao meu desejo.
Nós o que aqui estamos e todos os que aqui,
forem deixando esta vida, vão permanecer neste lugar que a crueldade dos homens
amaldiçoou.
Mas fica o segredo, um dia um Aragão a quem Deus vai dar a beleza que a todos
os outros negou, aparecerá do desconhecido e com a força do seu sorriso irá
libertar, todos estes que vivem nas trevas, com o ribombar do trovão, pela violência
do raio e pela intensidade do fogo purificador.
Fechou os olhos e, tal como os restantes, desapareceu nas trevas, como se jamais
ali, antes, tivesse estado.
Nunca encontraram os corpos.
Os mais novos, que escaparam à chacina, eram 14 crianças todas da família de
Dom Fagundes. Dois filhos e duas filhas, dois sobrinhos, três sobrinhas, um
irmão mais novo que sofria de um distúrbio mental, quatro primos e a Dona
Juliana uma aia responsável por todos, principalmente, os mais novos.
Passaram a noite no refugio e no da seguinte procuraram, vasculharam e nem um
vestígio dos parentes mais velhos.
A aia foi sossegando como lhe parecia
melhor:
-Se calhar Sua Majestade mandou-os para Lisboa,
um dia vão aparecer por ai.
Ela sabia que não era provável, pois o
sangue que ensopava o terreiro do jardim, no alto do trigueiro, era um mau
auguro, decerto mataram-nos a todos e levaram os corpos para não deixarem vestígios
da barbárie.
*******
A povoação estava surpreendida, um grupo de crianças, a mais velha com 16 anos,
um meio demente e uma criada mantinham a quinta e tinham a maior e melhor
produção de toda região.
Ninguém sabia como e eles, nunca disseram,
mas também não o sabiam, que as coisas apareciam feitas, as terras lavradas, as árvores podadas, as sementes lançadas à terra, as colheitas feitas e em ordem
para as diversas distribuições.
-Era um milagre, dizia Juliana, grande devota de S. Bartolomeu padroeiro dos
agricultores.
No íntimo ela pensava em algo mais místico, mas ficava com o pensamento dentro
da simplicidade do seu raciocino.
Todas as mulheres foram esquecidas, pelo Ser Supremo, no dia em que distribuiu
a formosura.
A mais velha, Raimunda, no dia em que completou 21 anos ao acordar teve um dos
maiores sustos da sua vida. Despertou e sentado no banco junto à sua cama
estava o pai.
Primeiro ficou assustada, depois recobrou e com alegria exclamou:
-Senhor meu pai, sempre tive esperança que
ias voltar e, melhor ainda hoje, dia do meu aniversario. A melhor prenda que
podia receber. Onde estivestes, todos estes anos, escondido?
Dom Fagundes, barbas manchadas, olhos sem expressão apenas murmurou numa voz
cava:
-Ando no limbo, na indefinição, no lugar onde ninguém quer estar. Deus não te
fez bela mas deu-te inteligência e bondade, eu não voltei porque sempre estive
aqui, esperando pelo dia em que podia passar o segredo que há séculos amaldiçoa
a nossa família.
Tens que o guardar e tens que o transmitir quando chegar a tua hora.
-Mas que segredo é esse senhor meu pai? Gritou Raimunda.
-É simples mulher, multiplicai-vos até que
uma mulher bela apareça na nossa família. Quando ela surgir virá aqui, para dar
descanso ao que esperam a salvação.
De repente fez-se noite, o dia foi coberto por uma negrura assustadora, a terra
tremeu e tremendos urros ecoaram no espaço.
Quando tudo voltou a normalidade, o homem tinha desaparecido e Raimunda jazia
na cama, parecia morta. Mas não, estava apenas numa espécie de letargia.
Quando espertou sabia que, agora, era a guardiã de um segredo que não tinha
percebido muito bem.
*****
Muitos anos se passaram, a monarquia
caiu e os carbonários tentaram tomar conta da casa dos fidalgos. Foi um dos seus
maiores erros, de todos os entraram na propriedade nenhum voltou a sair, foram
tragados por um buraco negro que de repente se abriu e os engoliu.
Com o andar dos tempos, as convulsões sociais foram acalmando o espírito das
pessoas e, os habitantes do Solar, começaram a ser considerados como fazendo
parte daquela comunidade formada por pessoas que viviam da agricultura da pastorícia.
Já poucos restavam. Os casamentos, quase todos entre primos, que deram origem a
uma descendência enfraquecida que facilmente ia desaparecendo tisicas,
engolidas na peste cinzenta, tão vulgar na época.
*******
Foi por esse período que o nosso já conhecido, Doutor Alcides de Aragão, mandou
erigir a casa Amarela no terreiro. Seria o seu refugio, continuava junto da família
mas tinha um local para os seus livros, para a escrita e para receber, fora dos
olhares curiosos, a Zezinha moça bonita de peito farto e ancas roliças que
trazia embeiçado o nosso intelectual, que além de doidamente perdido pela sua Zezé,
tinha a esperança que ela lhe desse uma filha linda, como a mãe, que fosse a
força libertadora da maldição desta família.
Não se pode condenar a Zezinha, Deus sabe que ela tentou e que a terra era
fértil mas a semente, essa, já era muito má.
Na velha casa continuavam apenas as duas irmãs Dona Catarina a quem, dom
Alcides, deu conta do segredo e do receio de nunca conseguirem dar aos que
partiram a tranquilidade de que tanto necessitavam.
Ela já tinha passado do prazo e ele apenas
tinha força de vontade, o resto estava apagado.
A mais nova Adelaide era, como diziam as irmãs, uma songamonga que nem jeito
tinha para arranjar um homem, por mais reles e pateta que fosse, desde que tivesse
alguma beleza para transmitir a uma filha.
O desalento ia, aos poucos, tomando conta da família e nas noites mais escuras,
já pressentiam alguma agitação nas sombras da casa, podia ser apenas impressão,
mas Alcides tinha receio que o desassossego dos seus entes queridos os fosse
atormentar.
****
Foi numa tarde de Agosto, o calor era insuportável e Catarina chamou a irmã
para ir encher uma infusa, de água fresca, à fonte.
Chamou e nada de Adelaide. Onde raio se
ter metido a rapariga, se andava ali todo dia numa total pasmaceira?
Chamou o irmão. Correram toda a casa principal e mais a casa Amarela,
espreitaram a adega, o curral e até o chiqueiro e nada de Adelaide.
Os cães continuavam num total sossego, por isso nada de estranhos pelas
redondezas.
Alcides desceu ao povoado, ia avisar a guarda.
No caminho encontrou o mestre Zacarias,
que estranhou a ligeireza e o ar ofegante do fidalgo e, não sustendo a
curiosidade perguntou:
-Onde o leva essa pressa toda?
Alcides sem aligeirar os passos, respondeu:
-Vou às autoridades, a minha irmã Adelaide desapareceu, não sabemos dela.
O mestre, também lhe chamavam engenheiro, embora nunca tenha ido escola, mas
era ele quem arranjava os engenhos que faziam os moinhos girar, descansou o
homem:
-Escusa de ir com essa urgência toda porque a senhora dona Adelaide não tinha
ar de desaparecida, muito pelo contrário, ia muito feliz e contente agarrada ao
braço do Senhor Esteves a caminho do carro.
Sabe quem é o senhor Esteves? O caixeiro-viajante
que aparece por ai quase todos os meses?
Alcides, nem se despediu do mestre Zacarias, arrepiou caminho e voltou para a
quinta.
Entrou esbaforido, o suor escorria-lhe pelo rosto abaixo e os bofes quase
saltando-lhes pela boca, respirou fundo antes de dizer:
-Catarina a partir de hoje somos, só nós os dois e os nossos mortos, que povoam
estas terras.
-Mas, balbuciou a irmã, o que é feito de Adelaide?
Os olhos do homem chisparam, ficou com um ar de apoplexia, vermelho,
transpirando ódio.
-Nunca, mas mesmo nunca mais, esse nome é pronunciado nesta casa, foi como se
tivesse morrido. Na nossa família, que vem desde o século XVIII, nunca houve
rameiras e não é agora que essa dissoluta vem denegrir a nossa linhagem.
Esquece o nome, para nós desde hoje, nunca
existiu.
*****
Naquela tarde de inverno em que uma tão estranha procissão subia a ladeira que
os levava à Casa Amarela, quando Sabrina apontou e disse:
-É esta a minha herança?
A maldição quebrou perante a dádiva de Deus em ter dado, finalmente, uma mulher
bela à família Aragão.
Hoje, graças a generosidade de todo o povo, no lugar onde um dia existiu a casa
Amarela, foi inaugurada uma capela em honra de S. Bartolomeu.
Em tempos idos já foi imponente, agora é
apenas uma casa abandonada.
Fica no alto de uma rua empinada, no meio de um terreno que antes foi um
jardim, agora apenas os tojos, as silvas e algumas heras entrelaçadas fazem
desse espaço um refúgio de lagartixas e outros rastejantes, que se acoitam nos
emaranhados das plantas que por ali proliferam.
A construção, muito degradada, deixa ainda ver a pureza das linhas, onde a
empena dá um toque quase senhorial.
As janelas rasgadas em arco, apresentam as mazelas que o tempo vai agravando,
madeiras apodrecidas e penduradas em dobradiças que a ferrugem corrompeu,
vidros estilhaçados onde as teias de aranha fazem caprichosos rendados.
A porta, maciça, já perdeu a cor original mas contínua firme, tendo apenas a
aldraba, em forma de lua, com o batente arrancado.
As paredes vão ficando descascadas mas o amarelo ainda predomina no conjunto
das manchas que o tempo deixou.
A casa tem dona, uma tal Sabrina, sobrinha da última habitante, Dona Catarina de
Aragão, que numa tarde amena de primavera fechou os olhos para não mais os
abrir.
Ninguém sabe dessa Sabrina e, até se julga, que ela pode não saber da morte da
tia e muito menos que é a dona da Casa Amarela.
****
Talvez eu me tenha adiantado nesta narrativa, mas por vezes o entusiasmo tem
dessas coisas.
A casa amarela foi mandada construir, há muitos anos, pelo insigne doutor
Aragão, homem de letras, devoto de São Francisco de Sales, embora na altura, os
mais informados, julguem que era apenas por ser o padroeiro dos escritores, que
era um sonho que nunca tinha conseguido concretizar, apenas alguns artigos na
Gazeta do Povo que, diga-se em abono da verdade, pouco interesse despertaram.
Mas o sonho de ter no alto do povoado uma casa era um anseio que havia herdado do
pai, tinha que ser no alto, porque era o simbolizo do domínio e amarela porque
essa é a cor do ouro. Do poder.
Quando foi inaugurada ofereceram, no largo do terreiro fronteiriço, uma festa
ao povo.
Um porco rodou horas num espeto e o vinho
correu abundante, foi um acontecimento que teve direito à primeira página da
Gazeta desse mês.
Era uma família conservadora, homens tradicionais e mulheres de quem a beleza
se esqueceu.
Apenas uma filha teve a coragem de partir,
um dia, perdida de amores por um simpático caixeiro-viajante.
Foi banida do parentesco, esquecida, o seu
nome, Adelaide, foi proibido naquela casa.
Com a morte de Alcides, apenas restou Catarina que guardava um segredo que
tinha que zelar e passar ao seguinte, quando sentisse que as pesadas asas
negras da morte se estavam a aproximar.
Quando pressentiu que, com 85 anos, o tempo se começava a escoar foi à procura
da irmã escorraçada, não podia pronunciar o nome da prescrita, mas tinha que a
encontrar e transmitir o segredo que preservava o descanso eterno da família.
Soube, através do investigador contratado, que a fugitiva tinha morrido, a
pneumónica não a tinha poupado, restava uma filha, Sabrina, que se pensava
podia viver em terras espanholas.
A velha senhora ficou em pânico, tinha que encontrar a sobrinha, como lhe era
difícil dizer sobrinha, mas era isso mesmo.
Encarregou o pesquisador de fazer o seu trabalho, indagar, e com ele abalou a
caminho de terras espanholas. Precisava de a encontrar senão, toda a família,
iria perder o descanso da vida eterna.
Dona Catarina, na companhia do investigador partiu para terras de
"nuestros hermanos" e por lá ficou, a viagem era superior às suas fracas
forcas, não aguentou e partiu com a angústia na alma e a tristeza no olhar.
O investigador prometeu continuar a procura, mas não teve a certeza que, se ela, ainda lhe ouviu as ultimas palavras.
*****
A mansão ficou abandonada e a maldição começou.
Quando principiava o anoitecer, ninguém se
atrevia a passar junto à casa Amarela, os gemidos, as sombras sinistras, os
esvoaçares, aqueles fogachos que a iluminavam de forma estranha e o tenebroso
escuro do sítio eram atemorizadores.
O povo andava em alvoroço, os que moravam mais próximo apressaram-se em mudar
para o lado contrário do povoado, os que não puderam, mal escurecia, trancavam
portas e janelas e acendiam luminárias aos santos da sua devoção.
Os técnicos municipais, ainda, mandaram uma máquina para arrasar a casa e
acabar com o pesadelo, mas as forças do mal eram superiores à vontade dos
homens, a engenho mal começou a ingreme subida sucumbiu, o motor rebentou e as
rodas esvaziaram de repente.
O medo estava instalado e o senhor padre-cura, nada podia fazer, tinha
aprendido a falar com Deus, nunca o prepararam para coisas do demónio. A casa,
não tinha dúvidas, estava possuída.
*******
Numa tarde, tempestuosa, de Janeiro um carro parou junto ao café Central. O
condutor saiu e, com um chapéu-de-chuva, foi ajudar na saída da mulher que o
acompanhava.
Deram uma fugida e entraram no
estabelecimento onde alguns homens olharam admirados para aquele casal. Ele
gordo, atarracado e com um ar muito sisudo. Ela alta, esbelta e com um sorriso
luminoso.
Foi a mulher quem se dirigiu aos presentes:
-Meus senhores, não me conhecem mas eu tenho raízes nesta terra, não nasci aqui
mas, a minha mãe nasceu, era uma das filhas da família Aragão.
Um dos presentes levantou-se e tirando o boné que lhe cobria a cabeça perguntou:
-Então quer dizer que é a filha da Adelaide? Sabe o segredo da casa amarela e
vem para ajudar o padre a acabar com a maldição?
-Sou a Sabrina, filha da Adelaide, respondeu a visitante, mas não sei o segredo,
a minha tia Catarina não me encontrou a tempo de mo dizer!
Os homens ficaram com um ar de preocupação. O que tinha falado coçou a cabeça,
num gesto de muita preocupação, e deixou escapar:
-Quer dizer que a maldição não vai acabar e nós vamos continuar nesta merda de
medo, em que andamos há um ror de tempo?
A rapariga era muito bonita, devia ser a única mulher da família que conseguiu
receber toda a beleza que às outras foi negada.
Tinha uns dentes alvos, uns lábios sensuais e um sorriso cativante.
-Meus senhores, será possível chamar o
padre e irmos todos ver essa tão falada casa?
José Sovela, o mais novo e mais afoito, saiu disparado protegido numa cobertura
de oleado, na procura do padre.
Não demoraram, o padre bem embrulhado numa capa alentejana, desaparecia debaixo
dum enorme guarda-chuva.
Seguiram em cortejo, cada um abrigado da melhor maneira.
Estranha procissão numa tarde tempestuosa.
A trovoada tinha tomado conta do tempo,
era quase tenebrosa, os relâmpagos cegavam e o ribombar atordoava os ouvidos
mais sensíveis.
Mas eles seguiam na fé que Sabrina, mesmo
sem o saber, pudesse ter o segredo que os libertasse.
Começaram a ladeira, a água da chuva descia com ímpeto nas regueiras da rua. De
vez em quando, um relâmpago mais forte tornava dia a tarde que ia escurecendo.
Chegaram ao terreiro, a casa era apenas uma mancha no meio da penumbra que ia
caindo.
Olharam na impotência de quem nada podia fazer, foi então que Sabrina abriu os
braços, apontou e perguntou:
-É esta a minha herança?
De repente fez-se noite e um raio, no meio de um relâmpago mais brilhante que o
Sol, atravessou o espaço e caiu mesmo no meio da casa amarela.
As chamas irromperam, os homens ajoelharam-se, mais por temor de que por
devoção.
As labaredas iam consumindo a casa como se as pedras fossem simples folhas de
papel. Por entre as chamas notava-se algo, como se fossem almas a
libertar-se, confundindo-se as sombras de umas com a luz das outras.
*****
Em pouco tempo apenas um monte de cinzas, mostravam tudo o restava da casa.
A chuva parou, a tormenta desapareceu e o
Sol brilhou como se a tempestade fizesse já parte do passado.
Quando entrou no café deu uns bons dias
tão sonantes que todos os clientes levantaram a cabeça um pouco surpreendidos.
Não era habitual, os fregueses deixavam sempre uma saudação envergonhada, tão
tímida que quase não se ouvia à talanqueira da porta.
Este foi diferente, entrou desempoeirado, franco e com um sorriso de dentes
alvos que contagiavam.
As mulheres miravam à socapa e pensavam, gato jeitoso!
Os homens, com algum despeito, sussurraram:
-Deve ser bichona!
Indiferente, com um sorriso nos lábios e um olhar observador percorreu os
lugares vazios, eram muitos, e foi sentar-se de costas para a montra de forma a
poder observar bem todo o espaço.
Colocou cuidadosamente, na cadeira ao lado, uma pequena pasta preta e alguns
livros encadernados.
Dona Matilde aproximou-se num misto de simpatia e admiração e, aclarando a voz,
perguntou:
-Em que posso servir o senhor?
-Tiago, respondeu, sou Tiago e queria uma
torrada mas com doce.
Pode ser?
-Pode, respondeu dona Matilde, mas só
tenho de abóbora, morango e tomate!
Rasgou ainda mais o sorriso, deixando
brilhar uns dentes brilhantes de não fumador:
-Pode ser de tomate, é o meu preferido!
Dona Matilde encaminhou as suas tairocas para a cozinha, ia caprichar no
serviço, afinal não eram todos os dias que tinha clientes tão charmosos.
- Ai! Fosse ela mais nova e mais magra,
suspirou!
*****
Tiago Payne Castro nasceu numa aldeia
perdida nos contrafortes da serra, filho de pai português e mãe sueca.
O pai conheceu, em Estocolmo, a mãe uma
artista que se sentia encurralada no bulício de uma grande cidade e, tal como o
pai, sonhava com o bucolismo e a paz que se respira no campo.
Compraram uma pequena quinta num local
onde, nas noites de inverno, ainda se ouvia o uivar dos lobos, As lareiras
crepitavam nos dias frias e o tempo corria de forma suave, calma e desprendido
da maldição dos horários que condicionam e oprimem.
A mãe passava os dias no improvisado
atelier, onde nasciam as pequenas obras que depois mandava para um agente que
as comercializava em muitas cidades da Europa.
O pai, de uma pequena cabana, fez o seu
escritório com vista sobre a serra, dizia ele, que lhe dava mais inspiração, e
ia matraqueando numa velha Remington Rand os livros e os artigos que mandava
para jornais e revistas.
Tratavam da horta com o mesmo cuidado com que cuidavam da vida, sem pressas,
mas com amor e gratidão por tudo o que ela lhes dava.
Nada de riquezas, mas o suficiente para o
conforto e a bem estar de uma liberdade.
*****
Foi num entardecer de Maio, as tardes já não estavam tão frias e o vento
soprava mais ameno. Estavam os pais sentados no alpendre bebendo uma bebida
amarela, Tiago, tinha três anos, estava a brincar junto ao tronco do velho
carvalho, tentando com um pequeno pau contrariar um carreio de formigas.
De repente ouviu o reboliço, abaixou-se e
espreitou ao longe. Eram três homens que chegaram num carro. O mais alto, com
uma espingarda, disparou sobre os pais, os outros entraram a correr em casa e
começaram a acarretar coisas que punham no porta-bagagens. Depois fugiram
deixando uma nuvem de pó na quietude da paisagem.
Tiago esteve longas horas num total
torpor, misto de medo e de impotência.
Foi na manhã, do dia seguinte que o homem, que vendia os queijos. se deparou
com a chacina, dois corpos num charco de sangue seco.
Da criança nem o mais pequeno rasto.
*****
Foi um pastor que alertou as autoridades, tinha avistado na encosta da serra um
rapaz com ar selvagem, cabelos enormes e desgrenhados, ar encardido e com uma
agilidade felina. Os cães ainda tentaram a perseguição, mas o rapaz rugiu com
um animal e desapareceu no meio do mato e das fragas.
Fizeram uma batida, homens e animais esquadrinharam todos os recantos, andaram
pelos sítios onde os lobos se acoitam durante o dia mas os caminhos eram
difíceis e perigosos, pelo que ao cair da tarde desistiram sem notarem qualquer
indício de rapaz, muitos pensaram que o pastor estava com visões ou andava
brincar com coisas sérias.
No dia seguinte, com a ajuda de
especialistas, voltaram a esquadrinhar todos os recantos, e a sorte esteve
presente, numa gruta no meio de uma ninhada de lobos uma criança dormia.
Estava imunda e receosa, com dificuldade entendia
o que lhe diziam, não consentia a aproximação e rosnada de forma agressiva
sempre que alguém tentava deitar-lhe a mão.
Para a tia foi fácil descobrir quem era a criança logo que viu as fotos, nos
jornais, era o Tiago o seu sobrinho que tinha desaparecido na chacina de há
três atrás.
Tomou conta da criança, foi difícil, reagia mal, comia de forma desordenada,
atacava rangendo os dentes e com os dedos retesados como garras.
A pouco-e-pouco o carinho, a ternura e a paciência da tia Carmem fizeram o
milagre.
Tiago passou a ser, de novo, uma criança calma e pacífica. Recuperou a faculdade
de falar, começou a sentir-se bem com o conforto e as recordações surgiam
naturalmente.
Lembrava-se do homem mau, dos tiros e dos
dentes que brilhavam quando se ria.
Depois, quando acordou, estava deitado junto de três irmãos-lobos com quem
aprendeu a mamar na mãe que ia e vinha trazendo a comida.
Quando via os homens fugia para junto dos
irmãos, tinha medo e lembrava o pai e a mãe deitados no chão, com todo aquele
sangue, e o homem com uma espingarda a deitar fumo e a rir fazendo brilhar
aqueles dentes amarelos.
*******
Cresceu, estudou e aprendeu a ser um
homem.
A tia partiu com o mesmo sorriso que
sempre lhe conheceu. Antes de fechar os olhos pediu-lhe:
-Meu filho vou partir mas vou andar sempre
perto de ti, não te esqueças de respeitar e honrar a memória dos teus pais.
Ele só abanou a cabeça, as lagrimas não o
deixaram falar.
A tia deixou-lhe uma pequena fortuna, um curso e muitos ensinamentos.
Ela nunca soube, ele, nunca lhe contou que
o ódio que sentia dentro dele nunca o conseguiu apagar.
******
As torradas estavam razoáveis mas o doce
estava óptimo.
Ficou a sorver o café em pequenos goles
enquanto ia mirando os pequenos grupos, esperava ver os sorrisos, queria
descobrir um esgar onde brilhassem dois dentes de ouro.
O rosto, se calhar já não se lembrava bem, mas o cheiro e o sorriso naquele trejeito,
de dentes cintilando, estava bem registado no seu pensamento. Nunca o esqueceu.
*****
Percorreu todas as localidades, andou por cafés e tabernas olhando e farejando
como um cão, mirou bocas, espreitou caçadores.
Perguntava de forma discreta, como se
apenas fosse uma pequena curiosidade, sobre quem gostava de usar dentes desse
metal.
*****
Já estava um pouco cansado, algum
desconforto e frustração mas um desejo enorme de continuar.
Mas desistir, isso nunca!
Era um domingo solarengo, embora a temperatura estivesse baixa, à porta das
casas, os mais idosos, ficavam ao sol para aquecer os doridos ossos.
Tiago, naquela forma encantadora que sempre usava, meteu conversa com um
simpático e desdentado velhote que com a agilidade, que os dedos ainda lhe
permitiam, ia deitando um pouco de tabaco numa mortalha que depois enrolava e
passava pelos lábios para selar o cigarro.
-Nunca consegui enrolar um cigarro com essa facilidade, disse Tiago.
O idoso riu, um sorriso de dois dentes perdidos no fumo do cigarro que acabara
de acender.
-Tem que praticar rapaz, só praticar.
Sentou-se ao seu lado.
-Não se importa! Perguntou.
Voltou a sorrir e abanou a cabeça em sinal
de aprovação, enquanto ia deixando sair umas pequenas baforadas de fumo.
-Sabe, disse, porque não manda fazer uma dentadura?
Foi uma das gargalhas mais sonoras de que se
lembra. Estava mesmo divertido, e foi um pouco engasgado que respondeu:
-Às tantas, ainda, vão dizer que devia por uns dentinhos de ouro como os irmãos
Canazitas!
O coração pareceu querer saltar do peito, respirou fundo para disfarçar a
ansiedade e perguntou:
-Quem são esses irmãos?
Não pareceu admirado com a curiosidade.
-São três maraus que vivem na casa amarela ao fundo da povoação. Bom, eram,
porque o mais velho morreu o ano passado, alguém lhe deu um tiro. Os outros
dois não são flores que se cheirem, maus caracteres.
Falou mais um pouco, despediu-se e fui
procurar a tal casa amarela.
Deve ter sido amarela noutros tempos,
agora era uma mescla de manchas num fundo que já foi dessa cor.
Ficou no carro o resto da tarde, na
esperança de ver alguém entrar ou sair, mas a noite caiu e nada de movimentos.
Ia voltar tantas vezes que um dia iria ter
sorte.
*****
O povo estava em alvoroço, os lobos nunca tinham chegado tão próximo do
povoado.
Hoje, de manhã, tinham encontrado, o Zé e o Joaquim Canazitas, mortos junto ao
curral da casa amarela.
Só podiam ter sido os lobos, tinham a gargantas dilaceradas por garras afiadas,
olhos aterrorizados e a boca num esgar de sofrimento onde sobressaiam, nas
gengivas despedaçadas, os dois dentes de ouro que tanto adoravam.